São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Seitas e igrejas na história do conhecimento


O historiador cultural descobre ciclos de criatividade e rotina: no começo do século 20 a psicanálise era uma seita, florescendo em pequenos grupos informais, mas depois virou uma igreja

Peter Burke

Um renomado sociólogo alemão da religião, Ernst Troeltsch (1865-1923), distinguiu duas espécies de organizações cristãs, "seitas" e "igrejas". Seitas eram grupos relativamente pequenos, informais na organização, igualitários na estrutura e heterodoxos nas crenças. Igrejas eram relativamente grandes, formais, hierárquicas e ortodoxas. Segundo Troeltsch, havia uma tendência praticamente inevitável de as seitas, caso sobrevivessem por mais de uma geração, se converterem em igrejas com as suas próprias ortodoxias, as quais por sua vez seriam desafiadas por novas seitas. Em certos aspectos, os intelectuais se assemelham ao clero, e às vezes me pergunto se o modelo cíclico de mudança proposto por Troeltsch não seria aplicável, mais amplamente do que o imaginado, à história do conhecimento acadêmico e das universidades. De fato, sugere ele um elo entre duas teorias sociológicas aparentemente opostas, interessadas respectivamente nos processos de reprodução intelectual e na inovação intelectual.
A primeira teoria, associada hoje a Pierre Bourdieu, ocupa-se daquilo que ele chama a "inércia das instituições educacionais" e, em especial, de sua tendência em reproduzirem a si mesmas, de criarem e transmitirem "capital" intelectual. Outro grande teórico social, Norbert Elias (1897-1990), tinha algo semelhante a dizer a respeito do que chamava os establishments intelectuais. Elias descreveu os departamentos universitários como tendo "algumas das características dos Estados soberanos" e analisou a sua competição por recursos e as suas tentativas de erigir monopólios e excluir rivais, transformando-os em forasteiros.

Na fronteira cultural
A segunda teoria ocupa-se precisamente dos forasteiros, de indivíduos e grupos à margem da sociedade e do papel que eles cumprem no processo de inovação. Num famoso ensaio sobre "a primazia intelectual dos judeus na Europa moderna", publicado em 1919, o sociólogo americano Thorstein Veblen (1857-1929) sugeriu que tal primazia atingiu seu ápice no século 19, bem na época em que muitos judeus estavam sendo assimilados à cultura cristã. Sua tese era de que a assimilação deles ainda era incompleta, que os intelectuais judeus estavam rejeitando a sua própria herança cultural sem assumir por completo a dos não-judeus. A posição deles, na fronteira de dois mundos culturais, fomentava o ceticismo, o desprendimento e, portanto, a inovação.
Um modo de testar essas teorias complementares seria ver como dão conta da história das universidades européias entre o Renascimento e o Iluminismo. Para a baixa Idade Média, a teoria de Bourdieu funciona bem. Supunha-se em geral que as descobertas relevantes já haviam sido feitas, de modo que as universidades deviam concentrar-se em transmitir conhecimento em vez de descobri-lo. De modo análogo, supunha-se em geral que as opiniões e interpretações dos grandes doutores e filósofos do passado não podiam ser igualadas ou refutadas pela posteridade, de modo que a tarefa do professor era expor as visões das autoridades.
Alguns, notadamente os heréticos, desafiaram esse consenso. Eram eles o equivalente dos forasteiros de Veblen, mas foram malsucedidos. Seu fracasso sugere que algo precisa ser acrescentado à teoria de inovação de Veblen. O problema dos heréticos era sua falta de respaldo institucional. Os inovadores precisam de novas instituições e em especial de novos tipos de instituição, nichos ecológicos em que a criatividade seja encorajada. Essa lição foi aprendida pelos humanistas da Renascença.
Os humanistas se opuseram a boa parte da sabedoria convencional de Tomás de Aquino e de outros professores das universidades medievais. Embora a maioria dos humanistas tivesse originalmente estudado nas próprias universidades que criticava, as figuras mais criativas, de Petrarca a Erasmo, passaram a maior parte de suas vidas fora do sistema. Eram um grupo marginal, no sentido de Thorstein Veblen. Para encontrarem-se e discutirem suas idéias, fundaram instituições formais conhecidas, em deliberada homenagem a Platão, como "academias".
Na fímbria do mundo acadêmico, outras instituições novas foram fundadas para coligir e transmitir o novo conhecimento. A Casa de Contratación de Sevilha (fundada em 1504) colhia informação sobre o mundo para além da Europa e distribuía instruções de navegação. Na Lisboa do século 16, a Casa da Índia e o Armazém de Guiné eram depósitos de conhecimento bem como de mercadorias e ferramentas. As idéias dos humanistas gradualmente se infiltraram nas universidades da Europa, em especial no século 16. Cátedras ou ciclos de conferências na área de "humanidades" foram estabelecidos em Pádua, Salamanca, Oxford e outros lugares.

