São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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DOIS TEMPOS

por Milton Hatoum

Encontrei-a por acaso na noite de um sábado.
Eu tinha acabado de chegar à cidade, queria fazer surpresa para tio Ranulfo. A casa dele, fechada, imaginei que estivesse viajando, e me hospedei numa pensão perto do porto. Jantei no Sereia do Rio e, enquanto comia, me lembrei da voz ansiosa de tio Ran, antes de suas breves viagens a trabalho. Saí da zona portuária, caminhando devagar até as ruas escuras de um quarteirão antigo. Havia lamparinas e velas nos batentes das janelas abertas, nas estantes e mesas das salas devassadas, na janela daquela casa onde demorei a reconhecer o rosto de uma antiga vizinha e ex-aluna do conservatório. Aiana saiu do casarão e, na calçada, perguntou: "Não te lembras dela, a Tarazibula Steinway?".
Eu tinha uns 14 anos e morava na casa de meu tio. Gostava dele, um solteirão estabanado, que me levava para corricar no paraná do Cambixe. Com ele fui pela primeira vez ao Varandas da Eva e a outros balneários noturnos. Não se zangava quando me via sem farda, gazeteando aulas; mas nas noites de esbórnia no quarto dele, quando me surpreendia de olho na fechadura, tio Ran me expulsava aos gritos. No dia seguinte, dava um tapa no meu ombro, ria sem jeito, ia embora.
Era alto e desengonçado, às vezes se desculpava por ser atrapalhado, não sabendo pôr as coisas dele em ordem nem arrumar a casa. Não sei se gostava da vida de solteirão, acho que não queria ninguém ao lado dele. Na nossa casa era raro sentar à mesa no meio de tanta bagunça. Comíamos no Sereia do Rio, que, além de barato, tinha uma varanda para a baía e a floresta. Quando voltava de suas viagens misteriosas, me trazia presentes embrulhados com desleixo em papel de padaria. Nunca soube por que ele viajava tanto. Numa sexta-feira incerta, dizia de supetão: "Embarco de noitinha, mas daqui a dois dias estamos juntos". Não queria que o acompanhasse ao porto, despedidas solenes dão azar, ele brincava.
Via meu tio segurando uma sacola de lona e pensava que nunca mais ia voltar. Pensava nisso até na presença dele; na verdade, tinha medo de que ele fosse embora para sempre. Quando me via triste e calado, querendo saber o motivo de tanto silêncio, eu mentia: minha cabeça ia queimar de tanta dor, uma dor lá no fundo. Tio Ran não entendia minha recusa de ir ao médico. Então, numa segunda-feira, ele me levou ao conservatório. Ficou observando as janelas fechadas do andar superior. Depois disse: "Entra e fala com a professora. Quem sabe se as aulas de canto não vão curar tua enxaqueca?".
Com a minha voz indecisa, saindo da infância, comecei a aprender canto com Tarazibula S. Boanerges. Na minha cidade, ela era a protagonista do canto e do piano. Eu me impressionava com o rosto dela cheio de pontinhos pretos, ameaçando formar barba. As pernas eram cabeludas como os braços, mas a voz, de inflexão melódica, me fazia esquecer tudo. O sorriso bonachão e uma generosidade extremada participavam dessa magia. Acima de tudo, era professora e, para nós, uma artista. "Aprendi tanta coisa com dona Steinway", disse Aiana, tentando acender uma vela.
Dona Steinway, porque só ela tinha um desses pianos em bom estado. O outro pertencia ao teatro, mas além de desafinado era um ninho de traças e baratas. Partituras e livros de música enchiam a estante da sala; na mesa de centro, uma flauta indígena, que ela soprou uma única vez e murmurou, como se estivesse sozinha: "Nossa dissonância ancestral".
Ensinava dia e noite, talvez sonhasse com sons. Crianças dedilhavam as primeiras notas, anos depois interpretavam um chorinho de Nazareth; algum dia uma ou outra chegaria a tocar uma sonata de Schubert ou de Beethoven. Bach, não. O mais difícil, o quase impossível, o que pede tudo de um artista, o corpo, a alma, ambos concentrados oito ou dez horas por dia ao longo de uma vida, tudo, toda a sua força interior e física, Bach, por exemplo, só ela. E nunca em público, só para nós, quase às escondidas, no fim do dia, quando ela se desculpava pelas notas erradas ou uma saída do andamento, esbarrões que não percebíamos, não podíamos.
Na primeira aula ela sondou minha voz. Tocava uma tecla e me pedia a nota correspondente. Uma outra mais aguda, e eu perdia a voz, a voz abandonava meu corpo. Uma nota mais grave, eu grunhia. Ela não se desapontou e teve paciência: "Não é preciso se esgoelar, canta ao natural, como se estivesses falando". Talvez quisesse descobrir em mim um grande tenor, mas minha voz, meu corpo, claudicava. "O som já está ficando mais puro, mais claro", mentiu. "A potência virá com o tempo." Cantou um "lied" sombrio, não me lembro qual, e me consolou: "Tens que dar tempo ao tempo".
Naquela tarde, percebi: sou incapaz para o canto. Dona Steinway já devia saber que seu aluno não era promessa de nada. Mesmo que fosse para o outro hemisfério: nada. Uma nulidade, voz para conversa, grito ou resmungo, nunca para o canto. Mesmo assim, ela estimulava seu único aluno, o único menino. "Já és um tenorino talentoso", brincava quando ouvia meus agudos alarmantes. As meninas e as pianistas veteranas entediavam-se; muitas frequentavam o conservatório por obrigação ou para matar o tempo. Várias alunas cochichavam nos corredores e, o que era pior, cochichavam quando a professora pedia silêncio, as mãos e os lábios tremendo, enquanto o olhar repreendia as tagarelas.
