São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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EM ENTREVISTA EXCLUSIVA, ARNALDO SARAIVA DISCUTE AS RAZÕES QUE LEVARAM ESCRITORES E CRÍTICOS A IGNORAR A INFLUÊNCIA PORTUGUESA NO MODERNISMO DO BRASIL, TEMA DO ESTUDO QUE SAI NO PAÍS COM QUASE 20 ANOS DE ATRASO

Piada de brasileiro

Maurício Santana Dias
especial para a Folha

Portugal é um país "que gerou "Os Lusíadas" e morreu". A frase, escrita por Carlos Drummond de Andrade em 1924, aparece mais de uma vez em "Modernismo Brasileiro e Modernismo Português" (ed. Unicamp), livro de 1986 do crítico português Arnaldo Saraiva, 64, recém-lançado no Brasil. Para além da piada, a tirada do jovem Drummond seria sintomática do profundo desentendimento que houve entre os modernistas de cá e de lá -o mesmo desentendimento que fez Mário de Andrade dizer, em 1925, que Portugal era um "paisinho desimportante". Reivindicando a relevância da cultura lusitana na formação dos modernistas brasileiros, Saraiva polemiza com a maior parte dos escritores e críticos brasileiros e faz um extenso levantamento bibliográfico -cartas, artigos e crônicas- a fim de comprovar a sua tese.
O principal objetivo da obra é mostrar o seguinte: desde a Independência e o movimento romântico, escritores e críticos brasileiros sempre estiveram obcecados em se constituir em oposição aos ex-colonizadores e, para isso, teriam ignorado deliberadamente ou escamoteado tudo o que cheirasse a Portugal. "Defendendo teorias nacionalistas por vezes com veemência integralista, para não dizer fascista, não é estranho que alguns modernistas se esforçassem por apagar ou disfarçar traços ou vestígios portugueses", diz Saraiva na entrevista feita por e-mail reproduzida a seguir.
Como demonstra o estudo de Saraiva, longe de estar morto, o país de Camões sobreviveu disfarçadamente entre os brasileiros dos anos 20 na influência exercida por escritores como António Ferro, Luis de Montalvor, Almada Negreiros ou Mário de Sá-Carneiro -Pessoa só seria lido mais tarde. As análises e a quantidade de documentos reunidos no livro convencem, ainda que permaneça duvidoso se, ao desmontar o nacionalismo brasileiro, o crítico não tenha erguido mais um monumento ao nacionalismo português.
 
O seu livro dá a entender que o modernismo brasileiro teria escamoteado as influências do modernismo português. Se a tese é verdadeira, quais os motivos?
Distingo "modernismos" no modernismo brasileiro e distingo modernistas; o modernismo de São Paulo evidenciou em geral, em relação à cultura portuguesa, uma distância real ou imaginária bem maior do que a do modernismo nordestino; Mário de Andrade concebeu rupturas lingüísticas e literárias que não podiam entusiasmar os seus amigos Bandeira e Drummond. Defendendo teorias nacionalistas por vezes com veemência integralista, para não dizer fascista, não é estranho que alguns modernistas se esforçassem por apagar ou disfarçar traços ou vestígios portugueses. Nem faltaram os que viram na própria língua portuguesa um obstáculo à independência do Brasil, um século depois da sua proclamação. Mas a rasura implicou muito mais os clássicos e os pré-modernistas, entre os quais mestres como António Nobre e Cesário Verde, do que modernistas propriamente ditos, ignorados por razões que não eram só as do nacionalismo estreito (por exemplo: a Primeira Guerra tornara mais difíceis as comunicações transatlânticas; no Brasil havia novas imigrações a afirmar-se culturalmente).
Mesmo lida como boutade, que é, a frase escrita e publicada por Drummond em 1924 -Portugal é um país "que gerou os Lusíadas e morreu"- parece sintomática da ignorância, da desatenção e da leviandade que julgava velha, morta ou desinteressante uma literatura que acabava de perder gênios como o de Camilo Pessanha e de Mário de Sá-Carneiro e que, nesse momento, tinha ao seu serviço Fernando Pessoa e Almada Negreiros ou Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Aquilino Ribeiro e José Régio.

O sr. também denuncia uma certa cegueira da crítica brasileira, que teria centrado o foco na França.
Desde Gonçalves de Magalhães, a teoria da literatura brasileira foi quase sempre concebida na valorização hiperbólica da diferença (que nem se mede na consideração da semelhança) ou mesmo da oposição (quase sempre vaga) à literatura portuguesa, o que levou a curiosas inclusões e exclusões canônicas e à proliferação delirante de "fundadores" ou de "momentos decisivos". E o que levou até a divisões, em algumas universidades, entre docentes de literatura brasileira e de literatura portuguesa. Assim, não admira que Machado de Assis já tenha suscitado bons estudos sobre a sua relação com as culturas francesa e inglesa, mas não com aquela que mais pesou nele, a portuguesa. E também não admira que o estudo de algumas relações do modernismo brasileiro com a França e com a Itália se impusesse antes e mais do que com Portugal. Inicialmente, nem a prestimosa obra de Gilberto Mendonça Teles "Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro" incluía os manifestos portugueses. E circulam no Brasil estudos sobre movimentos de vanguarda européia e sobre o orfismo na moderna literatura que nem aludem ao movimento português do Orpheu, de onde saíram não só teorias como a do sensacionismo, mas também a da heteronímia, que tem interessado a modernidade e pós-modernidade internacional.

