São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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+ 3 questões Sobre câmeras ocultas

1. As câmeras ocultas não violariam o direito do cidadão à privacidade?
2. Não há o risco de essa prática se estender a todos os locais?
3. Essa tecnologia não poderia também ser usada pelo crime organizado?

Evandro Lins e Silva responde

1.
Há, por enquanto, um projeto da Secretaria de Segurança Pública do Rio que pretende instalar câmeras ocultas nos morros da cidade. Mas a autoridade só poderá executar após a necessária licença ou autorização judicial, pois a medida, à primeira vista, atenta contra o artigo 5º, inciso décimo, da Constituição, que considera "invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Além disso, o Código Penal, no artigo 151, parágrafo 1º, inciso quarto, pune com a pena de um a seis meses de detenção, ou multa, "quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal".
É farta a legislação que defende a sociedade dos abusos eventualmente cometidos na utilização dos aparelhos radioelétricos, tal como o faz a lei nº 4.117, de 4 de agosto de 1962 (Imprensa e Comunicação), cujo artigo 58 manda punir "os crimes de violação de telecomunicações" nela previstos e no referido artigo 151 do Código Penal, estabelecendo pena mais severa, de "um a dois anos de detenção ou perda do cargo ou emprego, apurada a responsabilidade em processo regular, iniciado com o afastamento imediato do acusado até decisão final". E essa lei é mais rigorosa quando o agente do crime for "autoridade responsável por violação de telecomunicação", que terá "as penas previstas na legislação em vigor aplicadas em dobro".
Não é provável que a secretaria referida obtenha assentimento para a sua pretensão. Se o fizer clandestinamente, como se pode inferir da ocultação das câmeras radioelétricas, arrisca-se a infringir as normas penais citadas e a sofrer as sanções nelas previstas.

2.
Estamos no terreno das hipóteses, mas é claro que tal prática poderia estender-se a outros locais. Quem faz um cesto pode fazer um cento, como diz a sabedoria popular.

3.
Quanto ao uso dessa tecnologia também pelo crime organizado, o autor ou autores estarão sujeitos às mesmas penas já apontadas anteriormente. Finalmente, para amenizar estas observações sobre textos legais, lembrei-me de um livro magnífico de George Orwell, "1984", em que o "Grande Irmão", ditador de um país imaginário, de tal maneira quis dominar o seu povo que inventou os métodos mais extravagantes para subjugar e impor a todos os seus "irmãos" menores uma obediência servil ao seu comando autoritário.
A idéia agora adotou meios tecnológicos atuais e quer aperfeiçoar a repressão com a invasão da privacidade dos infelizes moradores dos morros. Espero que a hipótese não passe de um mau pensamento, até porque para o método aventado já há legislação que o proíbe.

Fernando Gabeira responde 1.
Uma decisão desse tipo, no meu entender, deveria ser precedida de uma grande discussão pública sobre a mudança de paradigma no sistema de policiamento. É necessário saber o que se pensa sobre esse tipo de vigilância eletrônica, se a população o aceita e, sobretudo, quais os limites que deveriam ser fixados em caso de aceitação. Acho que o Estado não tem condições de definir isso sozinho, pois é matéria constitucional, portanto de competência do Congresso.
De minha parte, aceitaria uma vigilância eletrônica sobre lugares públicos, tais como túneis e aeroportos, onde é preciso reforçar a segurança de forma eficaz. No entanto, ao determinarmos que as câmeras vão estar nos morros, criamos uma situação nova, pois é a observação do cotidiano da pessoa, na sua casa e no seu quintal.
Se aprovarmos uma decisão dessas, estaremos criando grandes desigualdades em termos de direito a uma vida privada. Os ricos e a classe média vivem em casas muradas e edifícios protegidos por sua própria vigilância eletrônica, voltada para se defenderem do exterior. Os pobres seriam vasculhados no espaço doméstico interior, para a proteção do mundo exterior. A posição das câmeras será um novo e espetacular sintoma das diferenças sociais no Brasil. Estarão sempre voltadas para os pobres: nas áreas ricas, vasculhando as ruas por onde ainda podem passar; nas pobres, vasculhando o interior de suas casas e quintais, para evitar seus "crimes potenciais".

2.
Como afirmei na pergunta anterior, não há risco de estender a todos os locais. Os ricos e poderosos saberão afirmar sua privacidade; os pobres serão devassados. Aliás, é isso o que acontece hoje no cotidiano da mídia brasileira. Quando um milionário é acusado de algo, os jornalistas se concentram no portão de suas casas e obtêm, no máximo, uma entrevista com o caseiro, por meio do interfone. Quando se trata de pobres, a polícia e as câmeras invadem os barracos sem nenhuma cerimônia. Quando se fala de drogas num programa de TV, há imagens da vida cotidiana no morro, sem nenhuma preocupação de preservar a imagem do transeunte que nada tem a ver com esse comércio.

3.
O fato de criminosos usarem esse sistema é de outra natureza. Os criminosos, por opção, podem transformar qualquer instrumento tecnológico a seu favor -gravadores, telefones celulares, câmeras, fuzis de repetição, lança-bombas e a própria informática. O Estado necessita trilhar outro caminho, uma vez que suas decisões passam por debates políticos morais em busca de um consenso ou mesmo de maiorias que o legitimem.

QUEM SÃO

Evandro Lins e Silva
É advogado criminalista, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e das Relações Exteriores (governo João Goulart). Ocupa a cadeira número um da Academia Brasileira de Letras.

Fernando Gabeira
É deputado federal pelo Partido Verde, jornalista e autor de "O Que É Isso, Companheiro?" (Companhia das Letras) e "Diário da Crise" (Editora Rocco), entre outros livros.



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