São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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Em "Machado de Assis - O Enigma do Olhar", que está saindo nesta semana pela editora Ática, o crítico Alfredo Bosi reivindica para Machado de Assis uma posição desvinculada das ideologias de seu tempo
A decifração do tempo

Folha Imagem
O escritor Machado de Assis (1839-1908), autor de "Dom Casmurro"


AUGUSTO MASSI
especial para a Folha

Com "O Enigma do Olhar", obra inteiramente dedicada a Machado de Assis, o professor, crítico e historiador da literatura Alfredo Bosi, 62, busca, mais uma vez, acertar os ponteiros do tempo histórico. De uma perspectiva individual, os cinco ensaios reunidos nesse novo livro resgatam e enfeixam reflexões iniciadas na década de 70. No âmbito do debate intelectual, além de juntar-se às homenagens dos cem anos do romance "Dom Casmurro", marca forte presença nos embates teóricos que ainda hoje envolvem diferentes interpretações do legado literário do bruxo do Cosme Velho. Editado pela Ática, "O Enigma do Olhar" chega às livrarias nesta semana.
Escrito em chave polêmica, o ensaio que abre e dá título ao livro revela uma prosa de alto teor crítico. Com a sobriedade de sempre, Alfredo Bosi marca posição diante das leituras sociológicas em torno da obra de Machado: Astrojildo Pereira, Raymundo Faoro e Roberto Schwarz. Já no breve ensaio, nem por isso menos instigante, "Uma Hipótese sobre a Situação de Machado de Assis na Literatura Brasileira", demanda uma decifração da obra machadiana que não reduza o horizonte do narrador às ideologias dominantes do seu tempo. Sem abrir mão do "quadro" local, Brasil urbano do século 19, reivindica para Machado uma "perspectiva" universal, próxima de um analista moral do século 18. Tanto pelo estilo, direto e incisivo, quanto pela argumentação cerrada, o livro é um convite ao debate.
Desde a "Dialética da Colonização" (1992), Alfredo Bosi não lançava um livro novo, mas este fato não significa que tenha arrefecido sua militância intelectual e sua notável inquietação crítica. Atualmente, além de diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e membro conselheiro da Comissão de Justiça e Paz, continua a dar aulas para as turmas de graduação da Faculdade de Letras. Essa mesma vocação pedagógica o levou a organizar o volume "Leitura de Poesia" (1996), no qual renomados críticos universitários revisitam a obra de importantes poetas brasileiros.
Em entrevista à Folha -da qual também participaram os professores de literatura José Miguel Wisnik, Alcides Villaça e Gilberto Pinheiro Passos, todos eles conhecedores de Machado, que fizeram suas perguntas por escrito-, Bosi comenta repassa sua fecunda convivência com a obra do escritor e dialoga abertamente -reconhecendo acertos e relativizando posições- com a chamada crítica sociológica.


Augusto Massi é poeta e professor de literatura na USP, autor de "Negativo" (Cia. das Letras).
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Por que ver modernidade em Capitu? Só vejo a antiga astúcia feminina, dotada de grande senso prático, uma constante desde o teatro grego


Folha - Composto por três textos inéditos e dois já publicados, "O Enigma do Olhar" revela grande coerência interna e escapa à definição tradicional de mais uma coletânea de ensaios sobre Machado de Assis. Situados estrategicamente na abertura e no final do volume, os textos inéditos conferem uma nova perspectiva de leitura para os mais antigos, dotando a obra de uma arquitetura própria. A sua prolongada reflexão em torno da figura de Machado finalmente encontrou uma forma?
Alfredo Bosi -
Esse livro, como todos os livros, tem uma história. Ela vem desde os anos 70, quando tive a oportunidade de ministrar um curso sobre "Memorial de Aires", o último romance de Machado de Assis. Àquela altura escolhi analisar este livro porque a sua fortuna crítica era parca e parecia o menos apreciado pela crítica machadiana. Talvez porque a garra crítica, aquela mistura de galhofa e melancolia que todos reconhecem nos grandes romances da fase madura de Machado, em especial nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas", não esteja tão presente no "Memorial de Aires".
