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Lembranças da meninice
ROBERTO VENTURA
especial para a Folha
Luís da Câmara Cascudo foi um
escriba, que tomava nota dos falares de pessoas que não tinham
acesso aos seus livros, como observou na "Antologia do Folclore
Brasileiro" (1944): "Aos cantadores e violeiros, analfabetos e geniais; às velhas contadeiras de estórias, fontes de literatura oral no
Brasil, ofereço, dedico e consagro
este livro que jamais hão de ler".
Escreveu uma obra única, de dimensões enciclopédicas, em que
descreveu e sistematizou a cultura
oral e as manifestações populares.
Seus inúmeros livros, mais de 140,
formam um museu da cultura que
o povo brasileiro criou ao longo
do secular conflito entre a colonização ibero-africana e as tradições
indígenas. O "Dicionário do Folclore Brasileiro", lançado em
1954 e até hoje insuperado, tem de
tudo, desde o lobisomem e a mula-sem-cabeça até o bicho-homem
e o arranca-língua.
Provinciano incurável, que nasceu, viveu e morreu na cidade de
Natal, Cascudo tinha um pé na cozinha e um ouvido na senzala.
Voltou-se para o mundo marginalizado dos contadores de histórias
e dos violeiros pobres, que via desaparecer, como forma de recuperar sua própria infância no sertão:
"Vivi essa vida durante anos e
evocá-la é apenas lembrar minha
meninice".
Filho único do coronel Cascudo,
chefe político e comerciante abastado, depois empobrecido, abandonou o curso de medicina no Rio
de Janeiro, por não ter mais recursos para montar o próprio laboratório. Formou-se em 1928 na Faculdade de Direito de Recife, onde
também estudara o crítico sergipano Sílvio Romero (1851-1914),
pioneiro dos estudos folclóricos
no Brasil.
Partiu das pesquisas de Romero,
que tinha organizado as antologias
"Cantos Populares do Brasil"
(1883) e "Contos Populares do
Brasil" (1885) e publicado os "Estudos sobre a Poesia Popular no
Brasil" em 1888, quando os escravos foram libertos. Preocupado
em interpretar a psicologia brasileira, que considerava imitativa e
desprovida de originalidade, Romero dividia a literatura popular
em européia, indígena e africana
ou mestiça, de acordo com suas
supostas origens étnicas.
Câmara Cascudo se afastou das
teorizações raciais de Romero e
procurou antes enfocar a poesia
popular dentro da universalidade
de seus temas e formas, presentes
em todas as culturas. Escreveu em
"Literatura Oral no Brasil": "Como a unidade brasileira será mais
psicológica do que étnica, a nossa
literatura oral participa dessa despersonalização racial, recebendo,
com indiferença democrática, os
elementos vários, mental, racial,
cultural, ambiental, rítmico".
Procurou registrar e classificar
as tradições anônimas e seculares
da literatura oral, segundo os métodos do finlandês Antti Aarne e
do norte-americano Stith Thompson, que propunham uma matriz
comum para os contos populares
dos diversos países e regiões. Mostrou os aspectos da cultura medieval européia que se enraizaram na
tradição brasileira, como as cheganças ou os autos de cristãos e
mouros, trazidos da Península
Ibérica, em que os soldados de
Cristo vencem e batizam os infiéis,
ou a história do Imperador Carlos
Magno e dos 12 pares de França.
Dedicou dois de seus livros à literatura popular: "Vaqueiros e
Cantadores" (1939) e "Literatura
Oral" (1952). Abordou o vaqueiro
e o cantador como responsáveis
pela criação e transmissão da poesia do gado e do ciclo heróico dos
cangaceiros. A coragem pessoal e
o espírito de independência aparecem como valores centrais na cultura sertaneja, que se formou com
a implantação das sesmarias no
século 17 em territórios conquistados dos índios. Tais valores de
bravura desmedida se fazem presentes na poesia dos cangaceiros,
que romanceia a vida de bandidos
célebres, como Lampião e Antônio Silvino, ou nos desafios entre
cantadores, em que a reputação se
estabelece pela capacidade de bater o adversário em exibições de
improvisação e oratória.
Deixou uma vasta obra, que inclui "Geografia dos Mitos Brasileiros" (1947), "Superstição e
Costumes" (1958), "Locuções
Tradicionais no Brasil" (1970),
"História dos Nossos Gestos"
(1974) e a genial "História da Alimentação no Brasil" (1967/8), que
o levou a viajar 4.000 quilômetros
pelo sertão africano do Congo,
Guiné, Zambésia e Nigéria em
busca das raízes da cozinha brasileira. Vieram também da África os
congos ou congadas, festas de coroação dos reis do Congo, trazidas
pelos escravos bantos e representadas até hoje.
Seus livros são marcados pela
amplidão dos assuntos, que procurava esgotar com um fôlego invejável. Escreveu sempre de forma
direta e simples, próximo da linguagem coloquial dos cantadores
e violeiros, com quem conviveu, e
dos escritores modernistas, como
Mário de Andrade, de quem foi
amigo e guia quando o escritor
passou por Natal em 1927, em viagem de levantamento etnográfico
do Norte e Nordeste. Evitou assim
a estilização excessiva ou as audácias interpretativas, muitas vezes
pedantes, de outros estudiosos da
cultura popular.
Interessou-se pelos aspectos do
cotidiano, hoje chamados de vida
privada, como a rede de dormir ou
os gestos e expressões populares,
muito antes desses assuntos terem
se tornado moda. O campo já tinha sido desbravado pelo sociólogo Gilberto Freyre, que tinha revelado, em "Casa Grande e Senzala" (1933), os ditados, as anedotas
e as preferências culinárias e sexuais que fazem parte do dia-a-dia
dos brasileiros.
Faz falta porém, em sua obra, a
escrita saborosa de um Gilberto
Freyre, ou mesmo maior rigor na
ordenação dos assuntos. Cascudo
interrompia, com frequência, sua
exposição com longas transcrições
de poemas e desafios populares,
registrados por sua pena. Muitos
de seus livros são destinados mais
à consulta do que à leitura prazerosa na rede de dormir que ele tanto prezava. Mas, enquanto obras
de referência, são únicas e obrigatórias.
Roberto Ventura é professor de teoria literária
e literatura comparada na USP e autor de "Estilo
Tropical" (Companhia das Letras).
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