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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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"O Desaparecido" ("Amerika"), de Franz Kafka

Tradução de Susana Kampff Lages

O aposento de Karl ficava no sexto andar de um prédio cujos andares inferiores, ao quais se acresciam mais abaixo outros três andares subterrâneos, eram tomados pela empresa do tio. A luz que penetrava no aposento por duas janelas e pela porta de uma sacada fazia com que Karl toda vez se surpreendesse ao entrar ali pela manhã, vindo de seu pequeno quarto de dormir. Onde teria ele sido obrigado a morar, se tivesse desembarcado em terra como humilde imigrante? Bem, talvez nem tivessem permitido sua entrada nos Estados Unidos, o que o tio considerava inclusive muito provável, dado o seu conhecimento das leis de imigração -teriam-no enviado para casa, sem se preocuparem com fato de que ele não tinha mais uma pátria. Pois aqui não se devia esperar por compaixão, e era totalmente correto o que Karl tinha lido a esse respeito sobre a América: só os felizardos pareciam desfrutar verdadeiramente de sua felicidade entre as faces despreocupadas de seu entorno.
Uma estreita sacada estendia-se diante do quarto em todo o seu comprimento. Mas o que na cidade natal de Karl teria sido o mais alto mirante, aqui não permitia muito mais do que avistar uma rua que corria reta por entre duas fileiras de casas virtualmente entrecortadas e que por isso corria como que em fuga para longe, onde em meio a uma espessa bruma erguiam-se monstruosas as formas de uma catedral. E tanto pela manhã quanto à noite e nos sonhos da madrugada agitava-se nessa rua um tráfego cada vez mais intenso que, visto de cima, aparecia como uma mistura de figuras humanas deformadas e tetos de veículos de toda espécie que se fundiam continuamente uns com os outros, na qual se elevava uma confusão ainda maior e mais selvagem, formada por ruídos, poeira e cheiros -tudo isso envolto e penetrado por um feixe de luz poderoso que era constantemente dissipado, levado e trazido de novo escrupulosamente pela massa de objetos, uma luz que parecia tão corpórea ao olhar atordoado, como se por cima da rua a cada instante se espatifasse violentamente uma placa de vidro que a tudo recobrisse.


Franz Kafka (1883-1924) foi escritor tcheco de língua alemã e um dos mais importantes ficcionistas do século 20. É autor de "O Processo", "A Metamorfose" e "O Castelo", entre outros. O texto acima é parte do romance "América", que será lançado pela editora 34 em .......
Susana Kampff Lages é tradutora e ensaísta, autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp) e "João Guimarães Rosa e a Saudade" (Ateliê).



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