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As formas da devassidão
Entre o realismo e a fantasia,
"A Síndrome de Ulisses" e "Trópico de Câncer" elevam o sexo a modo de conhecimento do mundo
ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lançado em 1934, o primeiro romance de
Henry Miller suscitou
testemunhos apaixonados por parte de alguns dos mais importantes artistas da época. Entre eles estavam nomes como T.S. Eliot,
Ezra Pound e Samuel Beckett,
que aclamou o livro como "um
evento monumental da história da escrita moderna".
Dessas manifestações, a mais
expressiva talvez seja aquela
registrada por Lawrence Durrell em carta ao amigo: "Saúdo
em "Trópico de Câncer" o manual da minha geração".
De fato, aos olhos dos contemporâneos de Miller, o relato da vida boêmia de um escritor americano na Paris dos
anos 1930 excedia em muito a
visada autobiográfica para
transformar-se no espelho em
que sua geração contemplava
as próprias fantasias.
Tal qual um profeta, o autor
oferecia aos artistas da época
um retrato nada edificante,
marcado por signos da marginalidade, sob o sombrio pano
de fundo do pós-guerra.
Porém, ainda que a sensação
de vazio e embriaguez do narrador traduzisse a consciência
dilacerada de uma sociedade
em crise, seu voto de fé no sexo
e na devassidão criava um
mundo à parte, onde prevaleciam os imperativos do desejo.
Não surpreende, portanto,
que "Trópico de Câncer" evoque dois textos fundantes do
surrealismo, escritos na década
anterior, com os quais trava intenso diálogo: "O Camponês de
Paris", de Louis Aragon, e "Nádia", de André Breton.
Pautados pelo tom autobiográfico, são livros que lançam
um novo olhar sobre a capital
francesa, apostando na via da
transgressão e do erotismo. Assim como em Miller, os narradores se abandonam à exploração dos espaços mais obscuros
da cidade, perambulando por
locais de reputação duvidosa e
vasculhando os domínios mais
baixos da condição humana.
Surrealismo
Ora, uma tal afinidade não é
fruto do acaso. O escritor americano conhecia bem as idéias
de Breton, a quem foi apresentado em 1930, quando desembarcou em Paris. Chegou a se
aproximar de alguns membros
do grupo, com os quais compartilhava o fascínio pelo "bas-fond". Diversas vezes afirmou
se reconhecer como um autor
surrealista, habituado que era
ao expediente de justapor memórias e cenas imaginárias, de
criar distorções cômicas e deformações delirantes.
Apesar disso, a dicção seca de
Miller guarda distância do tom
francamente onírico de Breton
e de Aragon. Sua verve direta e
debochada coloca diante do leitor um personagem que oscila
entre o lirismo objetivo e a
crueza verbal, com contornos
distintos daqueles concebidos
por seus amigos franceses.
Afinal, não se pode esquecer
que o protagonista de "Trópico", a exemplo de seu criador, é
um americano. E isso faz toda a
diferença.
Trata-se de um sujeito que,
mesmo estando dentro, continua do lado de fora, olhando
para a cidade a partir da margem: "Paris é como uma puta.
De longe, parece encantadora,
você fica ansioso para tê-la nos
braços. Cinco minutos depois,
sente-se vazio, insatisfeito consigo mesmo. Enganado". Por
certo, uma passagem como essa
dificilmente seria escrita por
um parisiense, a quem faltaria a
distância essencial para produzir tal estranhamento. A rigor,
só poderia sair das mãos de alguém como Miller.
Ou, então, de alguém como
Santiago Gamboa que, passados mais de 70 anos, se volta
para a capital francesa apostando em semelhante embocadura. Como que atualizando o
"Trópico de Câncer" para o final do século 20, seu romance
"A Síndrome de Ulisses" apresenta Paris pelos olhos de imigrantes que, sejam legais ou ilegais, ocupam uma posição marginal nessa sociedade.
Deslocados em uma "cidade
populosa e fantasmal onde nenhum de nós, na realidade,
existia", seus personagens desmentem a imagem idealizada
da convivência multicultural
em um país "civilizado", para
oferecer um quadro impiedoso
da vida do estrangeiro na Europa contemporânea.
São romenos, libaneses, senegaleses, coreanos, somalis e
latino-americanos de diversas
procedências que, na qualidade
de exilados políticos ou econômicos, sobrevivem como podem, mas sempre "atormentados pela idéia de morrer sem
que ninguém saiba".
Distúrbio psicológico
Daí o título do romance, remetendo a um grave distúrbio
psicológico que acomete sujeitos acuados pela situação de
clandestinidade e pela exclusão
social. Imigrante em Paris nos
anos 1990, o escritor se vale de
uma dicção vigorosa, próxima à
de Miller, detendo-se com freqüência nas aventuras sexuais
de seus personagens.
Mas, convicto de que "a miséria gera um certo erotismo", o
narrador colombiano não funda um mundo sexual autônomo, como fazem o protagonista
de "Trópico" e seus inspiradores surrealistas.
No relato de Gamboa, a fantasia erótica se rende aos limites das convenções realistas.
Mais que literária, porém, essa diferença é sobretudo histórica. Já não há mais espaço, no
mundo contemporâneo, para
aquela marginalidade glamourosa cultivada por Breton, Aragon e Miller nas primeiras décadas do século 20.
O marginal cedeu lugar ao
excluído. As palavras de ordem
que incitavam à "transgressão"
foram definitivamente substituídas por aquelas que reivindicam a "inclusão". Condenado
ao foco realista e incluído até a
exaustão, o sexo perdeu sua vocação subversiva. Talvez seja o
caso de saudarmos, em "A Síndrome de Ulisses", o manual da
nossa geração.
ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade
Católica e no Centro Universitário Senac (SP).
É autora de "O Corpo Impossível" e "Lições de
Sade - Ensaios sobre a Imaginação Libertina"
(Ed. Iluminuras).
TRÓPICO DE CÂNCER
Autor: Henry Miller
Tradução: Sonia Coutinho
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 40 (294 págs.)
A SÍNDROME DE ULISSES
Autor: Santiago Gamboa
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (376 págs.)
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