São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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Sociedade

O mutante

O filósofo esloveno Slavoj Zizek escreve sobre a prisão do ex-líder sérvio indiciado por genocídio Radovan Karadzic, preso na última segunda

SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Radovan Karadzic, líder sérvio bósnio responsável por uma terrível limpeza étnica na guerra pós-iugoslava, finalmente está preso. Agora é hora de darmos um passo para trás para contemplar o outro lado de sua personalidade: esse psiquiatra por profissão foi não apenas um líder político e militar implacável, mas também poeta. Sua poesia não deve ser simplesmente descartada como ridícula -merece ser lida com atenção, pois oferece uma pista para a compreensão de como funciona a limpeza étnica.
Seguem os primeiros versos do poema sem título identificado por uma dedicatória: "... Para Izlet Sarajlic":
"Converta-se à minha nova fé, multidão / Eu lhe ofereço o que nunca ninguém teve antes / Lhe ofereço inclemência e vinho / Aquele que não terá pão será alimentado pela luz de meu sol / Povo, em minha fé nada é proibido / Há amor e há bebida / E olhar para o Sol por tanto tempo quanto quiserem / E essa divindade não proíbe nada / Dêem ouvidos a meu chamado, irmãos, povo, multidão."
Esses versos descrevem uma constelação precisa: um líder que oferece a seus súditos "inclemência e vinho", ou seja, um líder que representa o chamado incondicional do superego brutal e obsceno pela suspensão de todas as proibições e o gozo de uma orgia destrutiva permanente.
O superego é "essa divindade" que "não proíbe nada", e tal suspensão das proibições morais é um elemento crucial do nacionalismo "pós-moderno" de hoje. Aqui é virado do avesso o clichê segundo o qual a identificação étnica ardente restaura um conjunto de valores e crenças firmes em meio à insegurança confusa da moderna sociedade secular global.

"Você pode!"
Em lugar disso, o "fundamentalismo" nacionalista funciona como operador de um "você pode!" secreto, mal e mal oculto.
É a aparentemente hedonista e permissiva sociedade reflexiva pós-moderna de hoje que, de modo paradoxal, está cada vez mais saturada de normas e regulamentos que supostamente fomentam nosso bem-estar (restrições ao fumar e ao comer, regras contra o assédio sexual etc.) -de modo que, longe de nos restringir ainda mais, a referência a alguma identificação étnica ardente funciona como o chamado libertador "você pode!".
Você é autorizado a violar as normas rígidas da convivência pacífica numa sociedade liberal tolerante, você pode beber e comer o que quiser, aderir aos costumes patriarcais proibidos pela correção política liberal -pode até mesmo odiar, lutar, matar e violentar...
Sem o pleno reconhecimento desse perverso efeito pseudolibertador do nacionalismo de hoje, de como o superego obscenamente permissivo suplementa a textura explícita da lei social simbólica, nós nos condenamos a não compreender sua verdadeira dinâmica.
O conhecido colunista sérvio Aleksandar Tijanic, que durante um período breve chegou a ser ministro da Informação e Mídia Pública de Milosevic [Slobodan Milosevic, ex-presidente sérvio, que foi preso em 2000 e morreu na prisão em 2006], descreve nos seguintes termos "a estranha simbiose entre Milosevic e os sérvios":
"Milosevic cai bem junto dos sérvios, de modo geral. Na época de seu governo, os sérvios aboliram o tempo para trabalhar. Ninguém fazia nada. Ele autorizou o crescimento do mercado negro e do contrabando. Você pode aparecer na televisão estatal e insultar Blair, Clinton ou qualquer outro dos "dignitários mundiais". [...] Ademais, Milosevic nos deu o direito de portar armas. Ele nos deu o direito de resolver todos nossos problemas com armas. Ele também nos deu o direito de dirigir carros roubados. [...] Milosevic converteu o cotidiano dos sérvios em um grande feriado e fez com que todos pudéssemos nos sentir como estudantes ginasianos numa viagem de formatura -o que significa que nada, mas realmente nada, do que se possa fazer é passível de punição."

