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Ensaio de orquestra
Wilson Black e Matthew Burns - 18.jan.2006/ Associated Press
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"O Maestro e a Diva", violino que sofreu intervenção artística por Kim Robertson |
Um dos mais celebrados regentes em atividade, o italiano Riccardo Muti explica os mistérios de seu ofício
LEONETTA BENTIVOGLIO
Há os que dançam
no pódio, os que se
contorcem, os que
exibem movimentos enérgicos e cabeleiras ao vento. E há o misticismo da imobilidade, o ícone
do maestro parado e tenso:
apenas gestos mínimos nos fazem perceber um impulso e
um chamado. Mas, entre os
dois opostos, há muitas possibilidades intermediárias, uma
longa série de gradações de intensidade motora.
Como se sabe, o regente se
ergue como um emblema de
domínio. Mas há mais coisa em
jogo, algo bem mais profundo
que uma esquemática relação
de poder. Um fluxo de energia
circular que percorre os instrumentos e o pódio. E o caráter
imprescindível da função:
qualquer orquestra, até a melhor do mundo, não sabe tocar
sozinha, como Fellini nos mostrou em um de seus filmes mais
lúcidos e pungentes ["Ensaio
de Orquestra"].
Mas as dificuldades desse
ofício são imensas. Não por
acaso, são pouquíssimos os que
conseguem alcançar os vértices
de uma carreira tão almejada e
preciosa. Hoje os melhores
maestros, os da série A, se contam nos dedos de uma mão.
Entre eles desponta Riccardo Muti [1941]. Todos conhecem o seu perfil sério, a atitude
determinada, os movimentos
nítidos, o controle férreo dos
membros da orquestra.
"O ponto de partida", nos diz
Muti, "é a funcionalidade do
gesto, que sempre deve ser um
meio, e não um fim, como infelizmente tem acontecido hoje.
Deve-se transmitir à orquestra
uma mensagem que, na plasticidade e na expressividade gestual, comunique a idéia interpretativa, de som, fraseado e
timbre, já explicada e pretendida pelo regente durante os ensaios. Os braços se tornam extensões da mente".
PERGUNTA - Diz-se que o braço direito pontua o ritmo, e o esquerdo, a
expressão. Como aplica em sua prática pessoal esse esquema?
RICCARDO MUTI - Em linhas gerais, essa é uma divisão aceitável. Mas não se pode assumi-la
como norma absoluta. Há
maestros dotados de extrema
facilidade no uso de ambos os
braços, como os ambidestros,
para os quais a escansão rítmica pode ser confiada ora ao direito, ora ao esquerdo.
Há alguns que, durante a execução, passam a batuta de uma
mão para outra. Às vezes, para
obter um acorde violento ou
um som muito vigoroso, há
quem junte as mãos apertando
a batuta nos punhos e movendo-a como a uma espada.
PERGUNTA - Então não há nada
prefixado?
MUTI - Nada preestabelecido.
Pode-se partir de certas regras
e fazer o contrário. Pode-se reger apenas com a intensidade
de um olhar. A direção de orquestra é e não é uma ciência;
um trabalho que se baseia em
indicações precisas e, simultaneamente, muito imprecisas.
Todas as orquestras do mundo, de Copenhagen a Sydney,
de Vancouver a Buenos Aires,
de Nova York a Roma, sabem
que o ritmo quaternário corresponde ao primeiro gesto para baixo, o segundo à esquerda,
o terceiro à direita e o quarto
para o alto, desenhando uma
cruz imaginária, para retomar
no compasso sucessivo.
PERGUNTA - Então há um ponto de
partida comum: manter o ritmo.
MUTI - Mas, enquanto um violinista ou um pianista se fecham numa sala e repetem passagens por dias, semanas, anos,
até a superação das dificuldades técnicas, o regente sempre
precisa ensaiar com cem pessoas. É essa a contradição implícita no meu trabalho: em
teoria, deve-se dizer à orquestra o que ela deve fazer, mas, na
prática, é com a orquestra que
aprendemos como se faz.
PERGUNTA - Tomemos o modo como as indicações oferecidas pelo
texto são observadas. Até que ponto a fidelidade ao sinal escrito pelo
compositor é um critério generalizante e, portanto, objetivo?
MUTI - O que significa fidelidade? Antes de tudo, é a observação do sinal escrito. Mas, por
sua vez, as indicações do autor
são e não são exatas. Sobre um
pentagrama de cinco linhas estão assinaladas notas cuja duração é indicada. Às vezes há indicações feitas pelo autor com o
metrônomo, ou seja, o aparelho
usado para escandir a pulsação
rítmica, a velocidade.
Mas, como dizia Nino Rota
[1911-79], o compositor que ativa o metrônomo de noite, na
manhã seguinte o encontra
quase sempre descompassado.
Houve debates violentos a propósito dos metrônomos de
Beethoven.
Há quem tente respeitá-los
ao pé da letra; há quem diga
que, daquele modo, as sinfonias
são inexeqüíveis; há quem defenda que Beethoven tinha um
metrônomo defeituoso. Um ato
de "Parsifal" [de Wagner] nas
mãos de um regente pode durar
20 minutos a mais do que a execução da mesma obra por um
outro intérprete.
PERGUNTA - A cada vez, o sr. faz
uma leitura analítica da partitura,
que antecede o ensaio e que visa a
distinguir o essencial do supérfluo.
De que maneira se percebem as estruturas fundamentais do discurso
musical, aquelas que devem emergir na execução?
MUTI - O trabalho do regente
pressupõe um estudo aprofundado da composição. É importante, por exemplo, o conhecimento do peso sonoro dos instrumentos, e logo se percebe se
uma partitura é bem escrita ou
de modo impróprio.
