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MICHEL FOUCAULT
Martins Fontes inicia edição das aulas do autor de "As Palavras e as Coisas"
no Collège de France
A criação do biopoder
da Redação
Leia, a seguir, um trecho de uma
aula de Michel Foucault, extraído
do livro "Em Defesa da Sociedade", que está sendo publicado pela
Editora Martins Fontes (tradução
de Maria Ermantina Galvão, R$
32,50, 382 págs.). A edição do livro
foi estabelecida por Mauro Bertani
e Alessandro Fontana, que reuniram aulas do autor apresentadas
entre 7 de janeiro de 1976 e 17 de
março do mesmo ano.
Foucault lecionou no Collège de
France de janeiro de 1971 até sua
morte, em junho de 1984. Os cursos que proferiu não fariam parte
de suas obras completas, mas seus
herdeiros acabaram concordando
que fossem publicados conforme
as gravações originais.
Já está prevista a publicação,
também pela Martins Fontes, de
mais duas compilações de cursos
do filósofo: "Le Pouvoir Psichiatrique" (O Poder Psiquiátrico) e
"L'Hermeneutique du Sujet" (A
Hermenêutica do Sujeito).
MICHEL FOUCAULT
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século 19 foi,
é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização
do biológico ou, pelo menos, uma
certa inclinação que conduz ao que
se poderia chamar de estatização
do biológico. Creio que, para compreender o que se passou, podemos nos referir ao que era a teoria
clássica da soberania que, em última análise, serviu-nos de pano de
fundo, de quadro, para todas essas
análises sobre a guerra, as raças
etc.
Na teoria clássica da soberania,
vocês sabem que o direito de vida e
de morte era um de seus atributos
fundamentais. Ora, o direito de vida e de morte é um direito que é estranho, estranho já no nível teórico; com efeito, o que é ter direito de
vida e de morte? Em certo sentido,
dizer que o soberano tem direito
de vida e de morte significa, no
fundo, que ele pode fazer morrer e
deixar viver; em todo caso, que a
vida e a morte não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo modo originais ou radicais, que
se localizariam fora do campo do
poder político.
Quando se vai um pouco mais
além e, se vocês quiserem, até o paradoxo, isso quer dizer no fundo
que, em relação ao poder, o súdito
não é, de pleno direito, nem vivo
nem morto. Ele é, do ponto de vista
da vida e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano
que o súdito tem direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente,
de estar morto. Em todo caso, a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana. Aí está, se vocês quiserem, o paradoxo teórico. Paradoxo teórico que deve se completar, evidentemente, por uma espécie de desequilíbrio prático.
Que quer dizer, de fato, direito de
vida e de morte? Não, é claro, que o
soberano pode fazer viver como
pode fazer morrer. O direito de vida e de morte só se exerce de uma
forma desequilibrada, e sempre do
lado da morte. O efeito do poder
soberano sobre a vida só se exerce
a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última
análise, o direito de matar é que
detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e
de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito
sobre a vida. É essencialmente um
direito de espada. Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e
de morte. Não é o direito de fazer
morrer ou de fazer viver. Não é
tampouco o direito de deixar viver
e de deixar morrer. É o direito de
fazer morrer ou de deixar viver. O
que, é claro, introduz uma dissimetria flagrante.
E eu creio que, justamente, uma
das mais maciças transformações
do direito político do século 19
constitui, não digo exatamente em
substituir, mas em completar esse
velho direito de soberania -fazer
morrer ou deixar viver- com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo,
perpassá-lo, modificá-lo, e que vai
ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de
"fazer" viver e de "deixar" morrer.
O direito de soberania é, portanto,
o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é
que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer.
Essa transformação, é claro, não
se deu de repente. Pode-se segui-la
na teoria do direito (mas aí serei
extremamente rápido). Vocês já
vêem, nos juristas do século 17 e
sobretudo do século 18, formulada
essa questão a propósito do direito
de vida e de morte. Quando os juristas dizem: quando se contrata,
no plano do contrato social, ou seja, quando os indivíduos se reúnem para constituir um soberano,
para delegar a um soberano um
poder absoluto sobre eles, por que
o fazem? Eles o fazem porque estão
premidos pelo perigo ou pela necessidade. Eles o fazem, por conseguinte, para proteger a vida. É para
poder viver que constituem um soberano. E, nessa medida, a vida pode efetivamente entrar nos direitos
do soberano? Não é a vida que é
fundadora do direito do soberano?
E não pode o soberano reclamar
efetivamente de seus súditos o direito de exercer sobre eles o poder
de vida e de morte, ou seja, pura e
simplesmente, o poder de matá-los? Não deve a vida ficar fora do
contrato, na medida em que ela é
que foi o motivo primordial, inicial
e fundamental do contrato?
Tudo isso é uma discussão de filosofia política que se pode deixar
de lado, mas que mostra bem como o problema da vida começa a
problematizar-se no campo do
pensamento político, da análise do
poder político. De fato, o nível em
que eu gostaria de seguir a transformação não é o nível da teoria
política, mas, antes, o nível dos
mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. Então, aí, topamos com coisas familiares: é que,
nos séculos 17 e 18, viram-se aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo,
no corpo individual. Eram todos
aqueles procedimentos pelos quais
se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e
a organização, em torno desses
corpos individuais, de todo um
campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam
aumentar-lhes a força útil através
do exercício, do treinamento etc.
Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita
de um poder que devia se exercer,
da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de
vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala já
no final do século 17 e no decorrer
do século 18.
Ora, durante a segunda metade
do século 18, eu creio que se vê aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia
de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente
e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e
incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplina prévia.
Essa nova técnica não suprime a
técnica disciplinar simplesmente
porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de
suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes.
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é
-diferentemente da disciplina,
que se dirige ao corpo- a vida dos
homens, ou ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês
quiserem, ao homem-espécie.
Mais precisamente, eu diria isto: a
disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em
que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais
que devem ser vigiados, treinados,
utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia
que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida
em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que
são processos como o nascimento,
a morte, a produção, a doença etc.
Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que
se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda
tomada de poder que, por sua vez,
não é individualizante, mas que é
massificante, se vocês quiserem,
que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do
corpo humano, instaurada no decorrer do século 18, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo
que já não é uma anátomo-política
do corpo humano, mas que eu chamaria de uma "biopolítica" da espécie humana.
De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica,
nesse biopoder que está se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de
um conjunto de processos como a
proporção dos nascimentos e dos
óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população etc.
São esses processos de natalidade,
de mortalidade, de longevidade
que, justamente na segunda metade do século 18, juntamente com
uma porção de problemas econômicos e políticos (os quais não retomo agora), constituíram, acho
eu, os primeiros objetos de saber e
os primeiros alvos de controle dessa biopolítica.
É nesse momento, em todo caso,
que se lança mão da medição estatística desses fenômenos com as
primeiras demografias. É a observação dos procedimentos, mais ou
menos espontâneos, mais ou menos combinados, que eram efetivamente postos em execução na população no tocante à natalidade;
em suma, se vocês preferirem, o
mapeamento dos fenômenos de
controle dos nascimentos tais como eram praticados no século 18.
Isso foi também o esboço de uma
política de natalidade ou, em todo
o caso, de esquemas de intervenção nesses fenômenos globais da
natalidade.
Nessa biopolítica, não se trata
simplesmente do problema da fecundidade. Trata-se também do
problema da morbidade, não mais
simplesmente, como justamente
fora o caso até então, no nível daquelas famosas epidemias cujo perigo havia atormentado tanto os
poderes políticos desde as profundezas da Idade Média (aquelas famosas epidemias que eram dramas temporários da morte multiplicada, da morte tornada iminente para todos). Não é de epidemias
que se trata naquele momento,
mas de algo diferente, no final do
século 18: grosso modo, aquilo que
se poderia chamar de endemias,
ou seja, a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade
das doenças reinantes numa população. Doenças mais ou menos difíceis de extirpar e que não são encaradas como as epidemias, a título de causas de morte mais frequente, mas como fatores permanentes -e é assim que as tratam-
de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de
energias, custos econômicos, tanto
por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que podem custar. Em suma, a doença como fenômeno de população: não
mais como a morte que se abate
brutalmente sobre a vida -é a epidemia-, mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece.
São esses fenômenos que se começa a levar em conta no final do
século 18 e que trazem a introdução de uma medicina que vai ter,
agora, a função maior da higiene
pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos,
de centralização das informação,
de normalização do saber, e que
adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e
de medicalização da população.
Portanto problemas da reprodução, da natalidade, problema da
morbidade também.
O outro campo de intervenção
da biopolítica vai ser todo um conjunto de fenômenos dos quais uns
são universais e outros são acidentais, mas que, de uma parte, nunca
são inteiramente compreensíveis,
mesmo que sejam acidentais, e que
acarretam também consequências
análogas de incapacidade, de pôr
indivíduos fora de circuito, de
neutralização etc. Será o problema
muito importante, já no início do
século 19 (na hora da industrialização), da velhice, do indivíduo que
cai, em consequência, para fora do
campo de capacidade, de atividade. E, da outra parte, os acidentes,
as enfermidades, as anomalias diversas. E é em relação a estes fenômenos que essa biopolítica vai introduzir não somente instituições
de assistência (que existem faz
muito tempo), mas mecanismos
muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a
grande assistência, a um só tempo
maciça e lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis,
mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade etc.
Enfim, último domínio (enumero os principais, em todo o caso os
que apareceram no final do século
18 e no início do 19; haverá muitos
outros depois): a preocupação
com as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto
espécie, enquanto seres vivos, e
seu meio, seu meio de existência
-sejam os efeitos brutos do meio
geográfico, climático, hidrográfico: os problemas, por exemplo,
dos pântanos, das epidemias ligadas à existência dos pântanos durante toda a primeira metade do
século 19. E, igualmente, o problema desse meio, na medida em que
não é um meio natural e em que repercute na população; um meio
que foi criado por ela. Será, essencialmente, o problema da cidade.
Eu lhes assinalo aqui, simplesmente, alguns dos pontos a partir dos
quais se constituiu essa biopolítica, algumas de suas práticas e as
primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao
mesmo tempo: é da natalidade, da
morbidade, das incapacidades
biológicas diversas, dos efeitos do
meio, é disso tudo que a biopolítica
vai extrair seu saber e definir o
campo de intervenção de seu poder.
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