A história é contada pelo Conselheiro Aires, sexagenário, diplomata e aposentado. Trata-se de uma composição singular porque, muito embora adote a forma de um diário, o narrador assume a posição de quem está distante dos fatos. Em virtude desse olhar do Conselheiro, as anotações do diário, ainda que voltadas para acontecimentos recentes, ocorridos no dia anterior, transformam-se em algo esbatido e longínquo. O olhar diplomático que abafa as contradições parece ajustar-se a uma espécie de ego ideal do último Machado. Contrariamente ao que eu mesmo esperava, mais do que conflitos de interesses econômicos imediatos que, em geral, constituem o estímulo das situações machadianas, acabei encontrando conflitos profundos, sobretudo conflitos de gerações.
O "Memorial de Aires" também é uma história de apadrinhamento. Mas, como os personagens estão quase todos instalados na mesma classe social, os conflitos de interesse parecem mais sutis. O famoso complexo do favor é rapidamente sublimado. Para mim era um desafio compreender o quanto Machado tinha interiorizado as relações assimétricas de apadrinhamento. No "Memorial" as relações de paternalismo foram como que abafadas, restando apenas um sentimento de desconforto do leitor, que vê com melancolia o velho casal Aguiar, que, após investir todo seu afeto nos jovens Tristão e Fidélia, termina em absoluta solidão. O Conselheiro, sem coragem de conversar com o velho casal, diz uma frase patética: "Consolava-os a saudade de si mesmos".
Veja como está sublimada, numa delicadeza elegíaca, essa relação em que, a partir de um determinado momento, os afilhados não precisam mais dos seus protetores. Desta feita, não há nenhuma necessidade econômica ditando a dinâmica do paternalismo, recurso tão frequente nos primeiros romances. Quando essa relação deixa de ser necessária ocorre um outro tipo de ruptura, agora sob as formas ditas de ingratidão. Essa fenomenologia, típica das relações assimétricas, é esbatida nesse último romance. Ela quase desaparece, se estreita muito, mas o fato de ainda existir me fez pensar que valeria a pena insistir no conceito de assimetria. Diria que em Machado as relações humanas são sempre assimétricas. Há uma espécie de universalização da diferença. Esse esforço analítico resultou no ensaio "Uma Figura Machadiana", que é o Conselheiro Aires.
Numa etapa posterior, em 1976, aceitei um convite do crítico uruguaio Angél Rama para organizar uma antologia de contos de Machado de Assis, dentro da empresa notável que foi a Biblioteca Ayacucho. Na tentativa de prosseguir investigando essa idéia básica de assimetria, confirmei uma hipótese levantada no estudo sobre o "Memorial de Aires". Pude verificar, a partir dos contos, que essas relações assimétricas provocavam comportamentos diferenciados. Esses comportamentos às vezes estão rentes ao que se chama de típico. Isto é, as personagens agem exatamente como se pode esperar de uma sociedade regida por interesses assimétricos em que o paternalismo ainda é uma das vigas mestras. Típico é tudo aquilo que se espera de quem está por cima e de quem está por baixo.
Não é possível esquecer que nós estamos dentro de uma corrente literária que é o chamado realismo, na qual a tipicidade é muito ressaltada. No caso dos naturalistas, degrada-se até chegar à caricatura. Evidentemente, Machado não é um naturalista e a leitura crítica que fez do romance "O Primo Basílio", de Eça de Queirós, já mostra como ele desconfiava das tipicidades naturalistas. Mas, à medida que ele é um grande realista, o seu olhar não podia ignorar as duas faces possíveis dessa sociedade paternalista. Ou seja, o comportamento desenvolto e cínico dos que podem fazer o que querem e aqueles que precisam o tempo todo regular o seu comportamento externo pela benevolência do que está numa posição superior.
