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Ponto de Fuga
Tradutor, revisor, editor só conheciam o prato chique -carpaccio; então, corrigiram, transformando a Scuola em restaurante, San Giorgio em localidade, e serviram o pintor em fatias
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O lugar dos mestres
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Dario Argento e Lucio
Fulci foram subestimados ou, melhor, ignorados, nos anos 70. Fazendo filmes de mistério ou de horror,
série B, não tinham as honras
que muitos críticos consagravam ao cinema "elevado" de
Visconti, Antonioni ou Fellini.
Hoje as coisas mudaram.
Fulci e Argento ainda possuem
um círculo restrito de admiradores, mas já bem maior do que
antes. São levados a sério em
estudos e análises.
Festivais de cinema promovem retrospectivas de suas
obras e, mais do que tudo, têm
aparecido DVDs em edições
restauradas, esplêndidas.
Saíram dois recentemente
na França. Um é "Você Gosta
de Hitchcock?", de Dario Argento, feito para a televisão italiana em 2005 (Studio Canal).
É um Argento light, cruzando "Janela Indiscreta", "Pacto
Sinistro", "Disque M para Matar" e "Psicose" com tanta naturalidade que nada parece forçado. As referências e citações
homenageiam, mas servem para mostrar menos semelhanças
que diferenças.
Argento, com seu amor pelas
arquiteturas rebuscadas da
"belle époque", parece um
proustiano da violência. "Você
Gosta de Hitchcock?" põe em
cena um "nerd" doido por cinema. Ele começa sua carreira de
"voyeur" em criança, quando
espreita duas mulheres, em casa isolada, que se entregam a
um ritual blasfemo.
A situação lembra o menino
de "No Caminho de Swann" [de
Marcel Proust] espiando as
duas amigas lésbicas.
O outro DVD é "Sete Notas
em Negro", de Lucio Fulci (o título poético do original se
transformou na França em
"L'Emmurée Vivante", A Emparedada Viva, ed. Neo Publishing). Vem em dois discos, um
deles cheio de extras. Ao contrário do anterior, não cita nada, mas tem uma elegância toda hitchcockiana, e não seria
difícil assinalar suas afinidades
com a obra de Hitchcock. A
atriz Jennifer O'Neill é uma
das mulheres mais belas que já
foram filmadas: tem olhos de
vertigem.
Fulci emprega o zoom óptico
sem cessar; a câmera rodeia
Jennifer O'Neill como se a estivesse acariciando para melhor
entrar em sua alma.
Indigestão
O MLU (Movimento dos Leitores Ultrajados) anda bem ativo. Chegou mais um protesto:
"Lendo a biografia de Peggy
Guggenheim (de Anton Gill, ed.
Globo, trad. Maria Silvia Mourão Netto), num trecho sobre
uma das viagens que ela fez a
Veneza, encontro uma ambígua informação (pág. 187): "Visitou todos os seus locais prediletos, como a igreja dos Frari,
San Marco, e os carpaccios do
restaurante Schiavoni em San
Giorgio, que sempre a haviam
deliciado imensamente".".
Há Carpaccio e carpaccio.
Com c minúsculo é uma comida feita de carne crua e servida
em restaurante chique. O prato, inventado em 1950 pelo cozinheiro do Harry's Bar, em Veneza, foi uma homenagem à
grande retrospectiva, apresentada naquele ano, do pintor
Carpaccio.
O conjunto mais sutil das
obras desse gênio do Renascimento está reunido na Scuola
(associação leiga de devoção e
caridade) de San Giorgio degli
Schiavoni.
Tradutor, revisor, editor ou
quem seja o responsável, decerto só conheciam o prato chique.
Então, corrigiram, transformando a Scuola em restaurante, San Giorgio em localidade, e
serviram o pintor em fatias.
Ninguém nem sequer estranhou que a milionária americana fosse "visitar" uma comida.
Vittore Carpaccio era um dos
artistas preferidos de Peggy
Guggenheim.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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