Numa tarde, a mãe de uma aluna interrompeu bruscamente a aula, querendo saber o desempenho da filha; o sonho dela era ver a filha virtuose dar um recital no teatro Amazonas. Pagou em dobro o preço das aulas, deixou cédulas altas sobre o teclado e foi embora sem esperar o troco. Dona Steinway ficou paralisada, muda. Senti seu hálito quente, vi suas mãos fechadas, o corpo que ofegava e crescia. Ela tirou as cédulas, jogou-as na mesa da flauta. Sentou lentamente na banqueta e as mãos retomaram o chorinho.
No último ano dos meus estudos de canto, já não me inquietava tanto com a ausência de tio Ran. Na manhã de um sábado, quando ele estava viajando, fui assistir aos exercícios de Aiana no conservatório. Na sala não encontrei minha amiga; ouvi passos na escada e, quando a professora surgiu, parecia outra; usava um vestido decotado, brincos e colar; os lábios vermelhos e o cheiro de perfume davam a impressão de que a noite a esperava. Ia me despedir, mas ela me abraçou e beijou como se não me visse havia muito tempo. Disse que tocaria alguns estudos e prelúdios de Chopin. Nos intervalos enxugava o rosto, concentrava-se e interpretava com prazer o que durante a semana martirizava as alunas. Sentado perto dela, admirava os movimentos ágeis e firmes de suas mãos, que tocavam só para mim. Quando terminou, cobriu o teclado com uma tira de feltro e me olhou demoradamente antes de dizer: "Conheci tua mãe, uma das primeiras alunas. Estudou seis anos, gostava dos Prelúdios...". A professora sabia que eu era órfão, mas nunca havia mencionado o nome de minha mãe. Ficamos em silêncio por alguns segundos; ela se levantou, me acompanhou até o portão, fez uma pergunta como se fosse uma despedida: "Aquele teu tio cuida bem de ti?".
Pouco tempo depois, quando pensava em deixar a cidade, fui com tio Ran ao teatro, onde dona Steinway daria um recital. Insisti em chegar cedo, queria achar lugar na primeira fila, colado ao palco. O teatro estaria cheio de gente e eu fazia questão de que a professora notasse minha presença. Quando entramos na sala, havia apenas cinco pessoas. Aiana, sozinha na primeira fila, nos chamou. Tio Ran ia apontando para o nome dos músicos, poetas e dramaturgos europeus: os artistas mais famosos do mundo estavam ali, nos estandartes de gesso em forma de lira, encardidos e empoeirados. Várias lâmpadas dos lustres, queimadas; as frisas, sujas, e a pintura do pano de boca parecia enrugada. Sentado, observei com calma o motivo da pintura: ninfas gordas deitadas em conchas que flutuam no encontro das águas. Dona Steinway demorava, esperando talvez a presença dos convidados. Lentamente a sala foi escurecendo, e só a pintura se destacava, iluminada, solta no espaço. O calor aumentava, tudo parecia parado, eu me estiquei na cadeira e me deixei levar por aquelas conchas com seres mitológicos; pouco a pouco me distanciei daquele lugar. Os dois rios iluminados pareciam jorrar da pintura e inundar a sala silenciosa e sombria, cobrir tudo de água, até o lustre gigantesco e a abóbada do teto, onde a torre parisiense e as alegorias em redor pareciam grandezas do outro mundo.
Um ruído me despertou. Ao meu lado, Aiana resmungava ao ver a sala quase vazia. Quando o pano de boca subiu, o piano preto do conservatório apareceu no centro do palco. Depois ela entrou, aproximou-se da platéia, foi aplaudida com entusiasmo. Da primeira fila eu podia ver o rosto em êxtase da pianista, a alegria incontida, como se fosse uma grande noite...
Depois do recital fomos falar com ela. Não parecia decepcionada. "Esse teatro é grande demais para um recital de Schubert. -Ela piscou para o meu tio. -Hoje em dia, uma platéia de 20 pessoas é uma multidão. O teu sobrinho vai continuar a aprender canto?"
Ainda voltei algumas vezes ao conservatório e, uns meses depois do recital, parti.
Longe dali, cada vez mais longe, ao ouvir uma sonata de Schubert, um chorinho de Nazareth ou as Bachianas Brasileiras, eu me lembrava dela. De seus dedos longos, de seu rosto suado, tenso ou radiante, todo o corpo atento, tocando para a pequena platéia. Dona Steinway não buscava a notoriedade. Ensinava. E sabia escutar.
Pensava nisso quando Aiana, vela na mão, me puxou pelo braço e me conduziu à escada de ferro. Sem saber por que, hesitei em entrar. Pude ver uma parte da sala espaçosa, aclarada por lamparinas, cheia de gente bem vestida. Um cheiro esquisito, perfume e flores, se misturava ao bafo quente da noite. Uma faixa de tecido verde, com palavras douradas, de luto, cobria livros e partituras; perto da parede, ex-alunas cochichavam, mães e filhas, juntas.
Quando entrei, vi um homem velho e triste, curvado sobre o rosto da mulher deitada, quieta, as mãos cruzadas. Levei um susto, tentei pronunciar o nome dele, mas emudeci. Tio Ran parecia outro, tão diferente, parado ali de pé, as mãos enfiadas no cabelo da professora.
Quase não vi seu rosto, escondido por outro, o do meu tio. Mas vi, observei, senti suas mãos que tanto dedilharam o teclado, agora silencioso, agora fechado sabe-se lá até quando.

Milton Hatoum é escritor, autor dos romances "Dois Irmãos" e "Relato de um Certo Oriente" (Cia. das Letras).


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