Como e em que arquivos e bibliotecas o sr. fez a sua pesquisa bibliográfica e o levantamento dos textos?
Andei por onde andaria qualquer ávido investigador: no Rio demorei-me sobretudo na Biblioteca Nacional, no Gabinete Português de Leitura, na Fundação Casa de Rui Barbosa; em São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade e no Instituto de Estudos Brasileiros; mas fui ao Instituto de Estudos da Linguagem, de Campinas, ao Arquivo Público Mineiro, de Belo Horizonte, ou à Biblioteca do Itamaraty, de Brasília, e fiz pesquisas em várias bibliotecas portuguesas, parisienses e norte-americanas. Vali-me não menos de bibliotecas e arquivos particulares, generosamente facultados pelos próprios ou por seus descendentes -por exemplo, de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Ronald de Carvalho, Plínio Doyle ou de Fernando Pessoa, António Ferro, José Osório de Oliveira, Nuno Simões, Fernando Távora. E perdi, ganhando informações preciosas, muitas horas em sebos ou alfarrabistas, assim como me beneficiei de dados ou textos que me forneceram muitos escritores e estudiosos, a quem estou muito grato (como não posso estar em relação às duas únicas pessoas que à frente de instituições brasileiras me negaram o acesso a pesquisas, o que também me foi negado pela descendente portuguesa de Álvaro Pinto). Escusado será dizer que por vezes tive de trabalhar em condições precárias. As pesquisas no Brasil, fi-las sem bolsas, aproveitando os convites para congressos ou cursos; alguns arquivos estavam totalmente desorganizados; na Biblioteca Nacional esperei anos (repito: anos) para poder consultar alguns jornais; com Andrade Muricy só pude falar já estando ele doente, de cama.


A teoria da literatura brasileira foi quase sempre concebida na valorização hiperbólica da diferença à literatura portuguesa, o que levou à proliferação delirante de "momentos decisivos"


É verdade que, na formação dos modernistas brasileiros, teriam contribuído menos Cendrars e Apollinaire e mais Antônio Ferro e Almada Negreiros ou Luís de Montalvor?
Não creio que estejamos em condições de avaliar bem a contribuição global desses escritores, salvo a de Cendrars (que aliás era de origem suíça e que só chegou ao Brasil em 1924), já estudada por Aracy Amaral, Alexandre Eulálio e outros. Ferro, que nem era grande escritor, pesou mais do que Montalvor e, este, mais do que Almada (o peso de Pessoa sentir-se-ia bem mais tarde). Mas sabe-se da relação direta que tiveram com a França homens como Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Sérgio Milliet; e sabe-se como a França e Paris, na segunda metade do século 19 e nas primeiras décadas do 20, atraíam quase todos os que escreviam, em Portugal e no Brasil. Isso não permite dizer que a literatura francesa foi mais importante para o modernismo brasileiro do que a portuguesa; e essa questão não parece muito relevante se não passar do campo nacionalista para o campo estético ou estilístico.

O sr. denuncia ainda lapsos e equívocos dos críticos brasileiros em relação ao futurismo. A que se deveriam esses supostos equívocos?
Supostos? Também aponto os de críticos portugueses. E as razões são idênticas: derivam da preguiça e da leveza de certos críticos, pouco dados à pesquisa ou ao rigor, e das confusões à volta do futurismo ou dos futurismos e de Marinetti, que se prestou até a grandes equívocos ideológicos.

A dialética do colonizador/colonizado ainda se sustentava naquela época? E hoje?
Nas décadas de 1910 e 1920, quando aumentara o "ufanismo" e se aproximavam as celebrações do primeiro centenário da Independência, houve vários episódios que ilustraram ou atualizaram essa dialética: em 1912, as perturbações relacionadas com o suposto apoio do governo brasileiro aos monárquicos exilados, que não se conformavam com a recém-proclamada República portuguesa; em 1913, as lutas cariocas e paulistas contra os portugueses que pareciam dominar alguma imprensa; em 1922, a ordem governamental dada a pescadores portugueses para assumirem a nacionalidade brasileira, sob pena de expulsão; em 1925, a publicação do verrinoso "As Razões da Inconfidência", de Antônio Torres, e a polêmica que gerou; as repetidas polêmicas à volta da questão da língua ou da ortografia; o agravamento da imagem recíproca de portugueses e de brasileiros (deve ter nascido por essa altura a "piada de português"). Hoje parecem superadas as tensões típicas de ressentimentos históricos; creio que já não há portugueses que se julguem com direitos de proprietários do Brasil ou que julguem os brasileiros como no tempo de Camilo, já há muitos brasileiros conscientes do trabalho que um pequeno povo fez na sua grande terra e já há poucos brasileiros a culpar os portugueses de todos os males do Brasil ou a supor que eles são pés-de-chumbo e tamanqueiros, estando até a tal "piada" em claro recuo: mas o recalcado pode retornar a qualquer momento e até com um pequeno pretexto, como foi o dos dentistas.

