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A democracia criminosa
Jacques Rancière
Há alguns meses apareceu na
França um livro de título intrigante: "As Tendências Criminosas da Europa Democrática"
["Les Penchants Criminels de l'Europe
Démocratique", ed. Verdier]. O autor,
Jean-Claude Milner, não deixava os leitores ignorarem por muito tempo de
qual crime a democracia era, segundo
ele, culpada. Por uma demonstração que
mobilizava com extrema sutileza todos
os recursos da filosofia e da lingüística,
da psicanálise e da história, ele afirmava
uma tese simples. O crime que a democracia carregava em si era simplesmente
o extermínio dos judeus da Europa.
Inútil responder que o regime nazista
que havia planejado esse extermínio não
invocava a democracia. O argumento era
exatamente virado pelo avesso: segundo
Milner, o que tornara possível depois de
1945 a construção de uma Europa apoiada sobre o princípio da democracia fora
precisamente o fato de o nazismo haver
suprimido nos anos precedentes aquilo
que contrariava seu advento, a saber, a
existência na Europa de uma forte comunidade judaica.
O argumento histórico incontrolável
devia evidentemente ser apoiado por um
argumento teórico, que se apresenta assim: o reinado da democracia moderna é
o de uma sociedade que não quer mais
conhecer nenhum limite a seus poderes.
Essa não-limitação se ilustra particularmente nos sonhos contemporâneos da
manipulação genética, abolindo a diferença última entre natureza e artifício e
dando filhos fabricados in vitro a casais
homossexuais. Ora, essa tendência da
sociedade democrática moderna a levar
seu poder ilimitado inclusive até a abolição da filiação depara com um inimigo
irredutível: o povo reunido em torno do
princípio mesmo da filiação e da transmissão, ou seja, o povo judeu. A conclusão era tirada naturalmente: ao exterminar os judeus da Europa, Hitler realizava
o sonho íntimo da democracia e permitia seu reinado europeu.
Por extrema que seja, essa demonstração se inscreve sem dificuldade na paisagem do pensamento político e filosófico
de hoje. Sabe-se da importante virada
que nele se operou nos anos 1980. Até então o mundo dito ocidental vivia uma
certa idéia da democracia como sistema
jurídico-político. Uns opunham seu direito universalista e suas liberdades individuais à coerção totalitária.
Outros denunciavam sob suas formas
universais a realidade da exploração econômica e da dominação de classe. Democracia real contra democracia formal
ou, em sentido inverso, direitos do homem democrático contra totalitarismo,
tal era a paisagem. A oposição, por certo,
autorizava algumas mediações: os partidários da democracia real por vir podiam mostrar-se mais orgulhosos quanto à defesa das liberdades formais que os
cantores da democracia liberal. Estes últimos, por seu lado, responsabilizavam
com freqüência as fraquezas ou os excessos da democracia pelo advento de regimes totalitários. Mas faltava muito para
chegar à idéia de que o extermínio dos
judeus fosse a realização direta do princípio democrático.
Para dar um passo lógico tão desconcertante, é preciso que a paisagem do
pensamento político tenha sido seriamente abalada nesse meio tempo. Esse
abalo de fato ocorreu, mas também tomou uma forma à primeira vista paradoxal. De um lado, a denúncia do totalitarismo, desde os anos 1980, fez-se mais radical e mais insistente do que nunca.
Mas, de outro lado, a distinção entre o
totalitarismo denunciado e a democracia
tendeu a fazer-se cada vez mais tênue.
O acontecimento radical
De um lado, o fim do sistema soviético foi
acompanhado de um inventário minucioso que fazia de toda a história do comunismo uma única e longa lista de crimes registrados em volumosos "livros
negros". Ao mesmo tempo, o genocídio
nazista suscitava uma atenção inteiramente nova, que se traduzia não apenas
por uma multiplicação dos testemunhos,
mas por uma corrente de pensamento
que fazia dos campos de extermínio o
acontecimento radical sob cuja luz devia
ser repensada toda a história dos dois últimos séculos.
Mas é então que aparece o paradoxo.