Houve grandes compositores, como Schumann e Brahms,
que tinham alguns limites na
orquestração, ao passo que as
partituras de Tchaikovsky são
perfeitas, assim como as de
Haydn, Mozart e Schubert. Cabe ao regente equilibrar o que
parece desequilibrado na arquitetura da passagem.
PERGUNTA - É verdade que a escola
de regência alemã, diferentemente
da italiana, sugere um gesto que retarda o ataque da frase musical?
MUTI - São lugares-comuns a
serem desfeitos. Na realidade,
cada maestro tem o seu gesto.
Pensemos em Furtwangler
[maestro alemão, 1886-1954].
Quando o vemos reger em filmes, se nota um gesto que se estende em profundidade, freqüentemente sem indicar o
momento em que a orquestra
deve começar, o que faz com
que, às vezes, não se entre perfeitamente em conjunto.
Mas essa profundidade e o
conseqüente descompasso milesimal entre um instrumento
e outro provocam uma espécie
de deslizamento do som que resulta naquela sonoridade larga
e profunda que se tornaria o
protótipo da sonoridade germânica. Quando trabalho com
a Filarmônica de Viena, se quero obter um som muito profundo, uso um gesto que não é um
golpe seco, mas algo como se
afundasse no terreno. E os músicos respondem com um som
denso e escuro.
PERGUNTA - Diz-se que a escola italiana é mais nítida e brilhante que a
alemã. Toscanini [1867-1957], da
escola de que o sr. descende, era um
modelo de limpidez.
MUTI - Ele tinha um vigor rítmico controlado por um gesto
imperioso e inexorável: mirava
o essencial. Outro pilar da regência orquestral foi o austríaco Karajan [1908-89], que levou a um fraseado mais acurado e a um som mais polido. Mas
sua gestualidade também era
controlada e avessa a efeitos.
Karajan foi a síntese entre a
exigência rítmica de Toscanini
e a profundidade de som de
Furtwangler. Outros maestros,
como Bruno Walter, Erich
Kleiber e Klemperer, tinham
gestos bem diferentes. Por isso
me recuso a pensar em uma rígida compartição em escolas
nacionais de regência.
A gestualidade de Stokowski
[1882-1977], por exemplo, se
baseava na expressividade das
mãos, longuíssimas, os dedos
como dez tentáculos, e graças a
isso ele criava um som perfumado e cheio de cores, que ainda hoje caracteriza a Orquestra
da Filadélfia, que dirigiu por
muitos anos. Stokowski não
pode ser catalogado nem na escola italiana nem na alemã.
Seguindo uma definição do
grande maestro alemão Carlos
Kleiber [1930-2004], eu diria
que há três tipologias de regentes, e não escolas.
PERGUNTA - Quais?
MUTI - O piloto, o mecânico e o
piloto-mecânico. O piloto conduz magnificamente um carro,
ou seja, uma orquestra, preparada por um outro. O mecânico
conhece a máquina a fundo, do
motor até as mínimas engrenagens, e explica tudo à orquestra,
mas não dirige bem, e o resultado fica no plano teórico, sem
uma realização concreta. O piloto-mecânico sabe ajustar o
carro e também guiá-lo de modo impecável. Hoje os pilotos-mecânicos quase desapareceram, e os que triunfam são diretores-pilotos, com graves conseqüências para as orquestras.
Um piloto-mecânico extraordinário era Karajan. De
qualquer modo, o ideal do
maestro (e vimos isso justamente com Karajan, sobretudo
nos últimos anos) é reduzir
sempre a gestualidade.
PERGUNTA - O corpo deve movimentar-se pouco? Não é o que parece quando vemos alguns maestros
contemporâneos...
MUTI - Há regentes que exibem
um "passeio" no pódio. De resto, ainda é difusa a idéia do
maestro-domador, que estala a
chibata no ar, como se a orquestra fosse composta por
uma massa de escravos.
Mas, quando vemos as filmagens de Toscanini, percebemos
que ele estava sempre parado,
bem plantado sobre as pernas.
Ormandy, mítico regente da
Orquestra de Filadélfia depois
de Stokowski, era um adorador
de Toscanini, que ele sempre
trazia em efígie no fraque; e, assim como Toscanini, ele não
dava um passo.
PERGUNTA - No entanto um grande regente como Leonard Bernstein
tinha um estilo tão movimentado
que às vezes parecia dançar.
MUTI - Era um caso singular,
uma natureza extrovertida.
Mas também ele, quando imergia profundamente na música,
se tornava essencial. Em certos
momentos, o gesto se transforma quase num estorvo para o
regente, como uma membrana
colocada entre ele e os músicos.
Temos vontade de conduzi-los para a própria idéia por
meio de uma troca não-visível,
elétrica, incorpórea. Karajan
dizia que o máximo para um regente seria preparar uma orquestra a ponto de, durante o
concerto, parecer que era a orquestra que conduzia o maestro, e não o contrário. A simbiose alcançada deveria ser de tal
ordem a tornar o gesto necessário apenas em momentos cruciais: uma mudança de tempo,
uma ênfase a ser recordada.
PERGUNTA - O sr. é feliz no pódio.
De vez em quando, uma intensa felicidade ilumina o rosto do maestro.
MUTI - Às vezes se tem a impressão de agarrar alguma coisa. Mas eu nunca fico satisfeito.
Porque é impossível realizar
100% daquilo que se deseja: há
muitas variáveis. O êxito depende de você, da orquestra, do
público, do ambiente.
Mas, durante uma execução,
pode haver instantes em que se
sente realmente vibrar em
uníssono, numa fusão de quem
toca com quem dirige e com a
própria sala de concerto. Que,
assim como todo momento de
felicidade absoluta, dura pouco
e se dissipa num sopro.
A íntegra deste texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.
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