Na leitura do contos -escreveu 200 e tantas histórias, foi um contista muito fecundo- verifica-se que o realismo de Machado não ignora a tipicidade. Naqueles que chamei de contos-retrato, as personagens são exatamente aquilo que se espera delas na sociedade. Daí a importância dada à idéia de máscara. Ela vem a ser o modo social pelo qual o indivíduo interage em um mundo de assimetria. Nesse mundo as pessoas estão sempre presas a uma rede de dependências que exige uma certa modelagem de comportamentos. Há uma espécie de censura moral que vem de longe, devido à qual a sinceridade total é impossível. Ora, a vida subjetiva de cada um de nós não está previamente modelada. Ela tem que se ajustar, se adaptar, parecer. Caso contrário, sobretudo a dos fracos, corre o risco de perecer. Como dizia La Rochefoucauld, um dos moralistas franceses, "as pessoas fracas não podem ser sinceras". É uma observação terrível, mas absolutamente verdadeira.
Isso criou em Machado uma "tolerância" em relação aos comportamentos mascarados. Não é possível furar a barreira de classe e ascender sem de alguma maneira ajustar-se aos padrões da classe visada. Lucia Miguel Pereira, a quem dediquei esse segundo ensaio -"A Máscara e a Fenda"-, estudou muito bem a questão. Dentro dos parâmetros da crítica biográfica, ela viu com uma acuidade que julgo modelar como, na história de vida de Machado, houve essa passagem: primeiro ele viu o mundo de baixo para cima, depois, de cima para baixo. É quando ele escreve nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas" a famosa passagem: "Agora sei como são as pessoas que estão por cima".
Além dos retratos, os contos reproduzem situações em que a máscara é usada quando necessária. Mas a máscara não é algo externo, vai se formando como verdadeiro alter ego da pessoa, até um ponto em que não sabemos qual é a máscara, qual é o rosto. Essa fusão é muito perturbadora em Machado. O que inicialmente parecia ser um comportamento social fabricado para a defesa do indivíduo acaba por naturalizar-se. Esse é um Leitmotiv do meu livro, as duas naturezas que se fundem: o natural e o social.
Ainda em relação a esse estudo, eu vi que era possível avançar mais. Machado sempre criou teorias bizarras do comportamento humano, foi um grande leitor dos contos filosóficos do século 18 -Voltaire, Sterne, Diderot, Montesquieu, sobretudo as "Cartas Persas". Buscava construir situações como se fossem próprias de mundos estranhos, caso da "Sereníssima República" (uma república de aranhas) ou do "Segredo do Bonzo" (passado no Oriente remoto). Criava essas ficções literárias para, no fundo, revelar que o mais distante -a república de aranhas ou os impérios orientais- é a própria decifração da nossa realidade cotidiana. Isso mostra o quanto seu olhar conseguia distanciar-se e construir novas formas de linguagem. Todas essas formas de estranhamento possuem uma finalidade alegórica e fabuladora. Essa é uma conquista do realismo de Machado: um olhar que se afasta para ver melhor.
Esses dois ensaios, "Uma Figura Machadiana" e "A Máscara e a Fenda", estão no centro do livro. Eles correspondem a inquietações minhas de 20 anos atrás. De algum modo, ilustram um desejo que foi se tornando cada vez mais agudo: caracterizar o olhar machadiano.
José Miguel Wisnik - O livro nuança os traços por meio dos quais se reconhecem as personagens machadianas, dando a ver a dimensão escapadiça da "pessoa única" que desponta enigmaticamente, apesar do olhar implacável do narrador (de uma corrosão supostamente universal) e do olhar redutor da crítica tipicizante. Nesse contexto, do qual a nossa visão do olhar machadiano sai consideravelmente ampliada, historicizada e matizada, em que medida é possível sustentar a dicotomia entre "máscara" (metáfora dos expedientes da dissimulação, da impostura e do distanciamento) e "face verdadeira"? Há uma verdade por trás da máscara? Qual seria o destino da "alma interior" (para usar a expressão do conto "O Espelho"), quando a "alma exterior" se estabelece a ponto de só ter como contrapartida o vazio?
