São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Ponto de Fuga


Tradutor, revisor, editor só conheciam o prato chique -carpaccio; então, corrigiram, transformando a Scuola em restaurante, San Giorgio em localidade, e serviram o pintor em fatias

O lugar dos mestres

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Dario Argento e Lucio Fulci foram subestimados ou, melhor, ignorados, nos anos 70. Fazendo filmes de mistério ou de horror, série B, não tinham as honras que muitos críticos consagravam ao cinema "elevado" de Visconti, Antonioni ou Fellini.
Hoje as coisas mudaram. Fulci e Argento ainda possuem um círculo restrito de admiradores, mas já bem maior do que antes. São levados a sério em estudos e análises.
Festivais de cinema promovem retrospectivas de suas obras e, mais do que tudo, têm aparecido DVDs em edições restauradas, esplêndidas.
Saíram dois recentemente na França. Um é "Você Gosta de Hitchcock?", de Dario Argento, feito para a televisão italiana em 2005 (Studio Canal).
É um Argento light, cruzando "Janela Indiscreta", "Pacto Sinistro", "Disque M para Matar" e "Psicose" com tanta naturalidade que nada parece forçado. As referências e citações homenageiam, mas servem para mostrar menos semelhanças que diferenças.
Argento, com seu amor pelas arquiteturas rebuscadas da "belle époque", parece um proustiano da violência. "Você Gosta de Hitchcock?" põe em cena um "nerd" doido por cinema. Ele começa sua carreira de "voyeur" em criança, quando espreita duas mulheres, em casa isolada, que se entregam a um ritual blasfemo.
A situação lembra o menino de "No Caminho de Swann" [de Marcel Proust] espiando as duas amigas lésbicas.
O outro DVD é "Sete Notas em Negro", de Lucio Fulci (o título poético do original se transformou na França em "L'Emmurée Vivante", A Emparedada Viva, ed. Neo Publishing). Vem em dois discos, um deles cheio de extras. Ao contrário do anterior, não cita nada, mas tem uma elegância toda hitchcockiana, e não seria difícil assinalar suas afinidades com a obra de Hitchcock. A atriz Jennifer O'Neill é uma das mulheres mais belas que já foram filmadas: tem olhos de vertigem.
Fulci emprega o zoom óptico sem cessar; a câmera rodeia Jennifer O'Neill como se a estivesse acariciando para melhor entrar em sua alma.

Indigestão
O MLU (Movimento dos Leitores Ultrajados) anda bem ativo. Chegou mais um protesto: "Lendo a biografia de Peggy Guggenheim (de Anton Gill, ed. Globo, trad. Maria Silvia Mourão Netto), num trecho sobre uma das viagens que ela fez a Veneza, encontro uma ambígua informação (pág. 187): "Visitou todos os seus locais prediletos, como a igreja dos Frari, San Marco, e os carpaccios do restaurante Schiavoni em San Giorgio, que sempre a haviam deliciado imensamente".".
Há Carpaccio e carpaccio. Com c minúsculo é uma comida feita de carne crua e servida em restaurante chique. O prato, inventado em 1950 pelo cozinheiro do Harry's Bar, em Veneza, foi uma homenagem à grande retrospectiva, apresentada naquele ano, do pintor Carpaccio.
O conjunto mais sutil das obras desse gênio do Renascimento está reunido na Scuola (associação leiga de devoção e caridade) de San Giorgio degli Schiavoni.
Tradutor, revisor, editor ou quem seja o responsável, decerto só conheciam o prato chique. Então, corrigiram, transformando a Scuola em restaurante, San Giorgio em localidade, e serviram o pintor em fatias. Ninguém nem sequer estranhou que a milionária americana fosse "visitar" uma comida.
Vittore Carpaccio era um dos artistas preferidos de Peggy Guggenheim.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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