São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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PONTO DE FUGA
A olhada do ouvinte

JORGE COLI
especial para a Folha em Nova York

"Monsters of Grace" é apresentada, na Brooklyn Academy of Music, como uma "Ópera Digital em 3D". Não é ópera: é antes algo que lembra o antigo cinema mudo. Uma grande tela, com imagens silenciosas em movimento, acompanhadas por cantores e uma pequena orquestra. As cenas, no cristal líquido, são digitalizadas e, com o auxílio daqueles óculos especiais, percebe-se o efeito de relevo e profundidade, muito eficaz. Robert Wilson, responsável pela concepção visual, cria um mundo lento e nítido, com objetos em espaços vastos, estranhamente iluminados, como numa tela de Magritte.
A primeira sequência é a mais poética, em que minúsculos personagens correm num deserto e dois imensos pés descalços vêm se apoiar na areia. Mas as possibilidades dessas imagens simplificadas parecem se esgotar logo. Longe do "Deafman Glance", cuja força hipnótica revelava, em 1970, um autor inventando novos caminhos para o teatro com materialidade de efeitos e de gestos como as inesquecíveis negras gordas que cobriam o palco de palha dourada, Wilson entra por um mundo asséptico e não muito fecundo. A música é de Philip Glass, que dirigia seu conjunto, parceiro antigo de Wilson na célebre "Einstein on the Beach". Tudo muito fácil e "new age", cantos açucarados e agradáveis. O tom erudito, iniciático, veio dos poemas de Rumi, autor árabe do século 13. Aos poucos, algumas pessoas se foram. A maioria resistiu, aplaudindo polidamente no fim.

IDADE DE OURO - Nos anos de 1950, houve uma explosão criadora nos Estados Unidos. As artes plásticas renovavam-se radicalmente e, num clima de efervescência humano e intelectual, artistas muito originais, buscando viver e produzir com intensidade, encontravam os meios para afirmarem-se. Bob Thompson foi um deles, mas que se manteve, até hoje, diante do público e da crítica, numa posição um pouco recuada. Atualmente, uma retrospectiva de sua obra no Whitney Museum permite avaliá-lo melhor. Thompson era negro, e morreu em 1966, com 29 anos, de overdose. Ele dialoga com a história da arte por meio de formas e tons que lembram Gauguin, numa gama de intensidade mais forte. Seu sentido cromático é verdadeiramente excepcional. Com as cores, cria espaços, destaca personagens, achata superfícies ou aprofunda horizontes vertiginosos. Inspira-se diretamente em Piero della Francesca, Goya, Poussin e, mesmo, "Anunciação", de El Greco, que pertence ao Masp. São conversas secretas entre grandes artistas, vibrantes, fortes, furiosas. Thompson perfila-se entre os maiores, numa época de gigantes.

CHIADOS - Ecos remotos, em meio a ruídos diversos, mas comoventes e mágicos. A Music and Arts Program of America possui um inestimável catálogo de CDs históricos. "Guiomar Novaes Plays Chopin" é um dos últimos títulos. Dois discos que trazem gravações inéditas, realizadas entre 1940 e 49, mais um recital ao vivo, com os "Prelúdios". As Sonatas nš 2 e nš 3, o Scherzo nš 3, entre o vigor alucinado e a profunda meditação, emergem além da história e da técnica.

LUZES - Vik Muniz foi convidado pelo Metropolitan Museum of Art para inventar uma exposição a partir das coleções fotográficas do museu. Ele escolheu imagens de imagens, percursos em túneis, eclipses lunares maravilhosamente captados em espelhos metálicos, retratos de cadáveres e de espíritos manifestando-se diante da câmera. A fotografia mostra-se como falso testemunho, como enganosa transparência, criadora de objetos tão frágeis quanto as lembranças na memória.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com





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