Rotina e criatividade
Mas a essa altura a fase mais criativa do movimento já havia terminado. A história da chamada "revolução científica" do século 17 é semelhante à do humanismo. De início, as universidades não eram um meio simpático à "nova filosofia", ou seja, a estudos como a química, que não se ajustavam bem ao currículo acadêmico estabelecido. Alguns dos inovadores de ponta viviam à margem do mundo acadêmico e do mundo dos artesãos, aprendendo com ambos os grupos e tentando fazer uma síntese entre essas formas rivais de conhecimento. A fim de discutir suas idéias, fundaram clubes e sociedades, das quais a Royal Society de Londres, fundada em 1660, é a mais famosa.
Ao final do século 17, a nova filosofia tornava-se respeitável, e Isaac Newton foi capaz de seguir sua carreira intelectual em Cambridge. Contudo Newton pertencia à segunda geração de inovadores, em cuja época o que fora heresia científica virava ortodoxia ou o que o filósofo Thomas Kuhn costumava chamar "ciência normal".
O movimento do Iluminismo no século 18 seguiu um padrão semelhante. Alguns de seus líderes vieram do mundo dos ofícios, não do mundo das ciências; Rousseau era filho de um relojoeiro, e Diderot, filho de um faqueiro. Por toda sua vida Diderot continuou a se interessar pelo conhecimento e pela prática dos artesãos. A exemplo de séculos anteriores, as universidades nem sempre davam acolhida calorosa a novas idéias, em especial a idéias sobre temas como economia, que não tinham espaço no currículo. Adam Smith, por exemplo, foi professor de filosofia na Universidade de Glasgow. Quando quis escrever sua obra-prima, a "Riqueza das Nações", pediu exoneração de sua cátedra (em 1764).
Quando Smith e seus amigos, tais como o filósofo David Hume, desejavam discutir suas idéias, encontravam-se nos recém-fundados clubes de Edimburgo e Glasgow, como a Sociedade Seleta e o Clube de Economia Política. Na França, os "philosophes" encontravam-se em cafés como o Procope ou em academias de província, não nas universidades. Na época em que a economia tornou-se uma parte normal do currículo das universidades européias, o Iluminismo já terminara.
De forma recorrente, o historiador cultural descobre ciclos de criatividade e rotina. No começo do século 20, por exemplo, o movimento psicanalítico era uma seita, florescendo em pequenos grupos informais, mas depois virou uma igreja. Esses exemplos históricos sugerem que Veblen estava certo ao indicar o intelectual marginal como a fonte de novas idéias, e também que Bourdieu estava certo ao notar a inércia das instituições educacionais, sua resistência à mudança, mas também que falta algo importante a ambas as teorias. Veblen não reconheceu a importância das instituições informais para a criatividade, enquanto a teoria de Bourdieu não explica como as universidades acabam aceitando as inovações e lhes dando até maior desenvolvimento.
A moral da história é que os inovadores precisam amar e também odiar as instituições. O pensador solitário, como Descartes, pode dar origem a idéias novas brilhantes, mas para desenvolvê-las ou colocá-las em prática é preciso fundar novas instituições. Essas instituições são muitas vezes informais, flexíveis e igualitárias, favorecendo o processo de troca intelectual. No entanto, parece quase inevitável que cedo ou tarde endureçam, fiquem rígidas e virem assim obstáculos a posteriores inovações. Tornam-se locais de interesses inveterados, de grupos que investiram no sistema e temem perder o seu capital cultural.

Igualdade efêmera
E assim, uma forma de encarar a história social do conhecimento é vê-la como a história dos encontros, interações e trocas entre establishments e forasteiros, amadores e profissionais, inovação e rotina, fluidez e fixidez, conhecimento oficial e não-oficial. O grande contraste é entre círculos ou redes, de um lado, e, de outro, instituições com membros fixos e esferas de competência oficialmente definidas, construindo e mantendo barreiras que as separam de seus rivais e dos leigos. Em outras palavras, a história do conhecimento, como a história da religião, é a história da mudança de seitas entusiásticas para igrejas estáveis, uma mudança que se repetiu por muitas e muitas vezes. Essa não é uma simples história de declínio e queda: ambas as formas de organização têm suas respectivas vantagens e desvantagens, custos e benefícios.
Mas, se alguém deseja encorajar a inovação intelectual, seria aconselhável buscar marginalizados e criar uma atmosfera de igualdade, informalidade e flexibilidade, sabendo ao mesmo tempo que ela não irá durar.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.



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