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Série "Harry Potter", cujo segundo volume, "A Câmara Secreta",
está sendo lançado no Brasil, revitaliza as convenções do conto de fadas
Os sortilégios do sucesso
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Mais uma vez os britânicos -no caso, uma
escocesa- levam a palma com um livro
para crianças, este "Harry Potter" ("Harry
Potter e a Pedra Filosofal"), cujo segundo
volume ("Harry Potter e a Câmara Secreta") está sendo
lançado em português. Cabe a eles, não se sabe bem por
que sortilégios, o segredo, que detêm, da boa literatura
para menores. Podemos deparar com um ou outro clássico que provenha de quadrantes diversos: da Dinamarca, os contos de Andersen; da Itália, o "Pinóquio"
de Collodi; da Arábia, as "Mil e Uma Noites"; do Brasil,
as obras de Monteiro Lobato; e assim por diante. Mas
no ramo, tal como no romance policial, os britânicos
são insuperáveis.
Basta invocar Alice, Peter Pan, o Ursinho Pooh, que,
acreditem, foi vertido para o latim em nosso país. Ampliando o âmbito, seria possível incluir os relatos propriamente de aventuras, como os de Robert Louis Stevenson, ou as façanhas de Gulliver, se não for abusivo
colocá-lo nessa camisa-de-força. Ou ainda uma certa linha ficcional de Walter Scott em que é modelar "Ivanhoé", de que Robin Hood é personagem, sem falar em
toda a vasta saga que tem nesse proscrito seu herói.
Incomparáveis são os de Rudyard Kipling, "Kim" e
"O Livro da Selva", bem como "As Aventuras de Robinson Crusoé", de Daniel Defoe. Nada em desfavor de
Alexandre Dumas, pelo contrário, só gratidão, mas
nem mesmo as letras francesas podem se gabar de uma
tal cornucópia.
Uma das razões desse acerto pode ser buscada nas mitologias européias, mais nórdicas ou não-latinas, criação dos povos bárbaros e território de fadas. Escapando
à romanização, por sua vez já sincretizada às fontes helênicas, começam a ressurgir com a contínua elaboração das línguas vernáculas e de suas literaturas, ali pela
Idade Média. Configuram-se então verdadeiros complexos de temas e motivos, como o Fausto ou a Távola
Redonda, que não pertencem nem à tradição bíblica e
cristã nem à tradição greco-latina, encontrando sua primeira codificação na poesia oral e logo depois na novela
de cavalaria. A revalorização tanto do medieval quanto
do populário efetuada mais tarde pelo romantismo
procederia à redescoberta dos contos de fadas, obras-primas de que um mundo deslumbrado tomaria conhecimento graças à coleta e adaptação devidas aos irmãos Grimm, na Alemanha, e a Perrault, na França.
Diálogo e cena
A série "Harry Potter" revitaliza o
conto de fadas, acompanhando de perto o paradigma
do gênero. De um lado, jogando com duas temporalidades: uma primeira, que adota o ponto de vista da criança, antes de descobrir a finitude e a morte; uma segunda, que rejeita a modernidade e admite no máximo o
trem. De outro lado, apostando num discurso que visa à
rapidez do ritmo, sendo só diálogo e cena, jamais descrição ou sumário.
É assim que "Harry Potter" propõe como protagonista, inescapável no gênero, um herói de dez anos, de origem obscura e órfão, como não podia deixar de ser. Segue-se o calvário usual do Patinho Feio, cabendo-lhe os
castigos injustos e os suplícios que são o quinhão de
Cinderela, de João e Maria abandonados na mata, de
Branca de Neve, entre outros.
Harry tem dons extraordinários e, embora não saiba,
é um bruxo. Comparecem um arquivilão, Voldemort, e
uma tríade de maus bofes, os tios que o criam trancado
num armário e um facinoroso primo. A este, qualquer
leitor, ainda mais se for criança, adoraria torcer o pescoço. Também na escola de bruxaria haverá professores e
colegas perseguidores. Mas os protetores estarão em vigilância. Dentre estes, acolitado por alguns mestres e
amiguinhos, vem à frente Alvo Dumbledore, antagonista de Voldemort e altamente colocado na hierarquia
dos bruxos. Adversários e aliados se distribuem simetricamente, na simplificação maniqueísta peculiar ao
gênero estudado por Propp em "Morfologia do Conto
Maravilhoso".
