São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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MICHEL FOUCAULT
Martins Fontes inicia edição das aulas do autor de "As Palavras e as Coisas" no Collège de France
A criação do biopoder

da Redação

Leia, a seguir, um trecho de uma aula de Michel Foucault, extraído do livro "Em Defesa da Sociedade", que está sendo publicado pela Editora Martins Fontes (tradução de Maria Ermantina Galvão, R$ 32,50, 382 págs.). A edição do livro foi estabelecida por Mauro Bertani e Alessandro Fontana, que reuniram aulas do autor apresentadas entre 7 de janeiro de 1976 e 17 de março do mesmo ano. Foucault lecionou no Collège de France de janeiro de 1971 até sua morte, em junho de 1984. Os cursos que proferiu não fariam parte de suas obras completas, mas seus herdeiros acabaram concordando que fossem publicados conforme as gravações originais. Já está prevista a publicação, também pela Martins Fontes, de mais duas compilações de cursos do filósofo: "Le Pouvoir Psichiatrique" (O Poder Psiquiátrico) e "L'Hermeneutique du Sujet" (A Hermenêutica do Sujeito).

MICHEL FOUCAULT

Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século 19 foi, é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico. Creio que, para compreender o que se passou, podemos nos referir ao que era a teoria clássica da soberania que, em última análise, serviu-nos de pano de fundo, de quadro, para todas essas análises sobre a guerra, as raças etc.
Na teoria clássica da soberania, vocês sabem que o direito de vida e de morte era um de seus atributos fundamentais. Ora, o direito de vida e de morte é um direito que é estranho, estranho já no nível teórico; com efeito, o que é ter direito de vida e de morte? Em certo sentido, dizer que o soberano tem direito de vida e de morte significa, no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, que a vida e a morte não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder político.
Quando se vai um pouco mais além e, se vocês quiserem, até o paradoxo, isso quer dizer no fundo que, em relação ao poder, o súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano que o súdito tem direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana. Aí está, se vocês quiserem, o paradoxo teórico. Paradoxo teórico que deve se completar, evidentemente, por uma espécie de desequilíbrio prático.
Que quer dizer, de fato, direito de vida e de morte? Não, é claro, que o soberano pode fazer viver como pode fazer morrer. O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um direito de espada. Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver. O que, é claro, introduz uma dissimetria flagrante.
E eu creio que, justamente, uma das mais maciças transformações do direito político do século 19 constitui, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania -fazer morrer ou deixar viver- com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de "fazer" viver e de "deixar" morrer. O direito de soberania é, portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer.
Essa transformação, é claro, não se deu de repente. Pode-se segui-la na teoria do direito (mas aí serei extremamente rápido). Vocês já vêem, nos juristas do século 17 e sobretudo do século 18, formulada essa questão a propósito do direito de vida e de morte. Quando os juristas dizem: quando se contrata, no plano do contrato social, ou seja, quando os indivíduos se reúnem para constituir um soberano, para delegar a um soberano um poder absoluto sobre eles, por que o fazem? Eles o fazem porque estão premidos pelo perigo ou pela necessidade. Eles o fazem, por conseguinte, para proteger a vida. É para poder viver que constituem um soberano. E, nessa medida, a vida pode efetivamente entrar nos direitos do soberano? Não é a vida que é fundadora do direito do soberano? E não pode o soberano reclamar efetivamente de seus súditos o direito de exercer sobre eles o poder de vida e de morte, ou seja, pura e simplesmente, o poder de matá-los? Não deve a vida ficar fora do contrato, na medida em que ela é que foi o motivo primordial, inicial e fundamental do contrato?
Tudo isso é uma discussão de filosofia política que se pode deixar de lado, mas que mostra bem como o problema da vida começa a problematizar-se no campo do pensamento político, da análise do poder político. De fato, o nível em que eu gostaria de seguir a transformação não é o nível da teoria política, mas, antes, o nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. Então, aí, topamos com coisas familiares: é que, nos séculos 17 e 18, viram-se aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala já no final do século 17 e no decorrer do século 18.
Ora, durante a segunda metade do século 18, eu creio que se vê aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplina prévia. Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes.
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é -diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo- a vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.
Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante, mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século 18, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma "biopolítica" da espécie humana.
De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século 18, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos (os quais não retomo agora), constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica.
É nesse momento, em todo caso, que se lança mão da medição estatística desses fenômenos com as primeiras demografias. É a observação dos procedimentos, mais ou menos espontâneos, mais ou menos combinados, que eram efetivamente postos em execução na população no tocante à natalidade; em suma, se vocês preferirem, o mapeamento dos fenômenos de controle dos nascimentos tais como eram praticados no século 18. Isso foi também o esboço de uma política de natalidade ou, em todo o caso, de esquemas de intervenção nesses fenômenos globais da natalidade.
Nessa biopolítica, não se trata simplesmente do problema da fecundidade. Trata-se também do problema da morbidade, não mais simplesmente, como justamente fora o caso até então, no nível daquelas famosas epidemias cujo perigo havia atormentado tanto os poderes políticos desde as profundezas da Idade Média (aquelas famosas epidemias que eram dramas temporários da morte multiplicada, da morte tornada iminente para todos). Não é de epidemias que se trata naquele momento, mas de algo diferente, no final do século 18: grosso modo, aquilo que se poderia chamar de endemias, ou seja, a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade das doenças reinantes numa população. Doenças mais ou menos difíceis de extirpar e que não são encaradas como as epidemias, a título de causas de morte mais frequente, mas como fatores permanentes -e é assim que as tratam- de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias, custos econômicos, tanto por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que podem custar. Em suma, a doença como fenômeno de população: não mais como a morte que se abate brutalmente sobre a vida -é a epidemia-, mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece.
São esses fenômenos que se começa a levar em conta no final do século 18 e que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização das informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população. Portanto problemas da reprodução, da natalidade, problema da morbidade também.
O outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um conjunto de fenômenos dos quais uns são universais e outros são acidentais, mas que, de uma parte, nunca são inteiramente compreensíveis, mesmo que sejam acidentais, e que acarretam também consequências análogas de incapacidade, de pôr indivíduos fora de circuito, de neutralização etc. Será o problema muito importante, já no início do século 19 (na hora da industrialização), da velhice, do indivíduo que cai, em consequência, para fora do campo de capacidade, de atividade. E, da outra parte, os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas. E é em relação a estes fenômenos que essa biopolítica vai introduzir não somente instituições de assistência (que existem faz muito tempo), mas mecanismos muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a grande assistência, a um só tempo maciça e lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade etc.
Enfim, último domínio (enumero os principais, em todo o caso os que apareceram no final do século 18 e no início do 19; haverá muitos outros depois): a preocupação com as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto espécie, enquanto seres vivos, e seu meio, seu meio de existência -sejam os efeitos brutos do meio geográfico, climático, hidrográfico: os problemas, por exemplo, dos pântanos, das epidemias ligadas à existência dos pântanos durante toda a primeira metade do século 19. E, igualmente, o problema desse meio, na medida em que não é um meio natural e em que repercute na população; um meio que foi criado por ela. Será, essencialmente, o problema da cidade. Eu lhes assinalo aqui, simplesmente, alguns dos pontos a partir dos quais se constituiu essa biopolítica, algumas de suas práticas e as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao mesmo tempo: é da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder.


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