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+ história
Na ausência de biografias definitivas, decantado apoio do sociólogo Gilberto Freyre
ao golpe de 64 pode ser rastreado em artigos publicados em jornais da época
Uma questão de ordem
Freyre transformou sua coluna semanal em tribuna para exaltar a "saudável presença das Forças Armadas na vida pública brasileira"
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Túlio Velho Barreto
especial para a Folha
De forma recorrente, o efusivo
apoio do sociólogo Gilberto
Freyre (1900-87) ao golpe militar de 1964 ganha status de
enigma. Isso acontece porque inexiste
uma biografia de Freyre que ultrapasse
os enfoques culturais de sua vasta obra
ou pontuais de sua longa vida. Daí resulta alguma dificuldade para que sejam estabelecidas relações entre seu breve exílio, provocado pela Revolução de 30, sua
eleição para deputado federal constituinte, após o Estado Novo (1937-45), com
apoio da esquerda, e seu comportamento diante do golpe de 64. Embora trate
aqui dos artigos de Freyre publicados
pouco antes e logo após o golpe, em especial contra a permanência do reitor da
Universidade do Recife no cargo, darei
algumas pistas de como tenho tentado
propor a resolução do referido enigma.
Isto é, quando ocorreu a Revolução de
30, Gilberto Freyre era secretário particular do governador deposto, com quem
foi exilado. Apesar disso e da reação dos
conservadores a "Casa-Grande e Senzala", Freyre freqüentou o Catete durante o
Estado Novo e foi convidado para o cargo de ministro da Educação, que recusou. Getúlio Vargas ofereceu-lhe, então,
uma embaixada, Londres ou Lisboa, sem
sucesso.
Nos anos 40, o escritor teve atuação política mais ativa quando universitários
pernambucanos passaram a usar suas
idéias sobre raça e cultura como contraponto àquelas professadas pelos nazistas. E, pela mesma razão, se aproximou
da esquerda. Assim, participou da redemocratização e se elegeu deputado constituinte pela Esquerda Democrática.
Mas, mesmo filiado à UDN, ele se apresentou como candidato independente.
No início dos anos 60, Freyre já se relacionava com o general Castello Branco,
então comandante do 4º Exército, em
Recife. "Gilberto apoiou a Revolução de
64. Ele era amigo de Castello Branco, que
vinha muito à casa de Apipucos, chegava
muitas vezes às seis horas da manhã,
com o jornal debaixo do braço, e ficava
no terraço esperando que papai o atendesse. Ele acordava muito cedo e os dois
iam conversar", narrou seu filho em entrevista recente. Em 11/4/1964, o mesmo
Castello Branco, já chefe do Estado-Maior do Exército, tornou-se o primeiro
presidente do novo regime.
Intelectual do regime
Dessa forma, não causou surpresa o convite para
que assumisse o Ministério da Educação,
cargo que, apesar da "inesquecível emoção", novamente declinaria em razão de
seus compromissos "quase sagrados
com a vocação máxima de escritor". Poderia, entretanto, assumir "missões extraordinárias", quando fosse "oportuno
ou necessário", segundo telegrama ao
general-presidente. Também não deve
causar estranheza a recusa. Ademais, tal
decisão só robusteceu sua autoproclamada independência intelectual e política. Na verdade, em nome dela, ao longo
da vida, Freyre fez parte do establishment sem precisar, de fato, integrá-lo.
Em 1964, com a idade do século, tornou-se, enfim, "o" intelectual do regime.
Assim, transformou sua coluna semanal nos jornais de Assis Chateaubriand
em tribuna para exaltar a "nova e saudável presença das Forças Armadas na vida
pública brasileira" e lembrar que já escrevera artigo para uma revista internacional destacando o caráter suprapartidário das Forças Armadas brasileiras,
"cuja intervenção na vida pública ocorreria apenas, de modo decisivo e superior, em momento de agudo desajustamento internacional ou interpartidário e
para sobrepor aos interesses facciosos,
em conflito ou em choque extremado, o
interesse ou a conveniência autenticamente nacional".