Harry forçosamente ostenta na testa uma cicatriz em
forma de relâmpago, que ao mesmo tempo o estigmatiza e predestina. A que os óculos só vêm acrescentar uma
vulnerabilidade muito sedutora. Pululam objetos mágicos -vassouras voadoras, varinhas de condão (vendidas na loja do sr. Olivaras), corujas-correio, amuletos e
talismãs. Além disso, a própria magia é tematizada. E a
narrativa se povoa de seres sobrenaturais, como fantasmas, unicórnios, dragões, cães tricéfalos, trasgos. O paradigma do conto de fadas, como se sabe, consta de invariantes que se encadeiam linearmente. Um herói de
nascimento obscuro, órfão ou enjeitado, é submetido a
provas, que vai vencendo -apesar das ciladas do malvado e seus asseclas- até atingir seu destino excepcional de príncipe, deus ou, no caso, mago. Assim, verificamos como "Harry Potter" acompanha espertamente a
morfologia definida por Propp, em sua estrutura de
funções e actantes, até no fato de que a primeira função
é a de afastamento.
Supondo que a tradução se tenha processado em caráter de urgência como é de praxe para os best sellers,
dada a pressa de lançá-los aproveitando a onda internacional, é de admirar que seja tão boa. Para começar, os
"wizards" e os "muggles", isto é, os dotados de poderes
excepcionais e os não-dotados, são transpostos com felicidade para "bruxos" e "trouxas", explorando os sons
até melhor que o original. Alguns termos são judiciosamente mantidos em inglês, como o título da escola de
bruxaria ou a identificação do arquivilão Voldemort,
assustadora mesmo em português e sem perder a similaridade com Valdemar. Este não deve ser chamado por
seu nome tabu, mas eufemisticamente por "Você-Sabe-Quem". Algumas versões de onomásticos, aumentando
a familiaridade, constituem bons achados, como Vernon, Dudley e Albus tornados tio Valter, o hediondo
primo Duda e Alvo. Já os rótulos das quatro confrarias
escolares -Hufflepuff, Ravenclaw, Gryffindor, Slytherin, transpostas para Lufa-Lufa, Corvinal, Grifinória,
Sonserina- permanecem mais belos no original, com
todas as suas associações e sugestões fonéticas.
Uma outra empreitada inglesa no ramo, que nesta
ressoa, tinha sido a de Tolkien décadas antes, produzindo primeiro o cativante "O Hobbit" e, na sequência, "O
Senhor dos Anéis", em vários volumes que se tornariam cult no mundo todo. Tolkien foi obsessivamente
multiplicando os coelhos, isto é, os anéis, as espadas enfeitiçadas e as intrigas, para desespero de autor e leitores
(vide biografia autorizada, de Hugh Carpenter), sem jamais conseguir represar a proliferação e pôr um ponto
final na série, que ficou inconclusa.
Conan Doyle e as fadas
Mas, apesar de tudo,
quem não se deleita com contos de fadas? Nem Conan
Doyle se mostrou imune, a contrapelo de seu perfil de
paladino da racionalidade, personificado na dedução
detetivesca de Sherlock Holmes. É verdade que a plataforma de número nove e meio, na qual Harry toma o
trem com sua turma na estação londrina de King's
Cross, não existe -lembrando o célebre precedente do
endereço de Sherlock Holmes, 221 B na Baker Street,
que os fãs teimam em visitar e que tampouco existe.
Pois Conan Doyle acabou escrevendo um livrinho
("The Coming of The Fairies", 1922) em que postula a
existência das fadas, acolhendo testemunhos de pessoas
que as tinham visto e até fotografado pousadas naqueles miríficos prados ingleses que parecem exigi-las, em
instantâneos que faz questão de estampar. É mais um
ponto de fuga para onde confluem duas das excelências
literárias britânicas, a infantil e a policial.
Harry Potter e a Pedra Filosofal
264 págs., R$ 22,00
de J.K. Rowland. Tradução de Lia Wyler. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 507-2000).
Harry Potter e a Câmara Secreta
288 págs., R$ 22,00
Trad. de Lia Wyler. Ed. Rocco.
Harry Potter and the Prisoner of Azkaban
485 págs., US$ 19,95. Ed. Scholastic (EUA).
Harry Potter and the Goblet of Fire
734 págs., US$ 25,95. Ed. Scholastic (EUA).
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na FNAC (tel.
0/ xx/11/ 867-0022), e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (tel.
0/xx/ 21/533-2237).
Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre
outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).
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