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História de uma idéia tensa
Duas obras
recém-lançadas nos EUA e Brasil rastreiam
a gênese,
os mal-entendidos
e a apropriação
ideológica
do conceito
de América Latina
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Uma das coisas que
me surpreenderam
na primeira visita
que fiz ao Brasil,
nos anos 1980, foi
ouvir as pessoas falando da
"América Latina". No Reino
Unido, considera-se normalmente que o Brasil faz parte da
América Latina. Mas as pessoas com as quais eu conversava ou que eu ouvia pareciam
dar como certo que a América
Latina era outro lugar. De maneira semelhante, os britânicos
costumam falar da "Europa", e
os sicilianos, da "Itália", como
se os termos não os incluíssem.
Esse mal-entendido potencial é apenas um dos problemas
levantados pelo termo "América Latina". Gilberto Freyre
(1900-87), em 1963, dedicou
um ensaio a esse tema: "Americanidade e Latinidade da América Latina" [publicado pela Imprensa Oficial de SP].
Um estudioso uruguaio, Arturo Ardao (1912-2003), discutiu os problemas em sua "Génesis de la Idea y el Nombre de
América Latina" (1980).
Dois livros recentes voltam a
debruçar-se sobre o tema, que
ganhou atualidade adicional no
momento da disputa pela liderança do continente travada
entre [os presidentes] Luiz
Inácio Lula da Silva, Hugo Chávez e outros.
Como parece acontecer com
freqüência cada vez maior no
mundo de hoje, dois estudiosos
tiveram a mesma idéia ao mesmo tempo ou, pelo menos, lançaram seus livros ao mesmo tempo, argumentando que o
conceito de "América Latina"
não é tão neutro quanto pode
parecer, mas carrega associações e implicações políticas.
Duas abordagens
Felizmente para os potenciais leitores, os dois livros são
muito diferentes, assim como
seus autores, e, em lugar de
competir um com o outro, se
complementam.
João Feres Júnior, autor de
"A História do Conceito de "Latin America" nos Estados Unidos" (Edusc/Anpocs, 320 págs.,
R$ 38,50), leciona no Rio de Janeiro. Walter Mignolo, que escreveu "The Idea of Latin America" (Blackwell, 224 págs., US$
24,95, R$ 57), é um argentino
que vive nos EUA e leciona na
Universidade Duke.
Feres é cientista político, e
seu estudo cuidadosamente
documentado é uma versão revista de sua tese de doutorado.
Mignolo, que optou por escrever um ensaio polêmico e de
largo alcance, faz parte de um
grupo de acadêmicos contemporâneos que, aos poucos, foram passando da crítica literária para a crítica cultural -Edward Said (1935-2003; autor de
"Representações do Intelectual", Cia. das Letras) é um nome que nos vem à mente imediatamente nesse contexto.
Em seus livros anteriores,
Mignolo escreveu sobre o colonialismo e o que ele chamou de
"conhecimentos subalternos" e
"pensamento de fronteira"
("border thinking").
Raça latina
Os dois estudiosos fazem relatos semelhantes da história
inicial do conceito de "América
Latina" e de suas implicações
políticas. Ambos destacam a
importância do poeta e diplomata colombiano José Maria
Torres Caicedo, que traçou um
contraste entre as Américas
"Latina" e "Anglo-saxônica"
em seu poema "Las Dos Americas" (1856) e fundou associações de intelectuais para aproximar os países latino-americanos. Nas palavras de Mignolo, a
América Latina foi e é não um
lugar, uma entidade preexistente, mas um projeto político.
Esse projeto foi erguido com
base na idéia anterior da "raça
latina", aventada primeiramente pelo francês Michel
Chevalier (1806-1879), em
1839, enfatizando o que os povos que falam francês, espanhol, português e italiano têm
em comum e o que os diferencia dos outros.
As elites locais da América
espanhola gostaram do conceito da "América Latina" porque
justificava a admiração que
sentiam pela cultura francesa, e
o governo francês, como deixaria claro sua intervenção no
México nos anos 1860, estava
interessado em aumentar sua
influência política no mundo
hispanófono.
Mas a preocupação principal
dos dois autores é com a história recente do conceito. Feres
está interessado particularmente em apresentar dois argumentos, um que diz respeito
às instituições e outro, às
idéias. Para começar, ele sugere
que a disciplina dos estudos latino-americanos, como outros
"estudos de área" nos EUA, foi
financiada pelo governo para
dar apoio à guerra contra o comunismo, após 1945.
