São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PONTO DE FUGA
A vagina e a arte

JORGE COLI
especial para a Folha

Os contemporâneos de Rodin insistiram em seu temperamento libidinoso. Ele deixou pequenas esculturas em que o sexo feminino se escancara e traçou, sobre o papel, fêmeas que seu "olho grande, proeminente e luxurioso", devorava: os adjetivos são de Paul Claudel, admirável poeta, irmão da infeliz Camille. O vigor e a qualidade desses desenhos surgem de um traço a serviço de uma obsessão, cujo impulso inicial parece ser o mesmo dos grafites desajeitados nos banheiros públicos, que inscrevem formas femininas com vaginas desmedidas. Nas obras gráficas selecio nadas para a exposição "Aquarelas e Desenhos Eróticos de Rodin", no Ibirapuera, em SP, muitos modelos se contorcem e se abrem, de frente, de costas, para melhor exporem suas intimidades, sublinhadas com força pelo lápis nervoso ou pela mancha brutal da aquarela em tom sujo. Nos tempos de Rodin, o chamado "nu artístico" via-se atacado em seus álibis culturais por artistas que restauravam a sexualidade antes disfarçada. Rops e Egon Schiele são exemplos evidentes. Eles não possuem, entretanto, o tropismo violento, a brutalidade instintiva de Rodin, que poderia evocar Dubuffet e o "art brut", não fosse a beleza sensual das formas. Desejo com pulsivo, o mais imediato, que busca saciar-se por meio do gesto artístico.

LENTES - Nestes tempos em que filmes derramam-se em longos "travellings" sinuosos e surpreendentes, Alfonso Cuaron desenvolveu, ao contrário, um estilo que parte da montagem, num jogo de contrastes entre recortes aproximados e mais distantes. "Grandes Esperanças" constrói a loucura de Mrs. Dinsmoor fazendo-a evoluir nos aposentos fechados onde vive e mostrando, no detalhe, as misérias que o tempo causou no rosto envelhecido da atriz Anne Bancroft. Integra, sem ruptura, os desenhos e pinturas de Francesco Clemente, imagens imóveis. A trama inventada por Dickens se modifica, mas o espírito inicial permanece. São individualidades solitárias e desgarradas, sem famílias, sem carreiras convencionais, encontrando, no acaso das trajetórias e dos cruzamentos, vínculos estranhos e indissolúveis com outros personagens, numa rede informal e inesperada.

SONHOS - O artista napolitano Francesco Clemente conserva um caráter criador muito além das intenções mercadológicas da "Transvanguardia", movimento criado por Bonito Oliva no início dos anos de 1980 e do qual ele fez parte. É espantoso no campo gráfico. Nunca desenhos tão poéticos inseriram-se num filme como os que concebeu para "Grandes Esperanças".

TELAS - Há uns 15 anos atrás, a chegada dos vídeos domésticos parecia ter enterrado definitivamente o cinema. O retorno de salas bem equipadas e o interesse renovado do público foi uma surpresa feliz neste fim de século. Fica, no entanto, a impressão de que o número das salas em nosso país é ainda insuficiente, ao menos se pensarmos na rapidez com que certos filmes, um pouco confidenciais, permanecem em cartaz. Foi assim que o discreto "Grandes Esperanças", de Alfonso Cuaron, já não está em São Paulo. É possível que seja ainda projetado em outras cidades.


Jorge Coli é historiador da arte E-mail: coli@correionet.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.