Kusturica tendencioso
Não é essa, também, a situação retratada em "Underground - Mentiras de Guerra", de Emir Kusturica?
A mensagem do filme não reside primordialmente em sua tendenciosidade descarada, na maneira como toma partido no conflito pós-iugoslavo (os sérvios heróicos versus os traiçoeiros e pró-nazistas eslovenos e croatas...), mas sim em sua própria atitude esteticista, supostamente despolitizada.
Ou seja, quando, em suas conversas com os jornalistas da "Cahiers du Cinéma", Kusturica insistiu em que "Underground" não é um filme político, mas uma espécie de experiência subjetiva liminar, semelhante a um transe, um "suicídio protelado", ele com isso, sem ter consciência do que fazia, pôs sobre a mesa suas cartas políticas verdadeiras e indicou que "Underground" encena o pano de fundo fantasmático e "apolítico" da limpeza étnica e das crueldades de guerra pós-iugoslavas.
Ao encenar o domínio do "suicídio protelado", da orgia eterna de bebida, canto e cópula, que ocorre na suspensão do tempo e fora do espaço público, Kusturica de fato apresenta a economia libidinal da matança étnica sérvia na Bósnia. E é nisso que consiste o "sonho" dos limpadores étnicos, é nisso que reside a resposta à pergunta "como eles foram capazes de fazê-lo?".
Se a definição padrão de guerra é a de "uma continuação da política com outros meios", então podemos afirmar que o fato de Karadzic ser poeta não é mera coincidência gratuita: a limpeza étnica na Bósnia foi a continuação de uma (espécie de) poesia por outros meios.
A reputação de Platão é prejudicada por sua declaração de que os poetas deveriam ser expulsos da cidade. A julgar por essa experiência pós-iugoslava, em que a limpeza étnica foi preparada pelos sonhos perigosos de poetas, é um conselho bastante sensato. É verdade que Milosevic "manipulou" as paixões nacionalistas -mas foram os poetas que lhe forneceram o material que se prestou a ser manipulado. Eles -os poetas sinceros, não os políticos corrompidos- estiveram na origem de tudo, quando, nos anos 1970 e início dos anos 1980, começaram a espalhar as sementes do nacionalismo agressivo não apenas na Sérvia, mas também em outras repúblicas pós-iugoslavas.
Em lugar do complexo industrial-militar, nós, na pós-Iugoslávia, tivemos o complexo poético-militar, personificado nas figuras gêmeas de Radovan Karadzic e Ratko Mladic. A Iugoslávia nos anos 1970 e 1980 era como o proverbial gato na charge, que continua a caminhar sobre um precipício.
Ele só cai quando, finalmente, olha para baixo e percebe que não existe terra firme sob suas patas. Milosevic foi o primeiro que nos forçou a realmente olhar para baixo, para dentro do precipício.
É demasiado fácil descartar Karadzic e companhia, tachando-os simplesmente de maus poetas: outras nações ex-iugoslavas (além da própria Sérvia) tiveram poetas e escritores reconhecidos como "grandes" e "autênticos" e que também se engajaram plenamente em seus projetos nacionalistas.
E o que dizer do austríaco Peter Handke, clássico da literatura européia contemporânea, que, reveladoramente, acompanhou o funeral de Slobodan Milosevic?

Era pós-ideológica
O predomínio da violência religiosamente (ou etnicamente) justificada pode ser explicado pelo próprio fato de vivermos numa era que se vê como sendo pós-ideológica.
Como já não é possível mobilizar grandes causas públicas com base na violência em massa -ou seja, a guerra- na medida em que nossa ideologia hegemônica nos chama para desfrutar nossas vidas e realizar nossos eus, é difícil para a maioria das pessoas superar sua repugnância diante da idéia de torturar e matar outro ser humano.
A grande maioria das pessoas é espontaneamente "moral":
matar outro ser humano é profundamente traumático. Assim, para convencê-las a fazê-lo, é preciso uma causa "sagrada" maior, que faça os melindres individuais em relação ao assassinato parecerem triviais.

Anestesia
A religião ou o pertencimento étnico se enquadram perfeitamente nesse papel. É claro que existem casos de ateus patológicos que são capazes de cometer assassinatos em massa apenas por prazer, matar simplesmente por matar, mas eles constituem exceções raras.
A maioria de nós precisa ser "anestesiada" contra nossa sensibilidade elementar ao sofrimento do outro. E para isso é preciso uma causa sagrada.
Mais de um século atrás, em "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski lançou um aviso contra os perigos do niilismo moral ateu: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". A lição que nos ensina o terrorismo de hoje é que, pelo contrário, se existe um Deus, então tudo -até mesmo explodir centenas de espectadores inocentes- é permitido àqueles que afirmam agir diretamente em nome desse Deus, como instrumentos de Sua vontade.


SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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