Num primeiro momento, o
dinheiro foi canalizado sobretudo para estudos asiáticos,
mas, após a revolução cubana,
foi vertido também aos estudos
latino-americanos, financiando cursos universitários, periódicos especializados e assim
por diante.
O segundo argumento diz
respeito à imagem da América
Latina, de modo que remete a
"Orientalismo", de Edward
Said (Cia. das Letras). Feres
traça uma lista dos estereótipos
hostis utilizados por acadêmicos norte-americanos, entre
eles brasilianistas, para descrever seus vizinhos meridionais,
revelando preconceitos contra
o tema que optaram por estudar, em lugar da abertura e simpatia que se poderia prever.
Sistema de oposições
A lista de adjetivos condescendentes ou desdenhosos é
extensa, incluindo "apaixonados", "impetuosos", "infantis",
"atrasados", "indolentes", "exibicionistas", "irracionais", "supersticiosos", "autoritários",
"feudais", "militaristas", "desordeiros" e "egocêntricos".
Feres sugere, ainda, que esses termos fazem parte de um
sistema de oposições que leva
os norte-americanos a enxergarem a si mesmos como racionais, democráticos, trabalhadores, ordeiros e progressistas.
Algo semelhante pode ser dito a
respeito da idéia dos "hispânicos", termo oficial que foi imposto pelo governo de Richard
Nixon, como Mignolo nos faz
lembrar.
O ponto forte do estudo de
Feres é o minucioso e paciente
acúmulo de detalhes. O autor
não hesita em citar os nomes de
estudiosos individuais a quem
acusa de preconceito, desde
Thomas Skidmore até Samuel
P. Huntington (notório por ter
aconselhado o governo dos
EUA sobre a Guerra do Vietnã e
por suas idéias sobre o "choque
de civilizações" entre o Ocidente e o islã), quando falam da
"cultura autoritária" da América Latina.
Mesmo Richard Morse, muito conhecido por seu interesse
pelo Brasil ("A Volta de McLuhanaíma", Cia. das Letras), é citado no livro porque, em 1964,
descreveu a América Latina como "continente sem história",
incapaz de mudar ou de progredir. Em suma, a produção de
conhecimentos sobre a "América Latina" nos EUA tem, de
maneira geral, dado subsídios à
visão oficial segundo a qual a
região precisa de assistência,
orientação e liderança firme.
A tentativa francesa de hegemonia na região, no século 19,
deu lugar a uma tentativa norte-americana.
Contrastando com essa monografia, o livro de Mignolo é o
que os acadêmicos ingleses às
vezes descrevem como "think
piece" ou texto que provoca reflexão: uma série de ensaios ou
palestras provocados pelos
acontecimentos recentes e às
vezes também apresentando
comentários sobre eles -como
no caso da referência feita a Lula e a "suas conversas sobre a
criação de um bloco econômico
G3", que incluísse a Índia e a
África do Sul.
O autor não hesita em fazer
generalizações amplas, algumas delas difíceis de levar a sério (em dado momento ele
compara "Borderlands/ La
Frontera", da escritora feminista chicana Gloria Anzaldúa
(1942-2004), ao "Discurso do
Método", de Descartes).
O ponto forte do ensaio está
em sua perspectiva global e sua
preocupação com o que o autor
descreve como a "geopolítica
do conhecimento" estudada no
longo prazo.
Por exemplo, Mignolo situa
os movimentos atuais de protesto contra a hegemonia "ocidental", como o dos zapatistas
no México (e ele certamente
acrescentaria Evo Morales à
lista), dentro de uma tradição
mais longa que abrange o escritor peruano do século 17 Guamán Poma de Ayala.
Duas invenções
Tanto Feres quanto Mignolo
discutem as idéias de Huntington, mas Mignolo também analisa Aristóteles e Cortés. Ele situa suas observações sobre os
latinos e a latinidade num contexto mais amplo, que inclui os
anglos, os afro-americanos e os
povos indígenas e compara a
"invenção" da América Latina à
"invenção da África" pelos colonizadores europeus.
Apesar de diferentes em estilo e abordagem, os dois livros
devem incentivar os leitores a
tomar mais cuidado quando
utilizam o termo "América Latina", por mais difícil que ainda
seja deixar de fazê-lo. Imagino
que Mignolo será traduzido para o espanhol e o português em
pouco tempo, mas que Feres
terá que esperar muito para ser
traduzido para o inglês, se é que
isso chegará a acontecer.
Se minha previsão for correta, a recepção dada aos dois livros vai ilustrar a força da hegemonia que ambos os autores
criticam. Ao mesmo tempo, porém, espero que minha previsão seja desmentida.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.
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