Bosi -
A expressão "a máscara e a fenda" foi concebida em função desse narrador complexo, entre terrorista e diplomata, que é o Conselheiro Aires. É um narrador que, à primeira vista, descreve lisamente um dado comportamento. Mas essa simplicidade é aparente, porque, a rigor, construída.
Chamo de "máscara" esse primeiro momento, no qual se diz algo que, em um segundo momento, vai ser relativizado, suspenso, posto em dúvida.

Lili Martins/Folha Imagem
O crítico literário Alfredo Bosi, que está lançando "Machado de Assis - O Enigma do Olhar", reunião de seis ensaios sobre o autor



Quando se aprofunda o fenômeno local e se desce até as raízes morais, toca-se em um subsolo humano universal; se assim não fosse, como Machado poderia ser lido por culturas diferentes?


O procedimento inicial despista o que a frase seguinte ou o contexto vão desocultar. A máscara é a face pública da isenção, é a convenção necessária. A fenda é o corte por onde a luz sai do fundo do olho, descobrindo, por um relance, o que tinha sido encoberto. Mas não é minha intenção estender o olhar do Conselheiro a toda a obra de Machado: seria generalizar. Além disso, o enigma se adensa quando o narrador apenas insinua ao leitor que o gesto do personagem pode ser insincero, mas detém-se na suspeita: caso de Capitu e Bentinho. Então a fenda antes se entrefecha do que se entreabre, e começa o trabalho do intérprete.
Se desloco o termo "máscara" do narrador para a personagem (assim entendo a pergunta), devo retomar a análise diferencial que tentei fazer no ensaio. Além dos tipos, em que a "alma interior" foi, às vezes prazerosamente, absorvida pela "alma exterior", há personagens que resistem estoicamente, no seu íntimo, à máquina social; ou ao menos tem consciência da força que esta exerce, como acontece com o narrador de "O Espelho". O olhar autoconsciente rememora tudo quanto estava dentro ou "por trás" da sua fôrma pública. Essa autoconsciência, que permite afinal que alguém conte e analise a própria vida e as próprias transformações, é desengano e negatividade, mas não é o puro vazio.
"O Espelho" talvez seja a meditação mais profunda que Machado fez sobre a imposição que a sociedade opera sobre o ser humano. Vejo a minha primeira leitura desse conto como uma meia verdade. De fato, a fôrma social se impôs: o alferes engoliu o homem. A tipicidade cava fundo: somos apenas nosso papel social. Sem o espelho social a pessoa não existe. Mas como alguém pôde contar sua transformação? Caso a fôrma social fosse imposta sem resíduo, não sobraria a consciência.
Em "O Enigma do Olhar" acrescento um deslocamento importante: quem narra tem consciência de sua transformação. A vitória da fôrma social não é de toda absoluta, já que não impede o recontar da consciência. Esse conto é uma negação da literatura como reflexo, aponta para uma teoria literária mais complexa: existe reflexo e existe reflexão. É impossível pensar a literatura moderna sem a dimensão da consciência. O meu desconforto com a leitura anterior é que a consciência estava na sombra. Se é verdade que a literatura é reflexo da sociedade, o avesso também é verdadeiro, a literatura é reflexão. Oxalá meu trabalho ajude a compreender essa dialética negativa.
Folha - Em que medida o olhar realista de Machado se diferenciava do de seus contemporâneos?
Bosi -
Certamente ele não partilhava da ideologia do naturalismo brasileiro ou até mesmo do naturalismo ocidental da época, cujo pensamento era evolucionista e positivista. Essa ideologia, que tinha em mente um progresso linear, pelo qual a consciência humana também evolui, estava presente em Silvio Romero, na geração de 70 e nos seus amigos liberais, José Veríssimo e Rui Barbosa. Machado estava inteiramente rodeado de intelectuais progressistas. A ideologia da cultura do seu tempo tinha uma visão progressiva e progressista da história.
