São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997.



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LIVROS
A língua dos exilados

MARIA RITA KEHL
especial para a Folha

Uma pianista russa muito pobre, exilada em Paris depois de 1917, observa invejosa e fascinada a vida de sua patroa, rica e famosa, na qual pressente uma paixão adúltera. Um fotógrafo americano de meia idade, isolado no interior da França, onde tenta captar a luz e a paisagem, segue com os olhos da imaginação o romance entre um jovem compatriota seu e uma adolescente francesa. Além do caráter voyeurista dos narradores, nada justificaria combinar numa mesma resenha as novelas "A Acompanhante", escrita pela russa Nina Berberova nos anos 20, e "Um Esporte e um Passatempo", do norte-americano James Salter, escrito em 1967.
Outras coincidências menores, é verdade, colaboram para a associação entre esses dois lançamentos recentes da Imago, ambos magnificamente traduzidos (respectivamente por Leda Tenório da Motta e Sonia Moreira); as duas novelas se passam na França, onde os narradores (e, autobiograficamente, também seus autores) estiveram exilados, de um modo ou de outro. O tema do exílio não é tão casual quanto parece: o observador de uma relação amorosa, ao mesmo tempo incluído e excluído da linguagem tão singular que se cria entre dois amantes, não se sente sempre vivendo numa terra estrangeira? Mais, ainda: o próprio amor, que nos parece o fenômeno mais universal do Ocidente, não nos mantém sempre, a todos, como observadores do lado de fora de suas portas?
O monólogo interior dos exilados produz a escrita dos diários. É por meio do diário deixado pela pianista Sonia Vassilievna depois de sua morte que um segundo narrador nos introduz no calvário de inveja e ciúmes vivido pela moça pobre diante da sorte, da beleza, dos amigos, do dinheiro e dos amores da soprano russa Maria Nikolaevna Travina, de quem sonietchka é empregada como acompanhante. É pela trilha de discretos rastros deixada no diário do jovem Dean que o amigo mais velho reconstitui com precisão fotográfica os encontros entre ele e Anne-Marie, seguindo-os mentalmente pelas estradas do sul da França ao longo das mudanças de estação, por dentro dos restaurantes, dos quartos de hotel, no banheiro, na cama, debaixo dos lençóis, das roupas, da epiderme.
Se a fascinação de Sonietchka por Maria Nikolaevna se transforma na mais maligna inveja -a paixão dos fracos-, a do fotógrafo anônimo da obra de Salter o leva a gozar em imaginação (ou em memória?) junto com o outro, produzindo uma tal identificação que frequentemente nos esquecemos de que não era ele que estava lá.
Ou era? Essa dúvida pode ser levantada por uma certa ambiguidade na estrutura das duas novelas, que deixo a cargo do leitor descobrir. O fotógrafo e Philip Dean são a mesma pessoa? A soprano Maria Nikolaevna não teria sido sua própria acompanhante, nos palcos e na vida, e Sonietchka, um desdobramento infeliz de sua consciência? Para falar a verdade, esse aspecto sherlockeano das duas novelas não me desperta grande interesse. Que o observador seja uma pessoa em carne e osso ou um truque literário, um eu que se auto-observa e vai tecendo a narrativa do que está vivendo -que diferença isso faz?
O amor nunca acontece entre dois -essa é uma das maiores mentiras que costumamos contar a nós mesmos. "Eu & Ele"/"Eu & Ela": esse dueto é impossível. A exclusividade da paixão, a intimidade do sexo, o egoísmo dos amantes, nada é capaz de excluir o terceiro que, ao mesmo tempo, observa e separa os amantes. A linguagem que narra tem a mesma função de um olho que observa de fora, que reconstitui as cenas (pois toda cena erótica é uma repetição da mesma cena ancestral) e produz um certo discurso para dar sentido aos insensatos atos do amor. A linguagem, cuja contrapartida imaginária é o olhar, faz também função de um véu que encobre o obsceno para nossa própria consciência e que nos permite dizer: "Isso é belo".
Pois o amor, afinal, não tem por que ser belo: é fome, ânsia, apropriação e, no limite, destruição do outro. Belo é (pode ser) o discurso que cria e ao mesmo tempo delimita o amor. Belo -pois nós, humanos faladores, costumamos nos enternecer com isso- é o primeiro momento do gozo apaixonado, esse momento em que o sujeito se desdobra e constata para si mesmo: "Eu amo" -e com isso se inscreve como personagem nesta mesma velha história que não cessa nunca de se recontar.


Maria Rita Kehl é psicanalista, poeta e ensaísta; autora, entre outros, de "A Mínima Diferença" (Imago).




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