São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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Moretti busca fazer história mundial da literatura

Utilizando trabalhos como o de Roberto Schwarz, autor alia estilo, humor e análise rigorosa

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não faz muito que o nome de Franco Moretti passou a ocupar algum espaço no debate literário no Brasil -o artigo que primeiro o colocou em evidência entre nós saiu em 2001, sob o título vasto e vago de "Conjecturas Sobre a Literatura Mundial" (em "Contracorrente", organizado por Emir Sader, editora Record).
Mas o texto revelou logo o tamanho da briga que este italiano, especialista em romance inglês, comprava: nem mais, nem menos, estava repassando criticamente as principais alternativas concebidas até hoje na direção de uma história mundial da literatura. Nada óbvio, nada fácil.
Ele se sai otimamente bem da empreitada. Não porque tenha qualquer ilusão de esgotar o assunto nos termos acadêmicos em que ele se apresenta -seja na forma das já velhas histórias nacionais (tantas vezes nacionalistas) de literatura, seja na moda da literatura comparada (tantas vezes um simples rebaixamento do problema)-, justo pelo contrário.
Arguindo a noção de que estudar literatura implica mergulhar profundamente em muito poucos livros, os canônicos, Moretti propõe uma perspectiva darwinista, isto é, materialista e empirista, animada pela tradição marxista, mas longe da variante adorniana.

Caso raro
Em sua mão, o que vai falar é um objeto muito mais vasto, que se compõe virtualmente da totalidade dos livros escritos, em qualquer parte. Vale conferir o quanto isso rende em seu primeiro livro traduzido aqui, o "Atlas do Romance Europeu" (Boitempo).
O que torna sua análise possível são duas restrições. Primeira: ele se ocupa do romance, e não de toda a literatura. Como se sabe, o romance é uma forma relativamente fácil de discernir em qualquer paisagem, em qualquer idioma, por variadas que sejam suas encarnações concretas.
Segunda: sem ilusões de poder ler todos os romances do mundo, nem mesmo os de um só país de cultura letrada sólida, ele se serve de leituras já feitas, de estudos que tenham já detectado modos particulares de ser do romance naquele contexto -daí, por exemplo, a centralidade que em sua teoria ocupa a figura de Roberto Schwarz, que estudou minuciosa e proficientemente a forma do romance brasileiro do século 19, entre [José de] Alencar e Machado de Assis.
Daqui se segue que o âmbito de trabalho morettiano é um caso raro na área, porque permite compartilhamento de tarefas e cumulatividade de trabalhos, como se fossem os estudos literários um ramo de ciência da natureza.
"A Literatura Vista de Longe": esse é o nome de um de seus grandes livros (edição brasileira: Arquipélago) e uma designação abreviada de seu método. Trata-se de olhar em perspectiva, a ponto de poder discernir os grandes veios, as tendências, os caminhos que o romance tomou.
Não quer estudar estrutura narrativa em abstrato; sua batalha é com a empiria que estrutura os romances. Cidade, campo, a rua, a divisão das classes pelo espaço, proximidade ou distância, essas variáveis geográficas são convocadas em paralelo com o desenho dos enredos, com o perfil das personagens, com o destino dos heróis.
Tudo isso vem com um acréscimo nada desprezível: Moretti escreve com um estilo marcante e eficaz, composto de muitos dados, confissões do pesquisador e um bom humor desconcertante, mas sempre orientado pela eficácia argumentativa. E nada disso impede que levante voos interpretativos, em que formula hipóteses de imenso valor analítico, em contraste com a relativa frivolidade da área, como se lê em "Signos e Estilos da Modernidade" (Civilização Brasileira).


LUÍS AUGUSTO FISCHER é crítico literário, professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Machado e Borges" (ed. Arquipélago), entre outros livros.

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