Dentro desse quadro Machado era um marginal. A cultura dominante acreditava que o tempo era uma medida cumulativa, ao passo que, para ele, as coisas parecem opostas. Há uma entropia, cada momento histórico acrescenta mais infidelidade aos ideais da humanidade. Para Machado "o tempo é cúmplice de atentados".
Folha - Logo na abertura de "O Enigma do Olhar" o sr. se questiona sobre a necessidade de escrever novamente a respeito do significado da ficção machadiana para, logo em seguida, afirmar que "lidos os melhores estudos sobre Machado, advirto ainda, em face do problema central da perspectiva, um resíduo de insatisfação cognitiva e desconforto moral".
Bosi -
Penso que esse "quadro" que cobre a vida do Rio dos meados ao fim do século 19, marcado por relações assimétricas, tão bem estudado por Roberto Schwarz e Maria Sylvia de Carvalho Franco -e que considero uma conquista a ser incorporada ao nosso pensamento histórico-, ainda não resolvia a relação entre o "quadro" e a "perspectiva" de Machado. A minha hipótese é a de que Machado não fica só na descrição da assimetria, mas a julga à luz de um pensamento antievolucionista e profundamente pessimista.
Para isso foi necessário fazer uma arqueologia do moralismo. O que justifica a espécie de antologia que proponho no final do volume: do "Eclesiastes", passando por Maquiavel, atravessa os grandes moralistas e chega até Schopenhauer, filósofo contemporâneo de Machado e que universaliza o pessimismo. Por que acho importante essa universalização? Porque a tendência dos estudos sociológicos, "stricto sensu", deriva dos embates ideológicos contemporâneos: para tal sociedade, tal ponto de vista.
Folha - Na leitura que vem desde Helen Caldwell, "The Brazilian Othello of Machado de Assis" (1960), passa por John Gledson e chega até a reviravolta interpretativa de "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro" (1997), de Roberto Schwarz, assistimos a um progressivo desmascaramento de Bentinho e a um elogio da modernidade esclarecida de Capitu. Como o senhor vê essa questão?
Bosi -
Não consigo ver modernidade em Capitu. Tudo o que ela fez visava alcançar o status de esposa de Bentinho. Não vejo no romance um só exemplo de que Capitu pretendia transcender a situação de mulher casada com um homem rico. Quando Bentinho a acusa de traição, ela simplesmente nega, nem sequer esboça a intenção de viver como uma pessoa independente. Ela viaja para a Suíça e aceita viver esse quase exílio. No final, tudo se acomoda numa espécie de separação honrosa. Ela não perde nem socialmente nem economicamente. Se fizermos uma análise materialista clássica, ela não perde nada. Por que ver modernidade em Capitu? Só vejo a antiga astúcia feminina -dotada de grande senso prático e capacidade de realizar seus desejos-, uma constante desde o teatro grego.
É preciso ter cuidado com certas generalizações. Quando Capitu chama Dona Glória de "beata, carola e papa-missas", não devemos tomar essa crítica como afirmação de uma ideologia moderna. A cena está circunscrita a uma situação específica, ou seja, o motivo dessa explosão está relacionado a um desejo feminino contrariado. A promessa de Dona Glória representava uma ameaça ao casamento de Capitu. Mas, não deixa de ser curioso que, no dia em que Bentinho lança a acusação de traição, Capitu esteja se preparando para ir à missa. Por que, tendo àquela altura alcançado seu objetivo, ela continuava frequentando a igreja? Esses detalhes mostram como é arriscado partir de uma grande síntese ideológica e transformar os personagens em alegoria.
Quanto a Bentinho, seguindo os passos de Silviano Santiago, seria preciso realizar uma história interna do personagem. Há todo um desenvolvimento no romance que trata de uma paixão inequívoca, depois ciúmes e desejo de vingança. É a história de um ciumento que destruiu sua própria vida. Caracterizá-lo somente como proprietário e narrador impostor é transformá-lo numa figura mecânica. Quem sofre o preconceito é moderno e quem demonstra preconceito é tradicional? Desse ângulo, a tipificação de Bentinho está forçada e enfraquece a leitura do romance, cuja história envolve duas pessoas complexas.
