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+(s)ociedade
Um amor de carro
A partir da paixão de seu pai por veículos Citroën, na Inglaterra do pós-guerra, Tony Judt conta
a história dos conflitos culturais no século 20
Para os homens nascidos no entreguerras, o automóvel simbolizava liberdade e prosperidade
Era no carro que meu pai se sentia mais em casa e minha mãe, menos
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TONY JUDT
Segundo minha mãe,
meu pai era "obcecado" por automóveis.
Na visão dela, a eterna
fragilidade de nossa
economia doméstica se devia à
tendência de seu marido de
gastar com eles todo nosso dinheiro que pudesse sobrar.
Não posso avaliar se ela tinha
razão em relação a isso -é bastante evidente que, deixada por
conta própria, teria limitado a
família a um veículo pequeno
por década, quando muito.
Mas, mesmo aos olhos solidários de seu filho admirador,
meu pai de fato parecia viver
bastante absorto em seus carros -e especialmente os da Citroën, a montadora francesa
cujos produtos idiossincráticos
enfeitaram o pátio de frente de
nossa casa durante toda minha
infância e adolescência.
Havia a ocasional aquisição
inglesa feita por impulso e que
não tardava a ser lamentada
-um Austin A40 conversível,
um AC Ace esportivo-, além
de um caso que durou um pouco mais com um DB Panhard,
sobre o qual falarei mais adiante; mas, entrava ano, saía ano,
Joe Judt dirigia, falava sobre e
consertava Citroëns.
O fato de meu pai ter sido tão
obcecado pelo motor de combustão interna era inteiramente condizente com sua geração.
A chamada "cultura do carro" chegou à Europa ocidental
na década de 1950, que foi mais
ou menos o momento no qual
meu pai se viu em condições de
ingressar nela.
Os homens nascidos antes da
Primeira Guerra Mundial já estavam adiantados na meia-idade antes de os automóveis ficarem ao alcance da maioria dos
europeus.
Nos anos 1930 e 1940, os automóveis eram limitados a carrinhos notórios por seu desconforto e pelas panes, e a
maioria dos europeus não teve
condições financeiras de adquirir algo melhor até passado
o auge de sua maturidade.
Já minha geração cresceu na
companhia de carros e não enxergava neles nada de especialmente sedutor ou romântico.
Gasolina barata
Mas, para os homens nascidos no entreguerras, o automóvel simbolizava liberdade e
prosperidade recém-conquistadas. Eles tinham condições
de possuir um veículo, e havia
muitos disponíveis.
A gasolina era barata, e as estradas ainda eram agradavelmente vazias.
Nunca entendi inteiramente
por que tínhamos que andar
em um Citroën. A posição ideológica de meu pai em relação a
isso era que os Citroëns eram
os mais tecnologicamente
adiantados que havia.
Eles eram inquestionavelmente mais confortáveis que a
maioria dos sedãs familiares
comparáveis e, provavelmente,
mais seguros também.
Se eram mais confiáveis, já é
outra questão: nos tempos anteriores à revolução automotiva japonesa, carro nenhum era
especialmente confiável na estrada, e passei muitas noites
maçantes entregando ferramentas a meu pai enquanto ele
mexia em algum motor disfuncional, até tarde da noite.
Olhando em retrospectiva,
me pergunto se a insistência de
meu pai em comprar Citroëns
não teria tido alguma relação
com sua vida pregressa.
Afinal, ele era imigrante: nascido na Bélgica, criado ali e na
Irlanda e tendo chegado à Inglaterra apenas em 1935.
Com o tempo, aprendeu a falar um inglês impecável, mas,
sob a superfície, permaneceu
um europeu continental: seu
gosto por saladas, queijos, café
e vinhos frequentemente destoava da falta de preocupação
de minha mãe, bem inglesa,
com a comida ou a bebida.
Quanto à razão de nos termos tornado uma família "Citroën", quando os veículos
Volkswagen, Peugeot, Renault,
Fiat e todo o resto eram facilmente disponíveis e custavam
menos, gosto de pensar que havia alguma motivação étnica
subliminar em ação.
Aristocratas x pobres
Carros alemães estavam fora
de questão, é claro. A reputação
dos veículos italianos estava
em seu ponto mais baixo: a impressão amplamente difundida
era a de que os italianos eram
capazes de projetar qualquer
coisa -apenas não eram capazes de construí-la.
A Renault tinha sido maculada pela colaboração ativa de seu
fundador com os nazistas.
A Peugeot era uma empresa
respeitável, mas mais conhecida por suas bicicletas; de qualquer maneira, seus carros eram
construídos como tanques e
pareciam ser carentes de verve
(o mesmo argumento era apresentado contra os Volvos).
E, consideração que talvez
fosse a decisiva, embora não
declarada: o fundador epônimo
da Citroën tinha sido um judeu.
Havia algo de levemente embaraçoso em nossos automóveis. Em uma era de austeridade e provincianismo, pareciam
atribuir à nossa família uma
qualidade agressivamente exótica e "estrangeira", o que levava minha mãe, em especial, a
sentir-se pouco à vontade.
E, é claro, eram (relativamente) caros, e, portanto, ostentosos.
Recordo-me de uma ocasião
em meados dos anos 1950
quando atravessamos Londres
de carro para visitar meus avós
maternos, que viviam numa casa geminada decadente em
uma rua lateral em Bow.
Naquela época ainda havia
poucos automóveis naquela
parte de Londres, e os que havia
geralmente eram pequenos
Ford Populars ou Morris Minors pretos, testemunhos dos
recursos limitados e gostos
convencionais de seus donos.
E lá estávamos nós, saindo de
um Citroën DS 19 branco e reluzente, como aristocratas vindos para inspecionar seus inquilinos pobres.
