São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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Geografia mental

JOHN GLEDSON

Acho que há dois momentos-chave no desenvolvimento dos contos de Machado: um deles corresponde à primeira coletânea de real valor, que é "Papéis Avulsos", que ele publicou em 82 na esteira de "Brás Cubas", que é um momento muito brincalhão, muito sarcástico e muito, às vezes, difícil até de entender. Um momento, eu acho, de criatividade máxima, mas o que houve depois é curioso, porque imediatamente depois desse momento de auge, digamos, de inspiração, vem um momento em que ele publica muitos contos nos jornais. Ele publicou 20, mais de 20, nos dois anos seguintes -83 e 84- e esses contos são os contos que muitas pessoas acham os melhores.
Evidentemente, houve um momento em que o conto correspondeu às necessidades dele, o que não é tão verdade, acho que no fim da vida dele, mas, enfim, um dos resultados mais encorajadores dessa tendência a renovar o interesse pelos gêneros ditos menores tem sido um interesse novo da parte de certos historiadores em relação à obra machadiana.
Penso, sobretudo, no esplêndido ensaio do Nicolau Sevcenko, também aqui presente, no "Capital Final", no terceiro volume da "História da Vida Privada no Brasil" (Companhia das Letras), em que ele soube se aproveitar -e utilizar- da perspicácia do próprio Machado, nas crônicas da última década do século passado, para iluminar a geografia mental do Rio de Janeiro daquela época. E num livro recente, também, editado por Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso de Miranda Pereira, a "História Contada" (Ed. Nova Fronteira), que contém quatro ensaios -eles dois historiadores- sobre Machado. Os novos textos, então, em certo sentido, criam ou incentivam novos rumos.
Foi ao ler e reler os contos de alguns textos menores, por exemplo, que me dei conta da envergadura do feminismo machadiano, embora ele também apareça nos romances. O mais difícil é definir esses novos rumos e dizer para onde vamos.
O livro mais desafiador da última década é "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", do Roberto Schwarz, sobre "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Ao propor um modelo que liga literatura e processo social, e isso no grande Machado, e ao mostrar como ele funciona em detalhe no romance, na sua construção, no enredo, no estilo volúvel, voluntarioso e caprichoso do narrador, Roberto propôs um contexto em que eventualmente muitas outras coisas venham a cobrar sentido. O que até certo ponto falta ainda, para usar uma frase do próprio, já que eu estou justamente no processo de traduzir esse livro -"Na Periferia"-, o que falta até certo ponto é trocar isso em miúdos. Não tanto nas "Memórias Póstumas", mas no processo da obra toda.
Por exemplo, na crucial década de 1870 que culminou nesse romance. E não podemos ignorar nenhum aspecto da obra, nem do contexto nacional nem internacional maior nem menor. É o exemplo talvez mais importante de como pesquisa detalhada e pensamento, por assim dizer, mais teórico, podem interagir, como sei que interagiram no meu caso 20 anos atrás.
Se estamos revelando e editando novos textos, isso não devia afetar a visão do autor que se tem na sala de aula, onde muitas vezes tenho a impressão de que Machado é tido como um chato, ou nos livros didáticos. Não podemos separar os nossos esforços de renovação para revelar um Machado mais comprometido, inserido no tempo dele, mais vivo, mais verdadeiro, do desejo de fazer com que ele seja uma presença mais viva também na cultura brasileira.


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