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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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Ponto de fuga

A grande missa dos mortos

Gustavo Roth - 05.abr.02/Folha Imagem
O regente norte-americano Ira Levin à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo


Jorge Coli

especial para a Folha

Num poema que Jorge de Senna escreveu sobre Berlioz, um verso fala "da solidão romântica imensamente pública -mas solidão". Música do imensamente: Berlioz conclamava forças em grande número na orquestra e nos corais. É assim com seu "Requiem". A obra foi agora apresentada no Teatro Municipal de São Paulo para assinalar o bicentenário de nascimento do compositor. Na execução do domingo pela manhã, o público era ralo; ficava a impressão de haver, na sala, mais gente tocando e cantando do que ouvindo.
Por suas exigências, o "Requiem" é uma obra pouco executada. Deixou de ser música litúrgica, desprendeu-se do ofício religioso para se tornar uma catedral em si mesma, na qual o gênio individual do autor concentrou angústias e esperanças coletivas. Berlioz previra quatro grupos de metais destacados da orquestra, dispostos de modo a criar um espaço sonoro singular. Nenhuma gravação reconstitui os efeitos dessa música estupenda que submerge o ouvinte. A audição ao vivo é insubstituível, o que ficou evidente na audição de São Paulo, com as fanfarras nos segundo e terceiro andares do recinto. O maestro Ira Levin dirigia; ele não é afeito a nuanças nem a visões muito interessantes daquilo que rege: sua leitura do "Requiem" foi superficial e mecânica. Mas a OSM, o Coral Lírico e o Coral Paulistano, o solista, Marcelo Vanucci, muito bons, bastaram para que o gênio de Berlioz se impusesse.
Onde - A temporada que o Teatro Municipal de São Paulo programou para o ano de 2003 é interessante e variada. Mas há algo que causa espécie. Ao percorrer os títulos das obras escolhidas para os concertos sinfônicos ou a lista das óperas que serão representadas, não se encontra um único título de autor brasileiro. É como se Camargo Guarnieri, Villa-Lobos, Nepomuceno, Carlos Gomes e tantos outros não existissem. Ou, pior, é como se essa programação proposta fosse destinada a um teatro fora do Brasil.
Fermata - Há dois domingos, o caderno Mais! resumiu, numa nota, declarações de Maurizio Pollini sobre a música. Pollini é um pianista lendário. Ao contrário de virtuoses que limitam seu repertório a obras conhecidas e os programas a uma rotina confortável, ele -um dois mais excelsos intérpretes de Chopin e de Beethoven- investe na música contemporânea. Criou o Projeto Pollini, destinado a reunir, sem separações ou confinamentos, sons atuais e sons do passado. Associa, desse modo, à sua carreira prestigiosa, a militância, que brota de uma reflexão elaborada. Sabe e afirma o papel propriamente subversivo de Mozart ou Debussy nos tempos de agora, em que a música dita popular tende a ocultar aquela assim chamada erudita.
A música popular, com suas qualidades e virtudes, possui um campo próprio: é assustador, no entanto, vê-la reinar, com hegemonia absoluta, e se sobrepor a um domínio que não é o seu. Tudo se passa como se o "popular" e o "erudito" tivessem a mesma natureza, já que tudo é música. Mais ainda, um jogo demagógico simplório tende a opor um ao outro, como se a questão, aqui, fosse de classe. Na verdade, Bach, Brahms ou Wagner oferecem uma experiência artística complexa e insubstituível, cuja riqueza é, hoje, sequestrada por uma cultura sonora dominante e empobrecida.
Sustenido - Abu Abbas, terrorista palestino protegido de Saddam Hussein, que chefiara o ataque ao navio Achille Lauro, em 1985, foi preso pelas forças americanas em Bagdá. No navio ocorrera o assassinato de Klinghoffer, velho judeu paralítico, atirado ao mar com sua cadeira de rodas. John Adams extraiu dessa barbárie macabra uma ópera de beleza inquietante: "The Death of Klinghoffer". A obra causou celeuma, pois seu libreto expunha também as razões dos árabes. Ela acabou de se transformar em filme, na Inglaterra. John Adams recebeu, recentemente, o prêmio Pulitzer de 2003 por "On the Transmigration of Souls", composição em homenagem às vítimas do atentado ao World Trade Center.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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