São Paulo, domingo, 27 de maio de 2001

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"Cenas de Vida Siciliana", de Verga, e "Erica e Seus Irmãos", de Vittorini, inauguram coleção de literatura italiana

O "allegro" fundamental

José Maria Cançado
especial para a Folha

A princípio soa um pouco nacional e geográfica demais, de um sociologismo literário seu tanto anacrônico, a proposta da coleção "Letras Italianas": publicar no Brasil a tradução de romances, novelas e contos de autores daquele país, do período compreendido entre a unificação, no final do século 19, até hoje, mapeando-os segundo as regiões da Itália.
Mas na verdade ocorre o contrário. Primeiro porque a literatura e estes dois primeiros livros da coleção, a novela de Elio Vittorini (1908-1966) e os contos de Giovanni Verga (1840-1922), que fazem parte da "constelação siciliana" (dela também há traduções de Pirandello e Leonardo Sciascia), o revelam: é mais de desorganizar mapas e de introduzir estranhamentos por baixo da pele de realidades históricas do que de ilustrá-las.
Depois porque com a literatura italiana do século 20 (e de forma especial com ela) se passa algo no mínimo marcante. Tal literatura, ao mesmo tempo em que foi expressão da vida social do país, dispôs para esta uma paisagem moral, uma vivacidade trágica, um "allegro fundamental" (na expressão de Elio Vittorini), um rumor e até um sentido -ou um clima de sentido. Gramsci formulou esse clima com a idéia de nacional-popular -para ele, teto, "levada" e horizonte de máxima universalidade possível da cultura numa Itália desigualmente partida em duas (tinha toda a razão). Assim é possível dizer que quem toca o Novecento literário toca o povo italiano.
Não há portanto nada parecido com flagrante literário -jóia do "bello paese"- na idéia dos livros dessa coleção. Mesmo as novelas e contos de "Cenas de Vida Siciliana", escritos a partir de 1875, depois da guinada realista de Giovanni Verga, com o seu registro verista e um ponto de vista que se queria objetivo e impessoal, transbordam do puro documento.
O mundo de Giovanni Verga, um milanês que voltou as costas para o Norte rico e se virou para o Sul pobre, aí encontrando o material das suas obras maiores (os romances "I Malavoglia", de 1891, e "Mastro Don Gesualdo", de 1888), é o da Itália pré-unificação, pré-nacional, o fundo do fundo da questão meridional. Mas o som e a fúria que escapam dessas novelas passadas numa Sicília devoradora, pré-jurídica, sacrificial, vão soar é lá fora, no espaço aberto e atemporal da própria emoção humana. Vão soar sempre, mesmo depois de desaparecidas as condições das quais foram expressão.
A súplica e a invocação piedosamente filiais do Turiddu, o amante de Lola em "Cavalleria Rusticana" (uma das novelas aqui incluídas, que foi adaptada para a ópera por Piero Mascagni), que chama pela mãe ao ser apunhalado de morte pelo compadre e rival Alfio, é por certo o suspiro pelo inexcedível e inapropriável bem supremo representado pela "mamma" siciliana (e não só siciliana).
Mas é também a antibravata, o amedrontamento, o desamparo da criatura humana ao pular a cerca de um código. Essa antibravata, essa coragem negativa, clamando pelo inexcedível e inapropriável bem supremo mencionado, sai o tempo todo dos lábios -e os conforma. Outras bocas estão condenadas a ecoar a invocação de Turiddu. A arte não é o eco da realidade, mas a realidade desse eco.
É nessa região sem saída que se desencadeia, na novela "A Loba" (também incluída no volume), o impasse também sem remédio do camponês Nanni, perseguido pela paixão carnal absoluta da própria sogra. Embora objeto do desejo da Loba e usufruidor das suas carnes esplêndidas, ele acaba por assassiná-la: o mesmo código da corporação dos maridos sicilianos não toleraria que nenhuma mulher pudesse ser assim. No atraso cultural, político e econômico que dá o pano de fundo da obra de Verga há uma força tão abrupta como a fome de amor da Loba que transborda do atraso.
