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SPINOZA
Filósofo da "Ética" é um antídoto à apologia atual da resignação
Herói do povo pós-moderno
ANTONIO NEGRI
especial para a Folha
Aconteceu-me, em décadas passadas, ocupar-me de Spinoza
(1632-1677) e sua "ethica", que
permanece sendo um monumento supremo do pensamento humano. Os que me pedem para que
eu torne a falar do filósofo perguntam-me de um Spinoza
"pós-moderno", capaz de lançar
as bases de um pensamento que
impeça a invasão do pós-moderno
"mole", do "pensamento único". Em suma, de um autor que,
no próprio território do pós-modernismo, enfrenta e põe em crise
o próprio pós-moderno. O que dizer diante dessa pergunta?
Para responder a essa questão
retorno à releitura da filosofia de
Spinoza de Matheron e Deleuze
(por volta de 68). Tal releitura
consistiu em cinco revisões da interpretação tradicional (que Hegel
realizara), que subvertiam a imagem de um Spinoza panteísta
a-cósmico e a-histórico.
A primeira revisão diz respeito à
experiência da imanência. Essa
opunha, à idéia de que a imanência fosse uma profundidade, uma
leitura da imanência como superfície. O Deus panteísta era, portanto, um "deus superficial", um
deus que constituía o horizonte
imanente da possibilidade.
A segunda revisão tangia à concepção da finalidade. A finalidade
já não era algo de pressuposto, um
desenho abscôndito, mas o produto da necessidade humana de
conhecimento e de organização
do universo. A finalidade era
constituída pela paixão, e a paixão
movia-se num contexto de casualidade que já não reconhecia nenhuma exterioridade com relação
à vida, nem nenhuma transcendência com relação ao mundo. Se
havia valor, era o homem a fazê-lo.
A terceira revisão era política.
Mesmo os transcendentais políticos, quer se posicionassem de
acordo com a teoria aristotélica da
transcendência dos arquétipos de
governo (o um, os poucos, os
muitos), quer segundo a pretensão hobbesiana da necessária hipóstase transcendental da autoridade (a soberania), estavam agora
dissolvidos, desde que vistos da
perspectiva da imanência absoluta. Se naquela época ainda se podia falar de poder soberano, esse
só podia apresentar-se como democracia da multidão, ou seja, como autogoverno absoluto do conjunto das individualidades, levadas, a partir de seu desejo, à constituição do comum.
A quarta revisão consistia em reconhecer que o caminho intramundano da virtude constituía
uma experiência criativa de eternidade. E de liberdade. Contra toda a teologia possível, Deus era
construído pelo homem e, nessa
perspectiva, a genealogia das paixões era posta em oposição a toda
a teologia. Daí a quinta e última
revisão: a da idéia de materialismo. A matéria, em Spinoza, cessava de ser o conceito de um contexto, o invólucro do movimento do
universo. A matéria era antes vista
de baixo, como tecido das transformações do mundo, portanto.
Nisso, nesse materialismo do homem, nessa genealogia da liberdade, constantemente renovada e
aberta, a filosofia de Spinoza alcançava o seu ápice.
Adotando a visão desse novo
Spinoza que Matheron e Deleuze
tinham apresentado, pode-se (eis
a resposta à questão que os amigos
me colocam) erigir uma barragem
contra as documentações do existente e as inferências ontológicas
que caracterizam as filosofias da
pós-modernidade.
Essas filosofias são certamente,
como Spinoza queria, superficiais.
Mas pretendem nos introduzir
num mundo que, tendo perdido
Deus, tendo perdido o transcendental, já não tem valor. A imanência é, no pós-moderno, leve,
umbrátil, mole e vazia. Naqueles
pontos em que, em Spinoza, a destruição da transcendência e o reconhecimento do mundo são a rude afirmação da consistência da
experiência e de sua dureza, que
somente as paixões podem atingir
e transformar, no pós-moderno a
experiência ontológica é espectral
e espetacular. E onde, em Spinoza,
a destruição de todo finalismo e de
todo movimento teológico é compensada pela emersão da criatividade do desejo, no pós-moderno
-aceita a morte da teleologia e da
ideologia- é a própria história
que encontra seu fim.
No território político, as filosofias pós-modernas aceitam a crítica spinozista do absolutismo
transcendental da autoridade,
mas negam que a constituição do
comum seja conferida à práxis da
multidão. A ironia sobre as massas, o desprezo da multidão instauram-se na filosofia pós-moderna como uma espécie de libertinagem cética e cínica, que escarnece
a democracia.
Consequentemente, a imanência spinozista, que é uma filosofia
do fazer e do constituir, é esmagada numa determinação negativa: o
ser e a existência são, sim, consistentes, mas só no sentido de uma
negatividade ontológica radical.
Se a paixão conjuga-se com o desejo, é só para implodir no signo
da corrupção do tempo presente.
Quanto ao materialismo, longe
de pensá-lo como metamorfose e
como tecido da transformação
tecnológica do mundo, as filosofias pós-modernas vêem a permanência e o desenvolvimento da
existência somente no caos de novas formas e nas sombras das
margens.
Assim sendo, as novas redes do
saber e da práxis parecem ter
abandonado toda fisionomia
construtiva, material, singular.
Certamente não podemos dizer
que essas filosofias do pós-moderno (de Lyotard a Baudrillard, de
Rorty a Vattimo, de Virilio a Latour, para citar os mais conhecidos) deixem de perceber qualidades essenciais da fenomenologia
de nosso tempo. Mas todas, sem
exceção, nos apresentam, com a
sacrossanta narração do fim do
transcendentalismo moderno, um
espetáculo insensato do que resta
após a sua morte. É uma espécie
de apologia da resignação, é um
desempenho que se acomoda, por
vezes comiserativo, por vezes divertido, à beira do cinismo. Uma
ontologia cínica? Talvez.
Mas efetivamente mortificante e
absolutamente resistível se lhe
opusermos o nosso Spinoza. Nele,
o ser imanente expressa a criatividade e a alegria -que não podem
ser suprimidas- da existência. A
concepção afirmativa do ser oferece uma quieta confiança no devir que repousa na eternidade. As
lentes de Spinoza vêem o mundo
com a serenidade que o desejo do
eterno faz brotar na alma de todo
ser vivente. A potência do desejo
contra um poder que fixa a vida
como aparência espetacular.
Em suma, o redescobrimento de
Spinoza em 68 nos permite viver
"esse" mundo do "fim das ideologias" e do "fim da história"
como um mundo a ser reconstruído. E nos demonstra que a consistência ontológica dos indivíduos e
da multidão permite olhar para a
frente a cada emergência singular
da vida como ato de resistência e
de criação. Desse modo, Spinoza,
a anomalia do moderno, torna-se
o herói do povo pós-moderno que
luta, resistindo e construindo algo
"outro".
Antonio Negri é filósofo italiano, autor de "A
Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros.
Tradução de Roberta Barni.
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