São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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Teatro

O príncipe das trevas

Renovador da dramaturgia, o franco- canadense Robert Lepage fala da nova peça e do fascínio pelo experimentalismo lingüístico e pelo demoníaco

LUCY POWELL

Acredito no diabo, na possibilidade de que você e eu estejamos tendo uma conversa séria e que o diabo entre na sala, de repente. A conversa teria que parar."
A conversa pára de qualquer maneira. Robert Lepage, o festejado escritor, artista e autor franco-canadense, solta uma gargalhada levemente demoníaca, preenchendo o silêncio.
Estamos nas entranhas do teatro Barbican [em Londres], num camarim que é estranha e excessivamente munido de espelhos, algo que exagera a aparência bizarra de Lepage, que sofre de alopecia desde os seis anos de idade.
A peruca que está usando é moderna, castanha, delicada, mas a ausência de cílios e sobrancelhas e o queixo anormalmente liso e sem pêlos lhe conferem o aspecto fascinante de um ser que está na Terra apenas de passagem.
O mesmo pode ser dito de suas falas. Uma conversa com Lepage é como um de seus espetáculos. Salta do mundano ao poético em seqüências tênues, e, sempre que se imagina tê-lo compreendido, zomba de si mesmo até você novamente deixar de entender qualquer coisa. "Não me tornei satanista", diz, rindo, "mas sou fascinado pelo caráter do diabo". O comentário é feito para explicar por que quis dirigir a ópera de Stravinski "The Rake's Progress" (A Trajetória do Libertino, 1951), apresentada em Londres de 7 a 18 deste mês. Baseada nas pinturas setecentistas de William Hogarth, tem partitura neoclássica magnífica e é um dos maiores libretos já escritos, assinado por W.H. Auden e Chester Kallman.
Mas o que atraiu Lepage para o projeto foi sua identificação com o personagem Tom Rakewell, que se deixa seduzir pelas tentações da cidade grande, se casa com uma mulher barbada e perde sua alma e sua sanidade para o mefistofélico Nick Shadow numa malfadada partida de baralho.

Roupa nova
Lepage arrastou Hogarth a Hollywood, ambientando a ópera na Costa Oeste americana nos anos 1950. Quando Tom joga cartas com o diabo, ele vai a Las Vegas para fazê-lo.
"Las Vegas é a cidade das tentações", diz Lepage. "As pessoas vão para lá quando não têm mais nada a perder. Nos seus hotéis, as camareiras sempre trabalham em duplas, já que constantemente encontram os corpos de suicidas." Sempre que Lepage vem à cidade, o cheiro do circo o segue.
Há três décadas seu trabalho vem atraindo ou o opróbrio causticante ou a adulação desvairada. Ele é famoso por fazer teatro para pessoas que não gostam de teatro -espetáculos galhofeiros e surreais, marcados pela tensão entre o romantismo saudosista e uma magia técnica ultramoderna, uma verve visual inimitável e a habilidade de vincular histórias profundamente pessoais com temas intelectuais improvavelmente vastos.
Sempre que o teatro é tachado de arte moribunda, Lepage é citado como prova em contrário. Para cada obra inovadora sua, porém, há uma "débâcle" crítica e confusa, ocasionalmente turva. Ainda em 2002, seu "La Casa Azul", sobre a artista plástica mexicana Frida Kahlo, foi descrito como intelectualmente exaurido e emocionalmente límpido. Lepage diz que se tornou imune às críticas. "Não discordo dos críticos com freqüência nem me deixo destruir pelas críticas negativas. Chega-se a um ponto em que se vai além disso tudo."
Isso o faz soar como uma prima-dona pomposa. Mas, sejam quais forem as outras acusações que se possam fazer a ele -os gastos exorbitantes com seus espetáculos, reduzir atores às lágrimas ao mudar de idéia dias antes de uma estréia ou semanas depois, criar espetáculos solo para os quais só ele possui o carisma necessário para representar-, o epíteto de prima-dona não cola.
"Com "The Andersen Project'" [Projeto Andersen], diz, falando de seu show solo triunfal no Barbican, em 2006, uma ode eclética ao escritor Hans Christian Andersen, "pensei que todas as manchetes diriam "as novas roupas do imperador".
Isso não aconteceu. Mas, na verdade, é com isso que você precisa tomar cuidado: que ninguém perceba quando você não está vestindo nada".
Sua alopecia fez sua infância ser isolada, e uma experiência assustadora com um baseado incrementado com ópio, aos 14 anos, o deixou sofrendo de agorafobia durante meses, até que sua irmã menor, Lynda, hoje sua assistente em Québec, o forçou a atuar numa peça escolar. Lepage afirma que essa experiência salvou sua sanidade e forjou um elo inquebrantável entre ele e o teatro.

Tensão lingüística
Contrastando com isso, sua família era profundamente dividida. Seus pais adotaram dois filhos antes de se mudarem para Québec e conceberem Lepage. Assim, ele e sua irmã biológica falavam francês, enquanto seus irmãos mais velhos, tendo sido criados em Nova Scotia [sudeste do Canadá], falavam inglês. Sua família era "uma metáfora do Canadá".
Essa tensão lingüística é uma experiência que Lepage irá explorar em seu próximo espetáculo, "Lipsynch" [Dublagem, que estará em cartaz no Barbican entre 6 e 14/9], uma colaboração entre sua companhia, a Ex Machina, e o pequeno Théâtre sans Frontières [Teatro sem Fronteiras].
O espetáculo vem sendo desenvolvido há seis anos e terá duração de nove horas, o suficiente para cansar as nádegas do público.
Voz, linguagem e fala são a "divina trindade" por trás de "Dublagem", partindo do pai, da mãe e do eu -se bem que o pai "poderia ser a amante de sua mãe". "A voz do pai pertence à pessoa que exerce o maior impacto emocional sobre sua mãe quando você está no útero", explica Lepage.
"Dublagem" promete explorar implacavelmente a idéia de como nos apoderamos da linguagem, para isso percorrendo os arcos repetidos de nove personagens ao longo de sete décadas (entre 1945 e 2015).
É claro, diz Lepage, que a peça não difere de seu estilo visual fértil, mas, "sim, alguns atores vão aparecer em várias histórias, para manter tudo vinculado -é como fazer uma trança".
Mas, quando se pede que revele a narrativa unificadora, ele faz uma pausa. "É muito complexa", responde, sorrindo. "Outra coisa: ainda não está pronta."
Para a maioria dos autores, tal incerteza seria paralisante.
Para Lepage, porém, é crucial: "Procuro conservar duas coisas em meu trabalho: dúvida e caos. As pessoas me perguntam: "Você tem uma receita, uma "linguagem lepagiana'?" Eu digo que não -deixe essa idéia longe de mim, não a quero.
Gosto de me arriscar".


A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Clara Allain.


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