|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
Anti-semitismo no cristianismo é real e perigoso, mas é mais complexo que a idéia de que experimentar esteticamente a Paixão seja um discurso que força o ódio ao judeu
A teologia de Pôncio Pilatos
O filme não é uma peça histórica, mas uma meditação religiosa acerca da Paixão na era da reprodutibilidade técnica
|
Luiz Felipe Pondé
especial para a Folha
Em meio à "floresta densa" do
maior ou menor capital simbólico
do agente cognitivo (Bourdieu),
da politização (foucaultização)
agressiva das relações epistêmicas, do
paradoxo da fronteira suspeita entre
ideologia e conhecimento "objetivo"
(Mannheim), da consciência da incomensurabilidade contextual das famílias
de concepções (Kuhn, Wittgenstein, Latour), da idéia de idéia como ator social
(teoria crítica), enfim, diante dos desenvolvimentos mais recentes da definição
protagórica de "verdade" como eficácia
retórica, é praticamente inviável enunciar um juízo sem suspeita. "Veritas?
Quid est veritas?"
Evidentemente que essa condição de
deslize endêmico de sentido é sempre
função das variáveis relativas em jogo:
quando se faz interessante, opta-se por
uma retórica "objetivante". Quando o
objeto de discussão é "religião", essa sangria semântica é ainda pior.
Produto da mente humana
Em 1914, o filósofo e teólogo judeu-alemão
Franz Rosenzweig escreveu no seu
"Atheistiche Theologie" que uma mudança fundamental estava em curso no
modo de entendermos a herança religiosa judaica e cristã: a redução alegre da
idéia de Revelação à idéia de cultura, o
que por sua vez implicava a afirmação de
que o conteúdo dos textos revelados era
produto hermenêutico da mente humana, e não de Deus. E, mais, no caso específico do cristianismo, esse viés produziria uma crescente humanização de Cristo, desaguando na obsessão pelo "Jesus
histórico", eliminando, por fim, a idéia
de sua divindade. Essa transformação
seria definitiva para a morte da "religião"
como parceira epistêmica -Martin Buber e Leo Strauss concordaram com esse
diagnóstico.
Outra referência importante para a suposta evidente recusa do caráter teológico do filme "Paixão de Cristo", de Mel
Gibson -caráter esse que implica a afirmação de que, com todos os riscos que
ele gera, merece uma atenção mais cuidadosa por parte da nossa debilitada inteligência teológica- é a análise de Alexis de Tocqueville em "A Democracia na
América": o "homem democrático" tende inexoravelmente a reduzir toda relação cognitiva a uma relação de utilidade
na construção do seu bem-estar, logo,
"não me venha falar de sofrimento ou sacrifício, isso só pode ser sadomasoquismo". Trata-se de uma espécie de docetismo (a heresia que negava um corpo
real ao Cristo) sofisticado: ou bem Jesus
não sofreu tanto assim e os torturadores
pediam desculpas enquanto torturavam
-sabemos como essa "classe profissional" é econômica no exercício de sua
função- ou a Paixão não doeu tanto
porque Jesus não tinha braços que quebrassem de fato.
O recurso quase didático à experiência
estética da violência no cinema pode ser
facilmente justificado em cenas de desembarque em guerras ou na (justa) militância contra injustiças sociais -a fim
de gerar uma percepção sensorial da dor
do soldado ou da vítima social-, mas
jamais para indicar anatomicamente o
horror da condição torturada do inocente Homem-Deus que sofre no lugar do
Homem-hedonista e cínico. O filme não
é uma peça histórica, mas uma meditação religiosa acerca da Paixão na era da
reprodutibilidade técnica. Nossa sensibilidade viciada na usura do bem-estar
reclama dos maus modos da Paixão.