Podia-se acreditar que o desmoronamento da alternativa soviética e o novo
balanço dos crimes nazistas e soviéticos
reforçaria a frágil fé ocidental nas virtudes da democracia. Não foi o que aconteceu. Ao contrário, à medida que os crimes desses regimes conheciam uma nova publicidade, os antigos cantores dos
direitos do homem ocidental e democrático se voltavam contra seu ídolo de ontem. Os mais encarniçados em denunciar os crimes soviéticos eram, como o
historiador François Furet, os primeiros
a ver neles a conseqüência direta da Revolução Francesa. Podia-se ainda, é verdade, denunciar os excessos do "governo
do povo" revolucionário e opô-los aos
"direitos do homem" proclamados pela
revolução liberal norte-americana.
Mas esses direitos mesmos logo caíam
sob suspeita. Era o tempo em que sociólogos americanos, como Daniel Bell, denunciavam os danos do individualismo
de massa que arruínam toda forma de
autoridade comum. Junto com eles, politicólogos franceses, como Marcel Gauchet, faziam dos direitos humanos a fórmula mesma desse individualismo democrático de massa, destruidor não apenas da autoridade mas do próprio sentido da comunidade política.
Assim, as oposições tradicionais tendiam aos poucos a desaparecer. Os furores das multidões revolucionárias tornavam-se idênticos à dispersão dos indivíduos egoístas e narcísicos da sociedade
democrática. E o "desligamento" democrático, idêntico à catástrofe totalitária.
Podia-se então, com Giorgio Agamben,
mostrar nos "direitos do homem" a confusão da identidade cidadã e da vida nua
e ver sua lógica igualmente realizada no
genocídio nazista e no cotidiano de nossas democracias. Podia-se, com Jean-Claude Milner, fazer da democracia o
princípio mesmo do genocídio.
O problema então é saber que forma de
bom governo é oposta a essa democracia
que não se distingue mais do totalitarismo. Alguns chamam-na República e
opõem a virtude do bom governo republicano à anarquia dos indivíduos democráticos guiados apenas por seu prazer.
Quanto a Milner, ele escolhe um termo
mais cru: governo pastoral.
Com isso ele nos lembra a origem muito antiga dos discursos atuais sobre a democracia. Foi Platão que, na "República", esboçou o quadro da cidade democrática que nossos sociólogos retomam
indefinidamente: a democracia, diz ele, é
o regime sedutor em que todo mundo é
livre e só faz o que lhe apetece; não apenas os homens, mas também as mulheres e as crianças e mesmo os cavalos e os
burros, cujo orgulho democrático leva a
ocuparem a rua e a esbarrarem nos passantes. É sempre desse burro democrático indócil que nos falam as descrições
complacentes da sociedade do conforto
ilimitado, na qual os trabalhadores que o
exigem sempre mais e os desempregados inebriados de prazeres novos destroem, por suas exigências insensatas, a
comunidade republicana. Mas a denúncia do burro indócil oculta certamente
uma perturbação mais profunda.
Na democracia, nos diz Platão, os governantes têm o aspecto de governados
e, os governados, de governantes. Compreendemos então, ao lê-lo, que o verdadeiro escândalo da democracia não reside nos furores das massas ou na licença
dos indivíduos. Reside simplesmente em
que o fato de governar se mostre ali como puramente contingente, fundado em
nenhum título dado pelo nascimento,
pela idade, pelo saber ou uma outra superioridade manifesta. A democracia é a
forma de governo baseada na idéia de
que nenhum indivíduo ou grupo possui
título para governar os outros.
Esse governo contingente de seja lá
quem for indica, para Platão, um mundo
que gira ao contrário. Houve um tempo
em que o mundo guiado pela divindade
girava no bom sentido: o poder era então
comparável à solicitude esclarecida do
pastor que sabe o que é bom para seu rebanho. É com esse governo pastoral, no
qual as elites se preocupam paternalmente com o rebanho e o protegem contra seus próprios humores rebeldes, que
hoje as pessoas sonham em voz cada vez
mais alta no Ocidente. Quanto a saber
quem deve educar esses pastores e como
reconhecer sua sabedoria, a coisa permanece mais obscura.
Jacques Rancière é professor na Universidade de
Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.
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