São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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Lembranças da meninice

ROBERTO VENTURA
especial para a Folha

Luís da Câmara Cascudo foi um escriba, que tomava nota dos falares de pessoas que não tinham acesso aos seus livros, como observou na "Antologia do Folclore Brasileiro" (1944): "Aos cantadores e violeiros, analfabetos e geniais; às velhas contadeiras de estórias, fontes de literatura oral no Brasil, ofereço, dedico e consagro este livro que jamais hão de ler".
Escreveu uma obra única, de dimensões enciclopédicas, em que descreveu e sistematizou a cultura oral e as manifestações populares. Seus inúmeros livros, mais de 140, formam um museu da cultura que o povo brasileiro criou ao longo do secular conflito entre a colonização ibero-africana e as tradições indígenas. O "Dicionário do Folclore Brasileiro", lançado em 1954 e até hoje insuperado, tem de tudo, desde o lobisomem e a mula-sem-cabeça até o bicho-homem e o arranca-língua.
Provinciano incurável, que nasceu, viveu e morreu na cidade de Natal, Cascudo tinha um pé na cozinha e um ouvido na senzala. Voltou-se para o mundo marginalizado dos contadores de histórias e dos violeiros pobres, que via desaparecer, como forma de recuperar sua própria infância no sertão: "Vivi essa vida durante anos e evocá-la é apenas lembrar minha meninice".
Filho único do coronel Cascudo, chefe político e comerciante abastado, depois empobrecido, abandonou o curso de medicina no Rio de Janeiro, por não ter mais recursos para montar o próprio laboratório. Formou-se em 1928 na Faculdade de Direito de Recife, onde também estudara o crítico sergipano Sílvio Romero (1851-1914), pioneiro dos estudos folclóricos no Brasil.
Partiu das pesquisas de Romero, que tinha organizado as antologias "Cantos Populares do Brasil" (1883) e "Contos Populares do Brasil" (1885) e publicado os "Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil" em 1888, quando os escravos foram libertos. Preocupado em interpretar a psicologia brasileira, que considerava imitativa e desprovida de originalidade, Romero dividia a literatura popular em européia, indígena e africana ou mestiça, de acordo com suas supostas origens étnicas.
Câmara Cascudo se afastou das teorizações raciais de Romero e procurou antes enfocar a poesia popular dentro da universalidade de seus temas e formas, presentes em todas as culturas. Escreveu em "Literatura Oral no Brasil": "Como a unidade brasileira será mais psicológica do que étnica, a nossa literatura oral participa dessa despersonalização racial, recebendo, com indiferença democrática, os elementos vários, mental, racial, cultural, ambiental, rítmico".
Procurou registrar e classificar as tradições anônimas e seculares da literatura oral, segundo os métodos do finlandês Antti Aarne e do norte-americano Stith Thompson, que propunham uma matriz comum para os contos populares dos diversos países e regiões. Mostrou os aspectos da cultura medieval européia que se enraizaram na tradição brasileira, como as cheganças ou os autos de cristãos e mouros, trazidos da Península Ibérica, em que os soldados de Cristo vencem e batizam os infiéis, ou a história do Imperador Carlos Magno e dos 12 pares de França.
Dedicou dois de seus livros à literatura popular: "Vaqueiros e Cantadores" (1939) e "Literatura Oral" (1952). Abordou o vaqueiro e o cantador como responsáveis pela criação e transmissão da poesia do gado e do ciclo heróico dos cangaceiros. A coragem pessoal e o espírito de independência aparecem como valores centrais na cultura sertaneja, que se formou com a implantação das sesmarias no século 17 em territórios conquistados dos índios. Tais valores de bravura desmedida se fazem presentes na poesia dos cangaceiros, que romanceia a vida de bandidos célebres, como Lampião e Antônio Silvino, ou nos desafios entre cantadores, em que a reputação se estabelece pela capacidade de bater o adversário em exibições de improvisação e oratória.
Deixou uma vasta obra, que inclui "Geografia dos Mitos Brasileiros" (1947), "Superstição e Costumes" (1958), "Locuções Tradicionais no Brasil" (1970), "História dos Nossos Gestos" (1974) e a genial "História da Alimentação no Brasil" (1967/8), que o levou a viajar 4.000 quilômetros pelo sertão africano do Congo, Guiné, Zambésia e Nigéria em busca das raízes da cozinha brasileira. Vieram também da África os congos ou congadas, festas de coroação dos reis do Congo, trazidas pelos escravos bantos e representadas até hoje.
Seus livros são marcados pela amplidão dos assuntos, que procurava esgotar com um fôlego invejável. Escreveu sempre de forma direta e simples, próximo da linguagem coloquial dos cantadores e violeiros, com quem conviveu, e dos escritores modernistas, como Mário de Andrade, de quem foi amigo e guia quando o escritor passou por Natal em 1927, em viagem de levantamento etnográfico do Norte e Nordeste. Evitou assim a estilização excessiva ou as audácias interpretativas, muitas vezes pedantes, de outros estudiosos da cultura popular.
Interessou-se pelos aspectos do cotidiano, hoje chamados de vida privada, como a rede de dormir ou os gestos e expressões populares, muito antes desses assuntos terem se tornado moda. O campo já tinha sido desbravado pelo sociólogo Gilberto Freyre, que tinha revelado, em "Casa Grande e Senzala" (1933), os ditados, as anedotas e as preferências culinárias e sexuais que fazem parte do dia-a-dia dos brasileiros.
Faz falta porém, em sua obra, a escrita saborosa de um Gilberto Freyre, ou mesmo maior rigor na ordenação dos assuntos. Cascudo interrompia, com frequência, sua exposição com longas transcrições de poemas e desafios populares, registrados por sua pena. Muitos de seus livros são destinados mais à consulta do que à leitura prazerosa na rede de dormir que ele tanto prezava. Mas, enquanto obras de referência, são únicas e obrigatórias.


Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras).



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