Durante alguns anos, por volta de 1960, a obsessão de meu
pai pelos automóveis o levou a
participar do esporte automotivo amador. Todos os domingos, nós dois viajávamos até
Norfolk ou East Midlands, onde outros entusiastas por carros preparavam programas organizados de corridas.
Amigos diversos da família
eram atraídos (em troca de remuneração? Eu nunca soube)
para fazer as vezes de "mecânicos", enquanto me era confiado
o encargo curiosamente responsável de cuidar da pressão
dos pneus antes das corridas.
Isso era divertido a seu modo, embora o ambiente pudesse
ficar maçante (homens adultos
discutindo carburadores por
horas a fio) e as viagens de ida e
volta levassem até seis horas.
Muito mais divertidas eram
as férias continentais (ou seja,
na Europa) que tirávamos naqueles anos.
Naqueles tempos anteriores
às grandes rodovias, uma viagem rodoviária europeia era
uma aventura: tudo levava
muito tempo, e sempre havia
alguma coisa que quebrava.
Sentado no banco da frente, do
lado "errado", eu tinha uma visão do lado do motorista das
gloriosas "routes nationales"
francesas.
Eu também era o primeiro a
ser abordado por policiais sempre que éramos parados por excesso de velocidade ou, em uma
ocasião memorável no meio da
noite em algum lugar nos arredores de Paris, quando fomos
parados em uma blitz militar.
Nossas viagens geralmente
eram feitas em família. Minha
mãe não dava a mínima se suas
férias eram passadas em Brighton ou Biarritz; achava as longas viagens de carro cansativas
e tediosas.
Mas, naquela época, as famílias faziam coisas em família, e
parte do objetivo de ter um carro era sair em "passeios".
Para mim, pelo menos (e,
nesse ponto, provavelmente
me assemelhava a meu pai), o
objetivo do exercício era a própria viagem -os lugares aos
quais íamos, especialmente nos
nossos passeios dominicais,
com frequência eram convencionais e tinham pouco de interessante que justificasse serem
conhecidos.
Mesmo do outro lado do canal da Mancha, a melhor parte
de nossas férias de verão e de
inverno sempre era a aventura
envolvida em chegar até lá: os
pneus furados, as estradas congeladas, o perigo das ultrapassagens em estradinhas rurais
estreitas e cheias de curvas, os
hoteizinhos exóticos aos quais
chegávamos tarde da noite,
após longas horas de desentendimentos domésticos amargos
sobre quando e onde pararmos.
Era no carro que meu pai se
sentia mais em casa e minha
mãe, menos. Considerando a
quantidade de tempo que passamos na estrada naqueles
anos, é surpreendente que o casamento deles tenha durado
tanto quanto durou.
Carro como lar
Olhando para trás, eu talvez
veja a autoindulgência de meu
pai com mais tolerância do que
via na época, apesar do prazer
que sentia em nossas viagens
familiares.
Hoje vejo meu pai como um
homem frustrado: preso na armadilha de um casamento infeliz e trabalhando em algo que o
entediava e, possivelmente, até
o humilhava. Os carros eram
sua comunidade.
Sem muito interesse por
pubs ou álcool e sem amigos no
trabalho, converteu o Citroën
em um companheiro para todas as finalidades.
O que outros homens procuravam e encontravam no álcool
e nas amantes, meu pai sublimava em seu caso de amor por
uma montadora de carros -o
que, sem dúvida, explica a instintiva hostilidade de minha
mãe em relação a isso.
Quando completei 17 anos,
aprendi a dirigir e, no tempo
devido, adquiri o primeiro de
muitos carros -como não poderia deixar de ser, um Citroën,
mas um 2CV baratinho.
Mas, embora tenha sentido
prazer na experiência e, mais
tarde, tivesse transportado diversas namoradas e mulheres
por boa parte da Europa e dos
EUA de carro, dirigir um veículo nunca significou para mim o
que significou para meu pai.
Como enxergava pouco encanto em oficinas mecânicas
frias e fosse destituído das habilidades técnicas necessárias,
não demorei a abandonar os
Citroëns por marcas mais confiáveis, embora menos exóticas: Honda, Peugeot e, eventualmente, um Saab.
É verdade que também dei
vazão a alguns caprichos movidos a testosterona: um conversível MG vermelho comemorou meu primeiro divórcio, e
guardo memórias agradáveis
de um Ford Mustang aberto
descendo pela Route 1 costeira
da Califórnia. Mas eles sempre
foram apenas automóveis, não
uma "cultura".
"Baby boomers"
Também essa me parece ser
uma reação própria de uma geração. Nós, "baby boomers",
crescemos com carros e com
pais que os adoravam.
As estradas nas quais nos formamos eram mais abarrotadas,
menos "abertas" que as do entreguerras e das décadas imediatamente posteriores à guerra. Havia pouco de aventuroso
em dirigir nelas e não muito a
ser descoberto.
As cidades nas quais vivíamos já estavam se tornando
hostis aos próprios automóveis: em Nova York e Paris, assim como em Londres e em
muitas outras cidades, faz pouco sentido ter um veículo particular em casa.
No auge de sua hegemonia, o
carro representava individualismo, liberdade, privacidade,
separação e egoísmo em suas
formas mais socialmente disfuncionais.
Mas, como é o caso de tantas
disfunções, essa era insidiosamente sedutora. Como Ozymandias [o faraó Ramsés 2º,
cujas grandeza e dacadência
são tema de soneto de Shelley],
o automóvel agora nos convida
a refletir sobre sua obra e seu
desespero. Mas foi bastante divertido em sua época.
TONY JUDT é historiador britânico e professor
na Universidade de Nova York (EUA).
Tradução de Clara Allain .
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