São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SPINOZA
Filósofo da "Ética" é um antídoto à apologia atual da resignação
Herói do povo pós-moderno

ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

Aconteceu-me, em décadas passadas, ocupar-me de Spinoza (1632-1677) e sua "ethica", que permanece sendo um monumento supremo do pensamento humano. Os que me pedem para que eu torne a falar do filósofo perguntam-me de um Spinoza "pós-moderno", capaz de lançar as bases de um pensamento que impeça a invasão do pós-moderno "mole", do "pensamento único". Em suma, de um autor que, no próprio território do pós-modernismo, enfrenta e põe em crise o próprio pós-moderno. O que dizer diante dessa pergunta?
Para responder a essa questão retorno à releitura da filosofia de Spinoza de Matheron e Deleuze (por volta de 68). Tal releitura consistiu em cinco revisões da interpretação tradicional (que Hegel realizara), que subvertiam a imagem de um Spinoza panteísta a-cósmico e a-histórico.
A primeira revisão diz respeito à experiência da imanência. Essa opunha, à idéia de que a imanência fosse uma profundidade, uma leitura da imanência como superfície. O Deus panteísta era, portanto, um "deus superficial", um deus que constituía o horizonte imanente da possibilidade.
A segunda revisão tangia à concepção da finalidade. A finalidade já não era algo de pressuposto, um desenho abscôndito, mas o produto da necessidade humana de conhecimento e de organização do universo. A finalidade era constituída pela paixão, e a paixão movia-se num contexto de casualidade que já não reconhecia nenhuma exterioridade com relação à vida, nem nenhuma transcendência com relação ao mundo. Se havia valor, era o homem a fazê-lo.
A terceira revisão era política. Mesmo os transcendentais políticos, quer se posicionassem de acordo com a teoria aristotélica da transcendência dos arquétipos de governo (o um, os poucos, os muitos), quer segundo a pretensão hobbesiana da necessária hipóstase transcendental da autoridade (a soberania), estavam agora dissolvidos, desde que vistos da perspectiva da imanência absoluta. Se naquela época ainda se podia falar de poder soberano, esse só podia apresentar-se como democracia da multidão, ou seja, como autogoverno absoluto do conjunto das individualidades, levadas, a partir de seu desejo, à constituição do comum.
A quarta revisão consistia em reconhecer que o caminho intramundano da virtude constituía uma experiência criativa de eternidade. E de liberdade. Contra toda a teologia possível, Deus era construído pelo homem e, nessa perspectiva, a genealogia das paixões era posta em oposição a toda a teologia. Daí a quinta e última revisão: a da idéia de materialismo. A matéria, em Spinoza, cessava de ser o conceito de um contexto, o invólucro do movimento do universo. A matéria era antes vista de baixo, como tecido das transformações do mundo, portanto. Nisso, nesse materialismo do homem, nessa genealogia da liberdade, constantemente renovada e aberta, a filosofia de Spinoza alcançava o seu ápice.
Adotando a visão desse novo Spinoza que Matheron e Deleuze tinham apresentado, pode-se (eis a resposta à questão que os amigos me colocam) erigir uma barragem contra as documentações do existente e as inferências ontológicas que caracterizam as filosofias da pós-modernidade.
Essas filosofias são certamente, como Spinoza queria, superficiais. Mas pretendem nos introduzir num mundo que, tendo perdido Deus, tendo perdido o transcendental, já não tem valor. A imanência é, no pós-moderno, leve, umbrátil, mole e vazia. Naqueles pontos em que, em Spinoza, a destruição da transcendência e o reconhecimento do mundo são a rude afirmação da consistência da experiência e de sua dureza, que somente as paixões podem atingir e transformar, no pós-moderno a experiência ontológica é espectral e espetacular. E onde, em Spinoza, a destruição de todo finalismo e de todo movimento teológico é compensada pela emersão da criatividade do desejo, no pós-moderno -aceita a morte da teleologia e da ideologia- é a própria história que encontra seu fim.
No território político, as filosofias pós-modernas aceitam a crítica spinozista do absolutismo transcendental da autoridade, mas negam que a constituição do comum seja conferida à práxis da multidão. A ironia sobre as massas, o desprezo da multidão instauram-se na filosofia pós-moderna como uma espécie de libertinagem cética e cínica, que escarnece a democracia.
Consequentemente, a imanência spinozista, que é uma filosofia do fazer e do constituir, é esmagada numa determinação negativa: o ser e a existência são, sim, consistentes, mas só no sentido de uma negatividade ontológica radical. Se a paixão conjuga-se com o desejo, é só para implodir no signo da corrupção do tempo presente.
Quanto ao materialismo, longe de pensá-lo como metamorfose e como tecido da transformação tecnológica do mundo, as filosofias pós-modernas vêem a permanência e o desenvolvimento da existência somente no caos de novas formas e nas sombras das margens.
Assim sendo, as novas redes do saber e da práxis parecem ter abandonado toda fisionomia construtiva, material, singular.
Certamente não podemos dizer que essas filosofias do pós-moderno (de Lyotard a Baudrillard, de Rorty a Vattimo, de Virilio a Latour, para citar os mais conhecidos) deixem de perceber qualidades essenciais da fenomenologia de nosso tempo. Mas todas, sem exceção, nos apresentam, com a sacrossanta narração do fim do transcendentalismo moderno, um espetáculo insensato do que resta após a sua morte. É uma espécie de apologia da resignação, é um desempenho que se acomoda, por vezes comiserativo, por vezes divertido, à beira do cinismo. Uma ontologia cínica? Talvez.
Mas efetivamente mortificante e absolutamente resistível se lhe opusermos o nosso Spinoza. Nele, o ser imanente expressa a criatividade e a alegria -que não podem ser suprimidas- da existência. A concepção afirmativa do ser oferece uma quieta confiança no devir que repousa na eternidade. As lentes de Spinoza vêem o mundo com a serenidade que o desejo do eterno faz brotar na alma de todo ser vivente. A potência do desejo contra um poder que fixa a vida como aparência espetacular.
Em suma, o redescobrimento de Spinoza em 68 nos permite viver "esse" mundo do "fim das ideologias" e do "fim da história" como um mundo a ser reconstruído. E nos demonstra que a consistência ontológica dos indivíduos e da multidão permite olhar para a frente a cada emergência singular da vida como ato de resistência e de criação. Desse modo, Spinoza, a anomalia do moderno, torna-se o herói do povo pós-moderno que luta, resistindo e construindo algo "outro".


Antonio Negri é filósofo italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros.
Tradução de Roberta Barni.




Texto Anterior: Milton Santos: O chão contra o cifrão
Próximo Texto: Modesto Carone: Nós e o castelo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.