São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Vida privada sob o totalitarismo

Diferentemente do regime nazi-fascista, comunismo na União Soviética mesclou controle social com viés libertário

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Três regimes totalitários -o comunismo, o nazismo e o fascismo- que marcaram a paisagem política do século 20 ainda irão, por muito tempo, fascinar os historiadores da história contemporânea.
A etiqueta "totalitários" grudada nesses regimes faz sentido pela existência de traços em comum: ditadura de partido único, mobilização de massas, pretensão de controlar todas as esferas da vida política e social.
Mas ela não pode ocultar diferenças entre eles, como se constata quando abordamos o campo das relações entre a esfera pública e a privada que cada qual tratou de estabelecer.
No caso da União Soviética, o tema tem sido amplamente explorado, culminando -evito a expressão "livro definitivo", que se presta a equívocos- com o livro de Orlando Figes, um dos maiores especialistas da história da União Soviética, intitulado "The Whisperers -Private Life in Stalin's Russia" [Metropolitan Books, 784 págs., US$ 35, R$ 60], cuja tradução aproximada seria "Os Sussurradores - Vida Privada na Rússia de Stálin".

Limites
A referência ao "sussurro" indica, desde logo, as extremas limitações da vida privada na União Soviética, o temor de seus cidadãos diante do Estado e o espaço avassalador conferido à esfera pública, segundo a ideologia e a prática do regime.
Mas seria enganoso tomar os mais de 70 anos de vigência do comunismo soviético como um bloco homogêneo.
Houve períodos em que os dirigentes soviéticos negaram a existência de duas esferas na vida social, pois tudo era público. Outros, em que abriram um espaço limitado à vida privada.
Em certa medida, essas variações se deveram a alterações de rumo da política econômica, mas nem sempre houve coincidência entre opções econômicas e política comportamental.
Como diz Figes, para os bolcheviques dos tempos "puros e duros" a configuração radical da "personalidade coletiva" importava a necessidade de fazer explodir a concha da vida privada. A idéia de distinção entre duas esferas da existência não tinha o menor sentido, e a existência de espaços privados, fora do controle do Estado, seria perigoso caldo de cultura para a ação contra-revolucionária.
Havia um misto de intenções totalitárias e uma vertente libertária nessa ideologia, embora as intenções totalitárias sempre predominassem. Um dos corolários da eliminação da vida privada era a gradual supressão da família, facilitada pelos divórcios, as uniões livres, as habitações coletivas.
O sonho socialista, na versão soviética, visava à assunção pelo Estado das funções domésticas, com a instalação de creches, cantinas, lavanderias nos blocos de apartamento coletivos e em locais públicos.
Um dos principais objetivos desse programa era emancipar a mulher das tediosas tarefas do lar -e liqüidar o patriarcalismo bem como a moral sexual repressiva.
A mulher estaria então livre para dispor de si mesma e para competir com os homens, em igualdade de condições, no mercado de trabalho.

Brechas
Um relativo abrandamento das iniciativas para estreitar ao extremo o espaço privado ocorreu nos tempos da NEP (Nova Política Econômica), implantada por iniciativa de Lênin, em março de 1921.
Sob a pressão resultante da escassez de alimentos e outros bens de consumo, abandonou-se a política de requisições forçadas no campo, permitindo-se o retorno da agricultura e do comércio privados, em pequena escala. Ao abrir brechas na política de coletivização total, necessariamente a nova linha tinha de conceder algum espaço à vida familiar dos camponeses russos.
Mas essa concessão, desde o início, gerou críticas alarmistas dos dirigentes e militantes bolchevistas. Por exemplo, em 1924 Stálin declarou sem meias palavras que "as atitudes e hábitos que herdamos da velha sociedade são o mais perigoso inimigo do socialismo". De qualquer forma, a NEP seria uma experiência transitória, liqüidada a partir dos últimos meses de 1926, com a reintrodução do coletivismo no campo e o salto na industrialização.
Curiosamente, o retorno a velhos hábitos do passado, ainda que restrito, deu-se na década de 1930, num período político particularmente tenebroso, em que o regime fabricou os chamados processos de Moscou, levando à morte, por "traição", vários membros da velha guarda bolchevista.
Os casamentos, sobretudo entre membros da cúpula do regime, tornaram-se glamorosos, as alianças de ouro reapareceram, os divórcios foram limitados, a homossexualidade e o aborto, proscritos.
O quadro soviético, mesmo assim, foi bem diverso daquele gerado pelo nazismo, em seus poucos anos de existência. Como observa Figes, a cultura política segundo a qual não existe vida privada para o militante partidário era peculiar do bolchevismo e só pode ser comparada com o que veio a acontecer na China de Mao Tse-tung.
Mais ainda, a utopia libertária nunca fez parte da ideologia nacional-socialista: a família ariana devia ser preservada e enaltecida, como um dos núcleos transmissores do nacional-socialismo e para dar muitos filhos ao Terceiro Reich.


BORIS FAUSTO , historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).

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