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Vida privada sob o totalitarismo
Diferentemente do regime
nazi-fascista, comunismo
na União Soviética mesclou
controle social com viés libertário
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Três regimes totalitários -o comunismo, o
nazismo e o fascismo- que marcaram a
paisagem política do
século 20 ainda irão, por muito
tempo, fascinar os historiadores da história contemporânea.
A etiqueta "totalitários" grudada nesses regimes faz sentido pela existência de traços em
comum: ditadura de partido
único, mobilização de massas,
pretensão de controlar todas as
esferas da vida política e social.
Mas ela não pode ocultar diferenças entre eles, como se
constata quando abordamos o
campo das relações entre a esfera pública e a privada que cada qual tratou de estabelecer.
No caso da União Soviética, o
tema tem sido amplamente explorado, culminando -evito a
expressão "livro definitivo",
que se presta a equívocos-
com o livro de Orlando Figes,
um dos maiores especialistas
da história da União Soviética,
intitulado "The Whisperers
-Private Life in Stalin's Russia"
[Metropolitan Books, 784
págs., US$ 35, R$ 60], cuja tradução aproximada seria "Os
Sussurradores - Vida Privada
na Rússia de Stálin".
Limites
A referência ao "sussurro"
indica, desde logo, as extremas
limitações da vida privada na
União Soviética, o temor de
seus cidadãos diante do Estado
e o espaço avassalador conferido à esfera pública, segundo a
ideologia e a prática do regime.
Mas seria enganoso tomar os
mais de 70 anos de vigência do
comunismo soviético como um
bloco homogêneo.
Houve períodos em que os
dirigentes soviéticos negaram a
existência de duas esferas na vida social, pois tudo era público.
Outros, em que abriram um espaço limitado à vida privada.
Em certa medida, essas variações se deveram a alterações de
rumo da política econômica,
mas nem sempre houve coincidência entre opções econômicas e política comportamental.
Como diz Figes, para os bolcheviques dos tempos "puros e
duros" a configuração radical
da "personalidade coletiva" importava a necessidade de fazer
explodir a concha da vida privada. A idéia de distinção entre
duas esferas da existência não
tinha o menor sentido, e a existência de espaços privados, fora
do controle do Estado, seria perigoso caldo de cultura para a
ação contra-revolucionária.
Havia um misto de intenções
totalitárias e uma vertente libertária nessa ideologia, embora as intenções totalitárias
sempre predominassem. Um
dos corolários da eliminação da
vida privada era a gradual supressão da família, facilitada
pelos divórcios, as uniões livres, as habitações coletivas.
O sonho socialista, na versão
soviética, visava à assunção pelo Estado das funções domésticas, com a instalação de creches, cantinas, lavanderias nos
blocos de apartamento coletivos e em locais públicos.
Um dos principais objetivos
desse programa era emancipar
a mulher das tediosas tarefas
do lar -e liqüidar o patriarcalismo bem como a moral sexual
repressiva.
A mulher estaria então livre
para dispor de si mesma e para
competir com os homens, em
igualdade de condições, no
mercado de trabalho.
Brechas
Um relativo abrandamento
das iniciativas para estreitar ao
extremo o espaço privado ocorreu nos tempos da NEP (Nova
Política Econômica), implantada por iniciativa de Lênin, em
março de 1921.
Sob a pressão resultante da
escassez de alimentos e outros
bens de consumo, abandonou-se a política de requisições forçadas no campo, permitindo-se
o retorno da agricultura e do
comércio privados, em pequena escala. Ao abrir brechas na
política de coletivização total,
necessariamente a nova linha
tinha de conceder algum espaço à vida familiar dos camponeses russos.
Mas essa concessão, desde o
início, gerou críticas alarmistas
dos dirigentes e militantes bolchevistas. Por exemplo, em
1924 Stálin declarou sem meias
palavras que "as atitudes e hábitos que herdamos da velha
sociedade são o mais perigoso
inimigo do socialismo". De
qualquer forma, a NEP seria
uma experiência transitória, liqüidada a partir dos últimos
meses de 1926, com a reintrodução do coletivismo no campo
e o salto na industrialização.
Curiosamente, o retorno a
velhos hábitos do passado, ainda que restrito, deu-se na década de 1930, num período político particularmente tenebroso,
em que o regime fabricou os
chamados processos de Moscou, levando à morte, por "traição", vários membros da velha
guarda bolchevista.
Os casamentos, sobretudo
entre membros da cúpula do
regime, tornaram-se glamorosos, as alianças de ouro reapareceram, os divórcios foram limitados, a homossexualidade e
o aborto, proscritos.
O quadro soviético, mesmo
assim, foi bem diverso daquele
gerado pelo nazismo, em seus
poucos anos de existência. Como observa Figes, a cultura política segundo a qual não existe
vida privada para o militante
partidário era peculiar do bolchevismo e só pode ser comparada com o que veio a acontecer
na China de Mao Tse-tung.
Mais ainda, a utopia libertária nunca fez parte da ideologia
nacional-socialista: a família
ariana devia ser preservada e
enaltecida, como um dos núcleos transmissores do nacional-socialismo e para dar muitos filhos ao Terceiro Reich.
BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do
Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre
outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).
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