São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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As formas da devassidão

Entre o realismo e a fantasia, "A Síndrome de Ulisses" e "Trópico de Câncer" elevam o sexo a modo de conhecimento do mundo

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lançado em 1934, o primeiro romance de Henry Miller suscitou testemunhos apaixonados por parte de alguns dos mais importantes artistas da época. Entre eles estavam nomes como T.S. Eliot, Ezra Pound e Samuel Beckett, que aclamou o livro como "um evento monumental da história da escrita moderna". Dessas manifestações, a mais expressiva talvez seja aquela registrada por Lawrence Durrell em carta ao amigo: "Saúdo em "Trópico de Câncer" o manual da minha geração". De fato, aos olhos dos contemporâneos de Miller, o relato da vida boêmia de um escritor americano na Paris dos anos 1930 excedia em muito a visada autobiográfica para transformar-se no espelho em que sua geração contemplava as próprias fantasias. Tal qual um profeta, o autor oferecia aos artistas da época um retrato nada edificante, marcado por signos da marginalidade, sob o sombrio pano de fundo do pós-guerra. Porém, ainda que a sensação de vazio e embriaguez do narrador traduzisse a consciência dilacerada de uma sociedade em crise, seu voto de fé no sexo e na devassidão criava um mundo à parte, onde prevaleciam os imperativos do desejo. Não surpreende, portanto, que "Trópico de Câncer" evoque dois textos fundantes do surrealismo, escritos na década anterior, com os quais trava intenso diálogo: "O Camponês de Paris", de Louis Aragon, e "Nádia", de André Breton. Pautados pelo tom autobiográfico, são livros que lançam um novo olhar sobre a capital francesa, apostando na via da transgressão e do erotismo. Assim como em Miller, os narradores se abandonam à exploração dos espaços mais obscuros da cidade, perambulando por locais de reputação duvidosa e vasculhando os domínios mais baixos da condição humana.

Surrealismo
Ora, uma tal afinidade não é fruto do acaso. O escritor americano conhecia bem as idéias de Breton, a quem foi apresentado em 1930, quando desembarcou em Paris. Chegou a se aproximar de alguns membros do grupo, com os quais compartilhava o fascínio pelo "bas-fond". Diversas vezes afirmou se reconhecer como um autor surrealista, habituado que era ao expediente de justapor memórias e cenas imaginárias, de criar distorções cômicas e deformações delirantes. Apesar disso, a dicção seca de Miller guarda distância do tom francamente onírico de Breton e de Aragon. Sua verve direta e debochada coloca diante do leitor um personagem que oscila entre o lirismo objetivo e a crueza verbal, com contornos distintos daqueles concebidos por seus amigos franceses. Afinal, não se pode esquecer que o protagonista de "Trópico", a exemplo de seu criador, é um americano. E isso faz toda a diferença. Trata-se de um sujeito que, mesmo estando dentro, continua do lado de fora, olhando para a cidade a partir da margem: "Paris é como uma puta. De longe, parece encantadora, você fica ansioso para tê-la nos braços. Cinco minutos depois, sente-se vazio, insatisfeito consigo mesmo. Enganado". Por certo, uma passagem como essa dificilmente seria escrita por um parisiense, a quem faltaria a distância essencial para produzir tal estranhamento. A rigor, só poderia sair das mãos de alguém como Miller. Ou, então, de alguém como Santiago Gamboa que, passados mais de 70 anos, se volta para a capital francesa apostando em semelhante embocadura. Como que atualizando o "Trópico de Câncer" para o final do século 20, seu romance "A Síndrome de Ulisses" apresenta Paris pelos olhos de imigrantes que, sejam legais ou ilegais, ocupam uma posição marginal nessa sociedade. Deslocados em uma "cidade populosa e fantasmal onde nenhum de nós, na realidade, existia", seus personagens desmentem a imagem idealizada da convivência multicultural em um país "civilizado", para oferecer um quadro impiedoso da vida do estrangeiro na Europa contemporânea. São romenos, libaneses, senegaleses, coreanos, somalis e latino-americanos de diversas procedências que, na qualidade de exilados políticos ou econômicos, sobrevivem como podem, mas sempre "atormentados pela idéia de morrer sem que ninguém saiba".

Distúrbio psicológico
Daí o título do romance, remetendo a um grave distúrbio psicológico que acomete sujeitos acuados pela situação de clandestinidade e pela exclusão social. Imigrante em Paris nos anos 1990, o escritor se vale de uma dicção vigorosa, próxima à de Miller, detendo-se com freqüência nas aventuras sexuais de seus personagens. Mas, convicto de que "a miséria gera um certo erotismo", o narrador colombiano não funda um mundo sexual autônomo, como fazem o protagonista de "Trópico" e seus inspiradores surrealistas. No relato de Gamboa, a fantasia erótica se rende aos limites das convenções realistas. Mais que literária, porém, essa diferença é sobretudo histórica. Já não há mais espaço, no mundo contemporâneo, para aquela marginalidade glamourosa cultivada por Breton, Aragon e Miller nas primeiras décadas do século 20. O marginal cedeu lugar ao excluído. As palavras de ordem que incitavam à "transgressão" foram definitivamente substituídas por aquelas que reivindicam a "inclusão". Condenado ao foco realista e incluído até a exaustão, o sexo perdeu sua vocação subversiva. Talvez seja o caso de saudarmos, em "A Síndrome de Ulisses", o manual da nossa geração.


ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica e no Centro Universitário Senac (SP). É autora de "O Corpo Impossível" e "Lições de Sade - Ensaios sobre a Imaginação Libertina" (Ed. Iluminuras).
TRÓPICO DE CÂNCER
Autor: Henry Miller
Tradução: Sonia Coutinho
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 40 (294 págs.)

A SÍNDROME DE ULISSES
Autor: Santiago Gamboa
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (376 págs.)


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