São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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INÉDITO
O macaco que atravessou o Atlântico


No pequeno Puss-Moth, Hinkler abanava a mão; o sagui pulava aturdido com o estrépito do motor


LUÍS DA CÂMARA CASCUDO


A crônica de Bert Hinkler é a mais curiosa e singular. Inopinada e excêntrica como num conto de aventuras estranhas, a figura do australiano passa por Natal sem um registro nos jornais, sem uma entrevista, sem uma confidência.
Às 16h30 de 23 de novembro de 1931, aterrou Hinkler no campo de Parnamirim. Vinha num pequeno Puss-Moth, com um motor Gipsy de 120-HP. Na fuselagem, trazia um botezinho de borracha. Sem rádio, sem sextante, sem indicador de giro, sem bomba de fumo para verificação de deriva, sem uma carta da região.
Preso ao ombro, um sagui espiava os arredores com os olhinhos agudos e assombrados. Mr. Adam, chefe das instalações da C.G.A., não esperava aquela visita inesperada.
Em 1930, Hinkler fizera o vôo direto Austrália-Inglaterra e começara a ser notado. Viajou para o Canadá e a 13 de abril comprou o Puss-Moth. Voou para New York e daí, tranquilamente, como se não fizesse reide, arrancou para o Brasil.
De Nova York alcançou a Jamaica numa reta de 18 horas. Em Fortaleza, as autoridades cearenses pediram-lhe documentos. Hinkler não os tinha. Ficou uns dias esperando respostas do Rio. Comprou o Sagui. Depois de desembaraçado, partiu para Natal.
Eric Gordon, o vice-cônsul inglês em Natal, hospedou-o. Gordon e dona Nancy Gordon deram-me os detalhes que registro. Hinkler pedira silêncio. Não estava resolvido quanto ao destino do vôo. Talvez, Rio direto. Durante todo o dia 24 esteve no campo de Parnamirim examinando o avião. Apenas o óleo da Castrol é que tivera gratuito. Comprava tudo com seu próprio dinheiro e, com a diferença de câmbio, perdeu US$ 300 em Natal.
A Companhia Wakefield patrocinava o reide misterioso. O óleo viera de São Paulo. Hinkler adquiriu gasolina com Mr. Adam.
Gordon, não se contendo, explicou a Mr. Adam a rota do seu patrício, e o francês radiografou aos "Avisos" (navios) da C.G.A. que semanalmente vão de Natal a Dakar e vice-versa, pedindo-lhes informações meteorológicas. Tempo suspeito ao sul de Dakar. Gordon disse a Hinkler que em Dakar interditariam o seu avião para averiguações. O aviador então escolheu Bathurst, possessão inglesa na Gâmbia.
Durante a noite de 24 para 25 de novembro, Hinkler estudou um pouco. Pela manhã, dona Nancy presenteou-lhe com os mantimentos. Duas garrafas térmicas de café e uma de água gelada, sanduíches de galinha e maçãs. Foram para Parnamirim de automóvel. Hinkler conservava seu terno de casimira escuro e chapéu de massa.
Chegados, examinou o motor, tirou o paletó, segurou o chapéu e prendeu o sagui no interior da nacela. Ele mesmo "deu contato" e pôs a hélice em movimento. Apertou a mão de Mr. Adam, agradeceu a dona Nancy e a Gordon a hospedagem e pediu-lhes que levassem o automóvel para o extremo da pista de decolagem, para indicar a direção. O automóvel seguiu. Antes de chegar ao fim do campo, Hinkler passava-lhe sobre a capota. No pequeno Puss-Moth que o vento ajudava, Hinkler abanava a mão num adeus sereno. O sagui pulava aturdido com o estrépito do motor. E desapareceram no caminho do leste... Eram 10h da manhã.
Os rádios anunciavam tempestade no Atlântico. O Puss-Moth levava combustível para 24 horas a uma velocidade de 100 milhas por hora. De toda parte choveram telegramas pedindo notícias. Paris, Roma, Londres, Rio, São Paulo irradiavam. E nada de Hinkler e do sagui, perdidos na imensidão monótona.
Com 22 horas de vôo, Hinkler chegou a Bathurst, a 50 quilômetros de Dakar, às 8h do dia 25 de novembro. Abasteceu e partiu para São Luiz do Senegal. Daí para Port-Etienne, Casablanca, Barcelona, Londres.
O rádio dizendo que sua chegada seria a 28 de novembro. A 27, um rádio da Aeropostal dizia-o em São Luiz do Senegal, às 14h. O sagui fora o primeiro animal que atravessara o Atlântico, provado como está que o gato passageiro do "Spirit of St Louise" foi boato.
Bert Hinkler passara o Atlântico de leste a oeste. Um ano depois desaparecia nas montanhas suíças.
Havia ainda o delicioso dos pormenores em jornais ingleses: a aterragem de Hinkler em mangas de camisa, chapéu de massa, o sagui no ombro, a refeição rápida ante o assombro dos patrícios que não acreditavam que o pequeno Puss-Moth repetisse, em condições que Lindberg reputa mais difíceis, o salto do Atlântico Sul. Foram comentadas miudamente.
Tal foi a viagem que muito mais próprio seria chamá-la maravilhosa, se Graça Aranha não tivera desperdiçado o título...
Nota:
Em entrevista concedida à imprensa, em Madri, Bert Hinkler declarou que "Natal é um ótimo aeroporto, por onde passam diversas linhas aéreas". Esse fato foi de grande importância, naquela época. A 28 de abril de 1934, Hinkler foi encontrado morto junto ao seu avião, espatifado nas montanhas de Toscana.


Texto extraído de "Histórias de Avião", que será editado no ano que vem pela Editora UNP, com notas de Fernando Hypolito da Costa.



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