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A gênese do quatrocentão
Clássico de Alcântara Machado transcendeu as pesquisas sobre a sociedade colonial
JOÃO FRAGOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Q
uando estudante,
"Vida e Morte do
Bandeirante", de
Alcântara Machado, era leitura
obrigatória para se iniciar na
história serial. Não que o livro,
publicado em 1929, apresentasse tabelas, curvas semilogarítmicas ou algo do gênero.
Na verdade, a proximidade
com a história serial passava
pela natureza de seu lastro documental. Ele fora um dos primeiros escritos, no Brasil, fundados em centenas de escrituras cartorárias. Alcântara Machado [1875-1941] valeu-se de
450 processos (inventários
post-mortem e testamentos)
de São Paulo entre 1578 e 1700,
publicados em 27 volumes pela
prefeitura paulista.
Assim, para a minha geração,
a leitura daquele trabalho foi a
chance de ultrapassar as pesquisas sobre a sociedade colonial restritas a descrições de
viajantes ou de enfadados governadores para conhecer outros conjuntos de fontes primárias. Estas baseadas não
tanto em um ou outro relato,
mas nas experiências de centenas de pessoas que viveram a
sociedade analisada.
Neste momento, cabe lembrar que o inventário post-mortem, grosso modo, consiste
no arrolamento de todos os
bens e percalços deixados por
um sujeito ao falecer.
No Seiscentos, isso podia significar a descrição de alfinetes,
passando por ceroulas, imagens de santos, chegando, dependendo da fortuna, a sobrados, engenhos e escravarias;
ou, ainda, o arrolamento de dívidas, não raro acompanhado
de suas trágicas histórias.
Traços do planalto
Por essas características,
aquelas fontes são chamadas,
pela história serial, de maciça e
reiterativas. Afinal, a morte é
maciça e reiterativa; de geração
em geração há a possibilidade
de adentrar nos distintos aspectos de uma dada sociedade:
da economia à sensibilidade religiosa.
Daí Alcântara Machado, ao
escrever sobre o bandeirante,
não ser pretensioso ao denominar seu texto "Vida e Morte" e
dividi-lo em capítulos como
"As fortunas coloniais", "O fato
de vestir, jóias e limpeza da casa", "As devoções do bandeirante" etc.
Da mesma forma, o acesso
àquelas coleções de fontes possibilitou ao autor deslindar alguns dos traços da formação do
planalto paulista colonial. Trata-se de uma sociedade que
contou, na sua montagem, com
um capital "nulo ou quase nulo". Entre os seus povoadores
"não há representantes das
grandes casas peninsulares,
nem da burguesia endinheirada. Mas, se migraram para província tão áspera e distante, é
exatamente porque a sorte lhes
foi madrasta na terra natal. Outros, a imensa maioria, são homens do campo, (...) artífices
aventureiros de toda a casta".
Pesquisas recentes sublinham que a economia da região
no Seiscentos consistia numa
agricultura extensiva de alimentos voltada para o abastecimento local e num frágil circuito comercial intercapitanias.
Porém a miséria não foi impedimento para o surgimento
de uma hierarquia social ciosa
de suas diferenças e nem para o
aparecimento de um mercado.
Ambos, claro, com uma lógica
distinta daquilo que chamamos
de capitalismo.
No item mercado, por exemplo, em meados do século 17,
cortinas e vestidos vindos da
Europa valiam o mesmo ou
mais (e, às vezes, muito mais)
que sobrados e plantações. Para justificar essas diferenças de
preços, diversos motivos podem servir de argumentos
(desde as dificuldades de transporte e a escassez até o valor
simbólico dos bens vindos do
Reino), entretanto há de se
atentar para as diferenças entre as formas de produção das
mercadorias européias e das
feitas no planalto paulista.
As provenientes da Europa
pré-industrial resultavam de
relações sociais com maior
grau de mercantilização que as
presentes no planalto. Neste
não existia um pleno mercado
de terras e prevalecia a escravidão do gentio da terra (índios),
cuja reposição se fazia por meio
de entradas no sertão pelos potentados e seus flecheiros índios. Com certeza a armação de
tais expedições custava caro:
era para poucos.
Auto-retrato da elite
Contudo, no seu cálculo havia itens de complicada mensuração monetária -como a lealdade dos flecheiros. Isso, principalmente, se lembramos que
eles não eram marines a soldo e
muito menos robôs.
Talvez aquela lealdade possa
ser explicada, em meio a um cenário hierarquizado, por negociações políticas. Seja como for,
lembra Alcântara Machado, a
"classe dirigente" consistia em
"potentados em arcos", ou seja,
o seu poder era medido pela capacidade de mobilizar flecheiros. Essa habilidade transformou sujeitos sem eira nem beira ou aventureiros numa elite
por décadas a fio.
O autor, sem maiores surpresas, não analisa a sociedade
paulista como resultado da dinâmica de todos os grupos nela
envolvidos. Os pequenos lavradores, agregados, escravos e índios, quando aparecem, surgem como coadjuvantes ou vítimas da ação dos grandes potentados.
Aliás, isso é alertado por ele
já na dedicatória do livro: "aos
seus antepassados desde Antônio de Oliveira, chegado a São
Vicente em 1532". E lembrado,
em 1931, ao ingressar na Academia Brasileira de Letras, quando afirmou: "Paulista sou, há
400 anos".
Assim, "Vida e Morte do Bandeirante" -escrito por um vereador, depois deputado e senador- pode ser também visto
como uma espécie de auto-retrato de frações da elite paulista
nos anos de 1920 e de 1930.
JOÃO FRAGOSO é professor do departamento
de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e co-autor de "O Antigo Regime nos Trópicos" (Civilização Brasileira).
VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE
Autor: Alcântara Machado
Editora: Imprensa Oficial do Estado de
SP (tel. 0/xx/11/6099-9800)
Quanto: R$ 35 (272 págs.)
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