A novela de Elio Vittorini foi escrita quase 50 anos depois, em 1936, e olha para o mesmo lado da questão meridional italiana, numa Itália já unificada, mas com a mesma paisagem humana: a da miséria e da brutalização da vida dos pobres durante o regime fascista, no período entre as duas guerras. A técnica de composição porém é completamente diferente da exposição verista de Giovanni Verga. "Erica e Seus Irmãos" é um tipo de conto de fadas às avessas. Nele, a personagem principal, Erica, uma menina que é abandonada com os irmãos pela mãe, configura o seu mundo e a sua plenitude, sustentada até o absurdo, não pelo acolhimento dos bens e frutos da terra, mas pela completa privação deles.
Ela se recusa a deixar a sua vida, que defende e afirma de forma tão cabeçuda quanto lendária, na linha de tiro da bondade e da caridade alheia. Seu bem é a recusa da suposta rede do bem que os outros querem tecer em redor dela.
A sua sobrevivência, e a dos irmãos, ela obtém abrindo, ao mesmo tempo cândida e impassivelmente, parte do seu dia e do seu corpo para a única coisa que, para ela, não tresanda a esmola e bondade: trepar com os homens a troco de algum dinheiro. Ela aceita relacionar-se apenas com o que lhe parece a pura dor e a pura ausência do bem, pois estas não a alienam dela mesma.
Elio Vittorini sugeriu que, caso escrevesse o final da novela, Erica conheceria "pouco a pouco também o prazer, e também o amor, também a amizade".
Mas é significativo que a novela tenha se interrompido antes disso, e que fique de Erica essa recusa de qualquer relação, como condição da sua plenitude e liberdade. Não é a recusa por parte dessa moça admirável que é Erica (o nome de uma erva das charnecas) que parece inumana aqui. Mas as relações que o mundo oferece a ela.
Com a libertação em 45, quando já era o autor consagrado de "Conversações na Sicília", de 1941, seu romance mais realizado, Vittorini se tornou um dos intelectuais mais notáveis do ativismo e da constelação político-cultural de esquerda na Itália. O "Politecnico", revista semanal surgida no pós-guerra, na qual o "nacional-popular" perfilado por Gramsci se acrescia criativamente de temas como a literatura norte-americana, o jazz, o diálogo entre marxismo e cristianismo, a defesa da autonomia da arte, os riscos do inconsciente, foi criação dele. Essa pauta pouco ortodoxa valeu a ele o enfrentamento com Palmiro Togliatti, secretário geral do PCI, e o fechamento da revista, em 47.
Uma das atividades mais fascinantes de Elio Vittorini foi a criação de uma coleção, a pedido do depois célebre editor Giulio Einaudi, a que ele chamou os "Gettoni": narrativas de escritores desconhecidos, curtas, que desprendessem um cheiro bárbaro, e que eram, escreveu o crítico Christian Bec, "como fichas (gettoni), essa moeda artificial que se atira na mesa de jogo do futuro".
Os livros da coleção "Letras Italianas" são um pouco como os "Gettoni": fichas do Novecento atiradas na mesa do leitor de hoje e no espaço supranacional da literatura. Seu valor não parece ter decaído. E parece certo que a garantia desse valor não está em outro lugar senão no fato de serem simultaneamente expressão e parte constitutiva, como outras tantas literaturas, da imortalidade histórica do povo -e de terem aí o seu "allegro" fundamental.


José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.

Cenas de Vida Siciliana
286 págs., R$ 29,00
de Giovanni Verga. Coordenação da tradução: Mariarosaria Fabris. Berlendis e Vertecchia Editores (rua Moacir Piza, 63, CEP 01421-030, SP, tel 0/xx/11/ 3085-9583).

Erica e Seus Irmãos
112 págs., R$ 21,00
de Elio Vittorini. Trad. Liliana Laganá. Berlendis e Vertecchia.



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