Todo ato teológico é um ato de risco
porque força o imperativo culturalizante (leia-se, a anomia da religião entendida como "curiosidades antropológicas"). O efeito imediato desse horror da
teologia é sua redução às bordas sociais e
psicológicas: tudo o que importa no filme é a grana ganha, a suposta intenção
difamadora, o caráter suspeito de um diretor religioso, jamais uma reflexão teológica acerca de como a Paixão é insuportável para um "humano" inflado que
projeta sobre a sobrenaturalidade do
Cristo (que agüenta uma dor que nós
não podemos nem ver) sua face hedonista. A suposta afirmação do diretor de que
seu filme "é uma inspiração do Espírito
Santo" só pode ser tomada como ridícula ou como um ato de má-fé.
Ineficácia semântica
Esta é a questão: um enunciado desse tipo é sem eficácia semântica. Resta-nos o "retorno"
do reprimido na forma de excessos de
terror e de depressão crescente. Talvez
seja necessário ensaiar novas teorias sobre a "questão da religião". O bê-á-bá da
proibição de véus não nos levará muito
longe. Mesmo no caso do risco anti-semita, a discussão dos "experts" deveria
ultrapassar a barreira do senso comum:
o problema histórico do anti-semitismo
no cristianismo é real e perigoso, mas é
muito mais complexo do que a idéia
simplista de que experimentar esteticamente a Paixão seja um discurso que
força levianamente o ódio ao judeu
-desde quando a interpretação rasa deve ser argumento desqualificador evidente para uma discussão séria?
Para além da variação descritiva entre
Lucas (menos anti-semita) e Marcos
(mais anti-semita) preservada na "Paixão" (há um evidente espectro de diferentes comportamentos entre os personagens judeus ao longo do "julgamento"
e da "via crúcis"), o "locus" judaico de
Maria e Madalena é claramente resguardado nas palavras ditas por elas na sua
entrada em cena no filme, palavras essas
repetidas no "Seder de Pessach" por todo judeu até hoje -entre eles, eu. Traduzindo aproximadamente: "O que esta
noite tem de diferente de todas as outras
noites?". Para além do fato óbvio de que
a elite sacerdotal judaica -aliada do governo romano na ordem opressora-
poderá ter agido do modo costumeiro
-todos sabem que a casta sacerdotal judaica, como toda casta, foi violenta na
defesa de seus interesses, com ou sem Jesus-, persiste o problema de que o drama de Cristo se inscreve na economia
teológica do próprio judaísmo.
Aos olhos de uma teologia cristã que
não se faça de segunda, a teologia cristã
permanece na sua raiz judaica: se Jesus é
o Messias, a casta sacerdotal, assim como
o governo romano, realizavam a decisão
de Deus -Ele é o Adão que pisa na serpente ao invés de adorá-la. Cristo teve
que sofrer a Paixão não por conta dos judeus (em especial), mas por conta da humanidade. Um fator essencial nesse diálogo é em que medida o cristianismo representa uma tensão interna ao próprio
judaísmo: como aliar um Deus universal
a uma história particular? Os judeus, como povo eleito, teriam, nesse episódio,
que atuar (mais uma vez) a trágica desgraça humana de excluir Deus do seu
convívio -assumindo, como os cristãos
o fazem, que Jesus é Deus. O anti-semitismo é preguiça teológica por parte dos
cristãos, e quem não o combate deveria
ser "ex-comungado". A memória pontual de Jesus ao longo do filme revela de
modo preciso o paradoxo de sua mensagem para uma mente hedonista.
Diante de Pilatos, o absurdo de um carpinteiro judeu ignorante, historicamente
determinado, que fala latim, é um fato
banal para a nobreza de um Homem-Deus -aliás, antes de tudo, seu "caráter" histórico é sua "abertura" para a dor.
Mas é mais fácil se esconder na "floresta
densa" e se perguntar, como Pilatos,
"quid est veritas", enquanto a "massa
embrutecida" lava os olhos diante dos
fantasmas da Paixão.
Luiz Felipe Pondé é professor de filosofia da pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), da Fundação Armando Álvares
Penteado e professor convidado da Universidade
de Caen (França). É autor de, entre outros, "Crítica
e Profecia" (ed. 34).
Texto Anterior: + autores: A democracia criminosa Próximo Texto: + história: Uma questão de ordem Índice
|