Alcides Villaça - Mestre na análise de situações, Machado parece relativizar os valores, dando a impressão de que deixa tudo como está, mas, pelo menos no plano da consciência, é certo que nada fica como estava depois que o lemos. Esse efeito revolucionário costuma decorrer de experiências muito radicais. Como é que a relativização dos valores, que em princípio implica atenuamento das contradições, pode nos perturbar de modo tão radical?
Bosi -
Essa é uma questão fundamental e que tem muito a ver com a perplexidade que inquieta o leitor de Machado. Sempre que o narrador atenua a gravidade de uma conduta (hipócrita, cínica ou simplesmente dúbia), o veneno da insinuação já foi instilado no leitor, que sofre o desconforto de uma suspeita jamais de todo apagada. O Conselheiro Aires é mestre nesse jogo de descobrir e encobrir. Como o julgamento ético fica suspenso, há sempre a possibilidade de uma relativização dos próprios valores em causa (como a dignidade e a sinceridade), o que não deixa de ser perturbador. É o lado terrorista que se esconde, mas não inteiramente, por trás da compostura e da amenidade lúdica do tom.
Folha - Como interpretar as atitudes excepcionais de dignidade e isenção de algumas personagens femininas de Machado? Por um ângulo específico da sociedade brasileira ou de um ponto de vista de projeção de modelos ideais de nobreza já democratizados ao longo do século 19?
Bosi -
A rigor, não vejo oposição drástica entre as duas leituras: a do quadro e a da perspectiva. Sem dúvida, o contexto assimétrico do patriarcalismo fluminense, que Machado conheceu de perto, foi o estímulo imediato para a criação dessas personagens, que, embora imersas no clima do favor, rejeitam com pudor as formas batidas da lisonja e da hipocrisia e vivem interiormente a sua penosa dignidade.
Mas não basta localizar no tempo do relógio e no espaço geográfico essa fenomenologia psicossocial. É preciso decifrar o ponto de vista de Machado ao transpor esses comportamentos para o regime universalizante que é a sua visão da natureza humana, tal qual a analisou o moralismo clássico, que considerava a nobreza de caráter como uma ocorrência rara, mas, afinal, possível... Quando se aprofunda o fenômeno local e se desce até as raízes morais, toca-se em um subsolo humano universal; se assim não fosse, como Machado, escritor mestiço de um país semicolonial e em uma língua quase ignorada, poderia ser lido por culturas tão diferentes como a francesa, a inglesa ou a americana quase um século depois de sua morte?
Gilberto Pinheiro Passos - Além da força da cultura idealista italiana e do peso da leitura sociológica, não há no intérprete Alfredo Bosi um discreto, porém atuante vínculo com a psicanálise, sobretudo freudiana, não como clave básica de leitura, mas dique para excessos do sociologismo e, ao mesmo tempo, crucial na fruição ampla do texto machadiano?
Bosi -
Sem dúvida, uma leitura de cunho psicanalítico tem muito a dizer sobre alguns processos recorrentes na obra de Machado. Há, na construção das suas personagens, um sem número de "transferts", de pulsões eróticas mal dissimuladas, de mascaramentos do desejo e do interesse, de racionalizações, de desvios da normalidade que beiram a loucura, de impulsos perversos que lembram o "instinto de morte" do último Freud. Em suma, toda uma rede de fenômenos aos quais um crítico de formação psicanalítica daria um tratamento fecundo. Não é o meu caso. Mas, tomando como ponto de referência a tradição analítica dos moralistas dos séculos 17 e 18 que desemboca em Schopenhauer, acabo seguindo um veio de desmistificação das condutas do sujeito dito "normal" e que conflui nessa grande escola da suspeita que é a psicanálise.
Pinheiro Passos - Em 1970, tivemos a "História Concisa da Literatura Brasileira", grande momento de síntese. De lá para cá, Machado parece ser um ponto privilegiado de sua atenção crítica. Seria a produção machadiana o nosso caminho mais denso na relação entre o local e o universal, ultrapassando as fronteiras espaço-temporais para continuar contribuindo não só para experiências formais de nossa literatura, como para certa visão desencantada do ser humano?
