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LIVROS
Em "Sobre Schmidt", Louis Begley dá tratamento leve e irônico à vida de um
advogado em fim de carreira
Comédia de outono
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
"Sobre Schmidt" -um advogado aposentado de 60 anos, passando a viuvez no luxo de uma
mansão em Long Island, exercitando os prazeres ambíguos do romance familiar e os preconceitos
discretos de um branco-anglo-saxão-protestante- o que se pode
dizer? Tudo e nada: desde as lições
de Flaubert e Henry James, a minúcia e a nuança, o quase-nada da
experiência são o campo prioritário para o quase-tudo da literatura. E é justamente sobre a personagem improvável, até certo ponto
desagradável, desse homem sem
grandes aventuras e sem grandes
paixões que Louis Begley vem
construir seu quarto livro, uma
comédia de outono.
Depois de "Infância de Mentira" (1991), um relato extraordinário (em boa medida autobiográfico) de como um menino polonês
sobrevive ao nazismo, nada poderia ser mais inesperado do que o
segundo romance do autor. "O
Homem Que Se Atrasava" (1992)
se volta para o mundo sofisticado
das elites nova-iorquina e parisiense, que Begley, advogado
bem-sucedido e estreante tardio
na ficção, conhece de perto. Um e
outro livro, na verdade, têm temas
em comum, em que pesem as diferenças de tratamento e circunstância. O tempo e a passagem do
tempo, a duplicidade e a divisão, a
perda inexplicável de pessoas, afetos, sentidos; e aquilo que Schmidt
descreve como "um tormento infindável, distribuído ao acaso,
mas sem deixar ninguém de fora".
O banqueiro Ben, no segundo
romance, era o homem que chegava tarde demais nas principais
questões de sua existência. "O
Olhar de Max" (1994) elabora de
outra perspectiva -um amor homossexual- essa elegia pelos sentimentos abandonados e oportunidades desprezadas. A paixão é a
grande educadora de todos esses
homens perdidos na ininteligibilidade da vida. Revelações e transformações só são possíveis sob a
pressão dos afetos; mas chegam
sempre cedo demais ou tarde demais, e o milagre de uma coincidência amorosa parece isso mesmo, um milagre: falhado no passado, entrevisto no futuro, fulgurante.
Sobre Schmidt e em torno a
Schmidt (o título original,
"About Schmidt", permite as
duas interpretações), o livro tece
mais uma vez essa trama contraditória de atos, crenças e emoções
que definia as indefinições dos outros romances. Da dissonância
inicial -uma notificação do casamento da filha de Schmidt com
um jovem advogado judeu, o que
não agrada ao pai- o romance
extrai energia suficiente para vários movimentos. Pequenas indignidades infligidas sobre o recém-viúvo e traições maiores sobre o recém-aposentado compõem um contraponto ao amor
difícil entre pai e filha, que traz à
lembrança desde Jane Austen e
Trollope (homenageado no livro)
até a referência última, em "Rei
Lear".
Na rica rede de alusões da prosa
de Begley uma simples frase pode
ser o bastante para receber o espírito de Henry James, outro grande
dramaturgo das posses e do capital. Até uma expressão solta
-"The problem"s beautiful
complexity" ("A linda complexidade do problema")-, infelizmente transformada em uma
complexidade "extraordinária" e
pouco jamesiana na tradução
(pág. 83). Luzes e sombras do estilo tão cuidadoso de Begley vão revelando os livros perdidos e guardados por trás desse, que tem em
Proust outro ancestral. "The magic of involuntary memory" ("a
mágica da memória involuntária") comemora em tons indubitáveis -perdidos na "lembrança
involuntária" e sem "mágica" da
versão brasileira (pág. 220)- o
maior romancista moderno, que
não é só um narrador das temporalidades, mas também das idas e
vindas de judeus refinados pelo
mundo cristão-secular. Todos esses fantasmas são vertidos por Begley, nem sempre com a mesma
confiança, para a paisagem social
e moral americana deste fim de século.
Ao contrário de tantos filmes e
livros que começam bem e vão
perdendo força, "Sobre
Schmidt" merece um voto de
confiança de leitores muito apressados ou muito cuidadosos: o livro
melhora em tudo, à medida que
vai descobrindo seus meios. A retomada, em boa parcela, da voz do
banqueiro Ben, reeditada no advogado Schmidt, não chega a ser
desconfortável, embora trace os limites da imaginação tonal do romancista. Uma visita ao Amazonas também traz à lembrança, voluntária mais do que involuntária,
as peripécias brasileiras do segundo romance. Pouco importa: é um
prazer inesperado visitar a consciência desse anti-semita leve,
apaixonado pela mulher que, mesmo assim, traía e frustrado na relação com a filha que ele perdeu a
chance de bem criar, e descobrir
recursos latentes de autoconhecimento e mudança. Latência não
vira potência por nada. A paixão
erótica (a princípio) e amorosa
(em consequência) de Schmidt
por uma garçonete porto-riquenha, mais moça do que sua própria filha, tem lugar de destaque
entre os amores difíceis que Begley
vem desfiando livro após livro,
sempre com enorme empatia.
O fim do livro é um presente do
romancista para sua personagem.
Depois de tantas dúvidas, tantos
acertos, tantos cálculos, tantos
atrasos, depois de tantas violações
da dignidade, um pouco de lucidez é o mínimo que sobra. Que isso corresponda, ainda, à aceitação
caótica das contingências e ao
bem-humorado descontrole do
coração é só mais uma coisa "sobre Schmidt" que todos nós sabemos, mas temos de aprender de
novo, romance após romance, na
literatura e fora dela.
A OBRA
Sobre Schmidt - Louis Begley.
Tradução de Anna Olga Lemos
de Barros Barreto. Companhia
das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel.
011/866-0801). 240 págs. R$
26,00.
Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música"
(Ática), entre outros.
E-mail: nestro@uol.com.br
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