Ou seja, o que acabara de ocorrer. Tal
idéia passou a ser recorrente na coluna e
em publicações acadêmicas.
Mas, um mês antes do golpe, Freyre
havia escrito sobre a presença do embaixador soviético em Recife, que se fazia
acompanhar de professores universitários pernambucanos, e não de líderes comunistas. Aproveita para ressaltar a importância que a "Rússia Soviética" dava
às universidades e à pesquisa científica,
pois lá "as universidades, em vez de cuidarem de campanha de alfabetização,
cuidam de preparar elites não só de técnicos como de cientistas. Não se esquivam ao que possa ser considerado aristocrático nas tarefas que cabe às universidades desempenhar. Não se deixam dominar por um descabido democratismo
que resultasse na anulação da elite".
Na verdade, o artigo era um pretexto
para criticar o reitor da Universidade do
Recife (hoje, Universidade Federal de
Pernambuco). Em "Vida e Mimesis" (ed.
34, 1995), [o crítico] Luiz Costa Lima relembra que, no início de 1963, foi convidado para assumir a editoria da recém-criada revista "Estudos Universitários" e
explica: "O reitor cogitava romper o caráter rançoso -mais rançoso do que
apenas reacionário- da instituição,
criando, simultaneamente, uma rádio
cultural, um serviço de extensão e uma
revista. A primeira seria dirigida [por]
José Laurênio de Melo e, o segundo, por
Paulo Freire. Em breve, o serviço de extensão se converteu no centro de preparação do método de alfabetização idealizada por Paulo". Em outras palavras, o
reitor operava uma pequena revolução
cultural na instituição, o que suscitava
reações dos intelectuais conservadores.
Então veio o golpe, o convite e a recusa
para assumir o Ministério da Educação,
o que não significava abrir mão de um
poder, que Freyre sabia possuir -quer
por sua estatura intelectual, quer por relações pessoais. Muito pelo contrário.
Após três artigos em que exaltava as Forças Armadas, ele escreve: "Várias são as
pessoas que me vêm interrogando acerca da minha opinião em face da permanência do ilustre professor João Alfredo
da Costa Lima como Reitor da Universidade do Recife". O preâmbulo servia,
apenas, para expor um claro objetivo: "A
Revolução de 31 de março, para ser fiel a
si mesma, está obrigada a afastar de comandos importantes os responsáveis
por uns tantos extremos nos últimos
anos do Governo deposto, nefasto precisamente pelo que nele se vinha requintando, ora como conivência, ora como
complacência com a infiltração comunista no Brasil".
Em cruzada contra a permanência do
reitor no cargo, Freyre argumentava que
a considerava incompatível "com uma
nova fase na vida brasileira, de corajosas
reformas, de estilo de Governo e de normas de administração". Além disso, representava "uma negação da justiça revolucionária" e poderia tornar o esforço
revolucionário vão, afirmava enfaticamente. Até porque, para ele, é preciso
que a "revolução não tema ser ou parecer
Revolução pelo receio de desagradar certos liberalões dos Estados Unidos ou da
Europa ou Caracas". Por isso, critica a
comissão criada para investigar o reitor,
pois, em outros órgãos, a substituição de
dirigente foi imediata.
Embora o reitor resista, Freyre passa a
especular sobre quem poderia assumir o
cargo, ao mesmo tempo em que se "consola" com nomeações ocorridas na esfera estadual. Finalmente, em junho, João
Alfredo é afastado. Freyre, então, muda
de assunto e se volta para os "compromissos quase sagrados" com sua vocação de escritor, intelectual e politicamente, independente. Ou seja, mantém o
mesmo comportamento que, na década
de 40, levou João Cabral de Melo Neto,
seu primo, a denominá-lo "ditador intelectual desta boa província".
Nota
As citações de Gilberto Freyre foram extraídas de
duas reportagens e 12 artigos publicados no "Diário de Pernambuco" entre 1º/3 e 21/6/64.
Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
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