São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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História de uma idéia tensa

Duas obras recém-lançadas nos EUA e Brasil rastreiam a gênese, os mal-entendidos e a apropriação ideológica do conceito de América Latina

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das coisas que me surpreenderam na primeira visita que fiz ao Brasil, nos anos 1980, foi ouvir as pessoas falando da "América Latina". No Reino Unido, considera-se normalmente que o Brasil faz parte da América Latina. Mas as pessoas com as quais eu conversava ou que eu ouvia pareciam dar como certo que a América Latina era outro lugar. De maneira semelhante, os britânicos costumam falar da "Europa", e os sicilianos, da "Itália", como se os termos não os incluíssem.
Esse mal-entendido potencial é apenas um dos problemas levantados pelo termo "América Latina". Gilberto Freyre (1900-87), em 1963, dedicou um ensaio a esse tema: "Americanidade e Latinidade da América Latina" [publicado pela Imprensa Oficial de SP].
Um estudioso uruguaio, Arturo Ardao (1912-2003), discutiu os problemas em sua "Génesis de la Idea y el Nombre de América Latina" (1980).
Dois livros recentes voltam a debruçar-se sobre o tema, que ganhou atualidade adicional no momento da disputa pela liderança do continente travada entre [os presidentes] Luiz Inácio Lula da Silva, Hugo Chávez e outros. Como parece acontecer com freqüência cada vez maior no mundo de hoje, dois estudiosos tiveram a mesma idéia ao mesmo tempo ou, pelo menos, lançaram seus livros ao mesmo tempo, argumentando que o conceito de "América Latina" não é tão neutro quanto pode parecer, mas carrega associações e implicações políticas.

Duas abordagens
Felizmente para os potenciais leitores, os dois livros são muito diferentes, assim como seus autores, e, em lugar de competir um com o outro, se complementam.
João Feres Júnior, autor de "A História do Conceito de "Latin America" nos Estados Unidos" (Edusc/Anpocs, 320 págs., R$ 38,50), leciona no Rio de Janeiro. Walter Mignolo, que escreveu "The Idea of Latin America" (Blackwell, 224 págs., US$ 24,95, R$ 57), é um argentino que vive nos EUA e leciona na Universidade Duke.
Feres é cientista político, e seu estudo cuidadosamente documentado é uma versão revista de sua tese de doutorado.
Mignolo, que optou por escrever um ensaio polêmico e de largo alcance, faz parte de um grupo de acadêmicos contemporâneos que, aos poucos, foram passando da crítica literária para a crítica cultural -Edward Said (1935-2003; autor de "Representações do Intelectual", Cia. das Letras) é um nome que nos vem à mente imediatamente nesse contexto.
Em seus livros anteriores, Mignolo escreveu sobre o colonialismo e o que ele chamou de "conhecimentos subalternos" e "pensamento de fronteira" ("border thinking").

Raça latina
Os dois estudiosos fazem relatos semelhantes da história inicial do conceito de "América Latina" e de suas implicações políticas. Ambos destacam a importância do poeta e diplomata colombiano José Maria Torres Caicedo, que traçou um contraste entre as Américas "Latina" e "Anglo-saxônica" em seu poema "Las Dos Americas" (1856) e fundou associações de intelectuais para aproximar os países latino-americanos. Nas palavras de Mignolo, a América Latina foi e é não um lugar, uma entidade preexistente, mas um projeto político.
Esse projeto foi erguido com base na idéia anterior da "raça latina", aventada primeiramente pelo francês Michel Chevalier (1806-1879), em 1839, enfatizando o que os povos que falam francês, espanhol, português e italiano têm em comum e o que os diferencia dos outros.
As elites locais da América espanhola gostaram do conceito da "América Latina" porque justificava a admiração que sentiam pela cultura francesa, e o governo francês, como deixaria claro sua intervenção no México nos anos 1860, estava interessado em aumentar sua influência política no mundo hispanófono.
Mas a preocupação principal dos dois autores é com a história recente do conceito. Feres está interessado particularmente em apresentar dois argumentos, um que diz respeito às instituições e outro, às idéias. Para começar, ele sugere que a disciplina dos estudos latino-americanos, como outros "estudos de área" nos EUA, foi financiada pelo governo para dar apoio à guerra contra o comunismo, após 1945.
Num primeiro momento, o dinheiro foi canalizado sobretudo para estudos asiáticos, mas, após a revolução cubana, foi vertido também aos estudos latino-americanos, financiando cursos universitários, periódicos especializados e assim por diante.
O segundo argumento diz respeito à imagem da América Latina, de modo que remete a "Orientalismo", de Edward Said (Cia. das Letras). Feres traça uma lista dos estereótipos hostis utilizados por acadêmicos norte-americanos, entre eles brasilianistas, para descrever seus vizinhos meridionais, revelando preconceitos contra o tema que optaram por estudar, em lugar da abertura e simpatia que se poderia prever.