Bosi -
De fato, há muito que o olhar machadiano, na sua perturbadora convergência de sarcasmo e concessão, solicita a curiosidade deste leitor intrigado. Comecei minha carreira acadêmica com uma tese sobre a narrativa de Pirandello (1964); reencontrei depois em Machado o tema, tão moderno, do conflito entre vida interior e forma social, expresso com a mesma agudeza, mas com sinal contrário. Em Pirandello, o sujeito sofre porque não quer assumir o papel convencional que a sociedade lhe impõe. Em Machado a aspiração maior do sujeito consiste em alcançar o "status" mais alto e desfrutar dos prazeres e dos prestígios que essa posição lhe propiciaria. O "social" é a fonte da autenticidade que em Pirandello, gênio romântico e anárquico, reside na liberdade e na espontaneidade subjetiva.
Essas considerações situam a obra de Machado em uma dimensão humana e universal, que, evidentemente, não descarta, mas aprofunda ao máximo o sentido que se deve dar às peculiaridades locais. Machado sabia muito bem que situações morais que parecem ser só nossas se universalizam quando se vai até o fundo dos problemas envolvidos. Até o indianismo, que muitos consideravam bandeira só brasileira, foi julgado por Machado "legado universal"!
Folha - Parece que o sr. está projetando uma leitura de Machado à luz de um historicismo ampliado?
Bosi -
À medida que se pesquisam formas de relação entre o texto machadiano e o seu contexto, cresce no intérprete a exigência de aprofundar o significado da dimensão histórica que certamente concorreu para a formação da sua perspectiva.
A extensão dessa historicidade não pode se ater à circunstância do tempo e do espaço, isto é, do quadro que Machado observou na sua escrita ficcional. A história que está dentro do olhar machadiano, a história que operou na sua perspectiva, tem as dimensões amplas e várias da cultura: são aqueles sentimentos e valores, imagens e juízos escolhidos e trabalhados pelo escritor. A sua cultura de eleição não era, como já disse anteriormente, a do progressismo linear nem a do positivismo filosófico nem a do naturalismo dominantes no século 19. Era feita de reflexões desenganadas, algumas do senso comum, esse misto de cinismo e estoicismo que se espalha nas racionalizações de um cotidiano cheio de assimetrias; outras muito provavelmente vindas da tradição moralista analítica dos seiscentos ou do ceticismo galhofeiro dos setecentos. As reações de Machado ao estreito mundo da burguesia patriarcal foram permeadas e estilizadas por essas vertentes de pensamento e gosto filtradas por prosadores da envergadura de Stendhal, Leopardi e Schopenhauer.
Mas o que me chamou a atenção foi o possível alcance metodológico da hipótese: o historicismo que conta no processo de criação das grandes obras é aquele que torna toda a História virtualmente contemporânea da experiência presente, o que é a essência da teoria crociana da História.
Com isso, em vez de enterrar o corpo morto do passado, nós o ressuscitamos graças à "memória que os homens desenterra", na feliz expressão de Camões. E aqui Benjamin, Gramsci, Bloch e Adorno dão-se as mãos para superar, mediante a dialética negativa, o historicismo sociológico abstrato que isola o passado e mura a matéria viva das lembranças entre as quatro paredes das categorias socioeconômicas, ao invés de abrir janelas para que a consciência redescubra as razões mesmas do presente.
Em ensaio que escrevi recentemente procurei desenvolver, em termos de historiografia literária, a proposta de um historicismo aberto, capaz de sondar as formações de um olhar cuja reflexão atravesse e transcenda o reflexo das coisas e dos fatos presenciados pelo autor. Para tanto, revisitei obras inspiradoras, como a "História da Literatura Italiana", de Francesco de Sanctis, a "História da Literatura Ocidental", de Otto Maria Carpeaux, e a "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido. Esse ensaio deverá sair no próximo número da revista "Ciência e Cultura" da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).


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