Ainda há uma "controvérsia lingüística" entre brasileiros e portugueses?
Há e haverá enquanto não entrar em vigor e mesmo depois de entrar em vigor o acordo ortográfico, enquanto portugueses pensarem que são donos da língua porque a criaram e brasileiros pensarem que são donos da língua porque em maior número a falam e escrevem, enquanto não se cuidar persistentemente do seu bom uso e enquanto não for concertada entre os vários países que a oficializaram uma boa política, que não impeça especificidades e transformações (uma língua é uma coisa viva), mas impeça a sua complicação e desagregação. Esta a ninguém, nem aos estrangeiros que a querem aprender, trará vantagens. Hoje, em Portugal, por causa das telenovelas, da música popular e dos emigrantes, até as criancinhas se familiarizam com a norma brasileira; se os brasileiros têm dificuldades com a norma de Portugal, isso não devia ser motivo de riso, mas de preocupação, porque os limitará. E, pensando no fato de o português ser falado em vários continentes e no papel que a língua desempenhou na unidade do Brasil, parece do interesse geral que se evitem as cisões regionais que possam ser evitadas.


As pesquisas no Brasil, fiz sem bolsas, alguns arquivos estavam totalmente desorganizados; na Biblioteca Nacional esperei anos (repito: anos) para poder consultar alguns jornais


No estado atual dos estudos literários, ainda é válida a perspectiva que se sustenta no levantamento das fontes e influências?
A noção moderna de "intertextualidade" ou de "transtextualidade" não obriga a sentir nenhum complexo ou "anxiety" no uso do termo "influência" ou confluência. O estudo de fontes e influências só interessa na medida em que ilumine ou faça falar os textos e não prescinde necessariamente, como julgo ter provado, dos apoios que vêm da teoria da recepção, das teorias do texto, do gênero ou do discurso, do comparativismo etc. A inventariação simples de imitações materiais ou textuais, de tópicos, glosas, citações, paródias, pastiches, o que seja, evidenciará uma prática comum e não garante por si só mérito ou demérito, inferioridade ou superioridade criativa. Aliás, também convém não esquecer o que Pessoa disse: que decerto tinha influências de Pessanha, porque tudo o que lia o influenciava; mas que não devia ver-se como influência de Pessanha tudo o que nele lembrasse Pessanha.

Como o sr. vê a recente cooperação entre publicações literárias portuguesas e brasileiras, como as revistas "Inimigo Rumor" e "Colóquio/Letras"?
Na "Colóquio/Letras", já há muito, desde quando se chamava só "Colóquio", há colaboração de portugueses e brasileiros. E projetos desse gênero pode dizer-se que existem desde que há revistas em português, embora às vezes durem pouco e não sejam apoiados, como deviam ser, por outras ações e programas de cooperação. Só posso, pois, achar bem, se me dei conta dos males da ignorância mútua num dos mais altos momentos das duas culturas e se penso que, embora qualquer um deva ter a liberdade de escolher a língua, os livros e a cultura que quiser, há como que um imperativo ético que nos liga a uma comunidade. Acho que se pode viver bem e até escrever bem em português sem passar por todos os grandes clássicos da língua; mas não concebo um português culto que ignore Clarice ou João Cabral, nem um brasileiro culto que ignore Herberto Helder, Lobo Antunes, Mia Couto. Um autor ou leitor moderno só terá a lucrar familiarizando-se com o que de melhor (e diferente) se escreve em outros distantes espaços da língua portuguesa. E, mais culturalmente relacionados, os povos de língua portuguesa ganharão a dignificação ou a importância internacional que não têm e poderão contribuir melhor para um mundo melhor.

A que o sr. atribui o "silêncio" dos pesquisadores brasileiros sobre a primeira edição do seu livro -fato sublinhado pelo sr. no novo prefácio?
Não me queixei desse silêncio; quem falou nele foi Wilson Martins, que, é verdade, citei. Queixei-me apenas de três ou quatro recusas editoriais, que não favoreceram o acesso ao meu livro no Brasil. Dizia Guimarães Rosa que o dever de um escritor é escrever (e escrever para a eternidade, acrescentava). Também penso que o dever de um estudioso é estudar a sério e dar conta pública dos resultados do seu estudo, se achar que ele pode contribuir para repor a verdade ou para o recuo de algum erro. O resto -ecos, honras, o que seja- não é questão que deva tirar-lhe tempo ou sono.

Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Modernismo Brasileiro e Modernismo Português
680 págs., R$ 60,00
de Arnaldo Saraiva. Ed. Unicamp (r. Caio Graco Prado, 50, Unicamp, caixa postal 6.074, CEP 13083-970, Campinas, São Paulo, tel. 0/xx/ 19/ 3788-7787).



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