Sistema de oposições
A lista de adjetivos condescendentes ou desdenhosos é extensa, incluindo "apaixonados", "impetuosos", "infantis", "atrasados", "indolentes", "exibicionistas", "irracionais", "supersticiosos", "autoritários", "feudais", "militaristas", "desordeiros" e "egocêntricos".
Feres sugere, ainda, que esses termos fazem parte de um sistema de oposições que leva os norte-americanos a enxergarem a si mesmos como racionais, democráticos, trabalhadores, ordeiros e progressistas. Algo semelhante pode ser dito a respeito da idéia dos "hispânicos", termo oficial que foi imposto pelo governo de Richard Nixon, como Mignolo nos faz lembrar.
O ponto forte do estudo de Feres é o minucioso e paciente acúmulo de detalhes. O autor não hesita em citar os nomes de estudiosos individuais a quem acusa de preconceito, desde Thomas Skidmore até Samuel P. Huntington (notório por ter aconselhado o governo dos EUA sobre a Guerra do Vietnã e por suas idéias sobre o "choque de civilizações" entre o Ocidente e o islã), quando falam da "cultura autoritária" da América Latina.
Mesmo Richard Morse, muito conhecido por seu interesse pelo Brasil ("A Volta de McLuhanaíma", Cia. das Letras), é citado no livro porque, em 1964, descreveu a América Latina como "continente sem história", incapaz de mudar ou de progredir. Em suma, a produção de conhecimentos sobre a "América Latina" nos EUA tem, de maneira geral, dado subsídios à visão oficial segundo a qual a região precisa de assistência, orientação e liderança firme.
A tentativa francesa de hegemonia na região, no século 19, deu lugar a uma tentativa norte-americana.
Contrastando com essa monografia, o livro de Mignolo é o que os acadêmicos ingleses às vezes descrevem como "think piece" ou texto que provoca reflexão: uma série de ensaios ou palestras provocados pelos acontecimentos recentes e às vezes também apresentando comentários sobre eles -como no caso da referência feita a Lula e a "suas conversas sobre a criação de um bloco econômico G3", que incluísse a Índia e a África do Sul.
O autor não hesita em fazer generalizações amplas, algumas delas difíceis de levar a sério (em dado momento ele compara "Borderlands/ La Frontera", da escritora feminista chicana Gloria Anzaldúa (1942-2004), ao "Discurso do Método", de Descartes).
O ponto forte do ensaio está em sua perspectiva global e sua preocupação com o que o autor descreve como a "geopolítica do conhecimento" estudada no longo prazo.
Por exemplo, Mignolo situa os movimentos atuais de protesto contra a hegemonia "ocidental", como o dos zapatistas no México (e ele certamente acrescentaria Evo Morales à lista), dentro de uma tradição mais longa que abrange o escritor peruano do século 17 Guamán Poma de Ayala.

Duas invenções
Tanto Feres quanto Mignolo discutem as idéias de Huntington, mas Mignolo também analisa Aristóteles e Cortés. Ele situa suas observações sobre os latinos e a latinidade num contexto mais amplo, que inclui os anglos, os afro-americanos e os povos indígenas e compara a "invenção" da América Latina à "invenção da África" pelos colonizadores europeus.
Apesar de diferentes em estilo e abordagem, os dois livros devem incentivar os leitores a tomar mais cuidado quando utilizam o termo "América Latina", por mais difícil que ainda seja deixar de fazê-lo. Imagino que Mignolo será traduzido para o espanhol e o português em pouco tempo, mas que Feres terá que esperar muito para ser traduzido para o inglês, se é que isso chegará a acontecer.
Se minha previsão for correta, a recepção dada aos dois livros vai ilustrar a força da hegemonia que ambos os autores criticam. Ao mesmo tempo, porém, espero que minha previsão seja desmentida.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/ xx/11/ 3170-4033) ou no site www.amazon.com


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