São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ arte

O pupilo Picasso

Exposições na Espanha apresentam lado a lado obras do pintor catalão e de mestres em que se inspirou, como Goya e Rembrandt

BÉRÉNICE BAILLY

Pablo Picasso é muitas vezes descrito como um gênio da ruptura, ou como o artista que ofereceu ao século 20 suas formas mais inéditas. Mas ele mantinha igualmente uma relação apaixonada com os grandes mestres do passado -chegava até a assinar alguns trabalhos como "Domenico Theotocopoulos van Rijn da Silva", homenageando El Greco, Rembrandt e Velasquez.
O Museu do Prado e o Museu Rainha Sofia, em Madri, tentam, agora, traçar essas afiliações por meio de uma dupla exposição, intitulada "Picasso, Tradição e Vanguarda".
Com apetite insaciável, esse grande inventor de formas se nutriu durante toda a vida do trabalho de pintores do passado: Zurbaran, Ribera, Poussin, Delacroix, Cézanne...
Ele os descobriu no Prado ou no Louvre, admirou suas luzes, suas composições ou sua expressividade. Mas jamais os copiou: Picasso acima de tudo reinterpretava os trabalhos deles, algumas vezes de maneira quase obsessiva.
Ao propor essa confrontação direta, os dois museus madrilenhos evocam sua desrespeitosa devoção aos predecessores, com a ajuda do empréstimo de algumas obras excepcionais da parte de museus estrangeiros.
A exposição do Prado se abre com a célebre alegoria intitulada "La Vie" [A Vida, 1903], vinda de Cleveland. Longas silhuetas evanescentes e penetradas pelo azul que ecoam de maneira soberba o ziguezague do corpo de Cristo, traçado por linhas tênues e melancólicas na "Trindade" de El Greco.
Já os períodos azul e rosa testemunham a redescoberta da escola espanhola pela vanguarda, no começo do século 20. Mas o gênio catalão mistura mil recordações a essas influências: a geometria de Cézanne, a solenidade da Grécia.

Rosto rasgado
Em "La Repasseuse", a influência de Degas encontra a austeridade do barroco ibérico. "Femme à l'Éventail" [Mulher com Leque], obra cubista, evoca de maneira filigranada as virgens hieráticas da era romana, matizadas por uma inventividade escultural tomada de empréstimo da arte africana.
O rosto rasgado pelas lágrimas em "La Pleureuse" recorda todas as mater dolorosas, as mães sofridas representadas na exposição por um comovente Ticiano. E o corpo bem delineado em "Grand Nu" [Grande Nu] aponta para suas origens na "Maya Desnuda", de Goya.
Todas essas influências são conhecidas e vêm sendo objetos de pesquisas há decênios. O Prado não inventou nada. Mas o confronto das obras entre si gera o mais belo efeito, ainda que tenham sido esquecidos alguns vínculos importantes.
"As Meninas", de Velasquez, faria bela figura aqui. Picasso passou meses estudando esse trabalho, mas não existem trabalhos de Velasquez acompanhando as múltiplas variações inspiradas por essa obra-prima. Outro trabalho notável pela ausência, bastante perceptível, é o "Dejeuner sur l'Herbe" [Almoço na Grama], de Edouard Manet, um dos marcos da modernidade estética ao qual o mestre também prestou homenagem.
A visita ao Rainha Sofia nos consola por essas lacunas. O ponto de partida da exposição é o 25º aniversário do retorno de "Guernica" à Espanha. Pouco depois que a democracia foi restaurada na Espanha, em 1976, o célebre quadro deixou o MoMA, de Nova York, que o abrigara durante o regime de Franco, para encontrar seu espaço definitivo em Madri, como dispôs o artista.
Por ocasião do aniversário, o museu Rainha Sofia apresenta, como de hábito, a obra-prima que é a pérola de sua coleção. "Guernica" foi inspirado pelo massacre em bombardeio aéreo de uma aldeia basca, na Guerra Civil Espanhola, e está acompanhado de diversos de seus desenhos preparatórios.
Mas a novidade pode ser encontrada em outra ala, que reúne três telas que resumem os propósitos da exposição.
"Le Massacre en Corée" [Massacre na Coréia], de Picasso, está em exibição diante de dois quadros que o inspiraram, o "Tres de Mayo" (1814), de Goya, e "L'Exécution de l'Empereur Maximilien" [A Execução do Imperador Maximiliano, 1868], de Manet. A mesma composição, a mesma condenação à guerra: face a face, os inocentes e os carrascos.
Entre eles, as linhas frias dos fuzis, que escandem as três telas. A comparação é magistral, a filiação é direta, mas uma conclusão se impõe: o mistério de Picasso continua essencialmente irredutível a essas influências do passado.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.

Na internet
Museu Prado,
www.museoprado.es
Museu Rainha Sofia, www.museoreinasofia.es


Texto Anterior: + sociedade: Educação à distância
Próximo Texto: Saem no Brasil "Os Papéis de Picasso", de Rosalind Krauss
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.