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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Tradução integral de "O Desaparecido ou Amerika", romance inacabado de Franz Kafka, tematiza o indivíduo solitário em busca do sentido da existência

A IMENSA COLÔNIA PENAL

14.jan.2002 - Reuters/China Photo
Turistas tiram fotos da escultura de gelo "Estátua da Liberdade Amedrontada", em memória dos atentados de 11 de Setembro, em Harbin (China)


Marcus Mazzari
especial para a Folha

Na breve vida de Franz Kafka (1883-1924), o ano de 1912 reveste-se de extraordinário significado. Na madrugada de 23 de setembro escreve, de um só jato, "O Veredicto", considerado um divisor de águas em sua produção literária, e nas madrugadas entre 17 de novembro e 7 de dezembro surge "A Metamorfose", um dos textos mais célebres do século 20 (para Elias Canetti, "o maior feito da ficção na literatura ocidental"). No plano pessoal recrudescem porém os conflitos com o pai, o que leva o escritor, pressionado a assumir a supervisão de uma fábrica da família, a cogitar o suicídio. Se o desfecho das novelas mencionadas é o aniquilamento dos "filhos" Georg Bendemann e Gregor Samsa, o romance iniciado igualmente em 1912 trai um desejo de evasão que também pode ser visto à luz da crise pessoal vivenciada pelo escritor. "Amerika" é o título pelo qual essa obra, editada em 1927 por Max Brod, ficou conhecida, mas uma carta a Felice Bauer (um conturbado relacionamento que começa em 1912) diz: "A história que estou escrevendo, concebida todavia com vistas ao ilimitado, chama-se -para dar-lhe uma idéia provisória- "O Desaparecido" e se passa exclusivamente nos Estados Unidos da América".

Notas de rodapé e variantes
Dessa obra tínhamos até agora o primoroso capítulo de abertura, "O Foguista", incluído no sétimo volume das traduções de Kafka assinadas por Modesto Carone (e publicadas pela Companhia das Letras). A tradução integral de Susana Kampff Lages, também feita a partir da edição crítica (1983) de J. Schillemeit, traz em notas de rodapé as inserções de Max Brod assim como variantes suprimidas pelo autor em seu manuscrito. Como uma "imitação" de Dickens, caracterizou Kafka em seu diário a história do jovem praguense Karl Rossmann, que, expulso pelos pais por ter engravidado uma criada, avista, na cena de abertura, a Estátua da Liberdade empunhando uma espada -estranhamento que de imediato marca as diferenças com todo o realismo do século 19. Enquanto o navio está atracando, Karl envolve-se numa disputa entre o foguista (a quem se apega como a uma figura paterna) e o maquinista-chefe. Em circunstâncias surpreendentes fica conhecendo, ainda no navio, o seu tio Jakob, self-made man que, novo representante do pai, o acolhe e livra da difícil condição de imigrante. Parece abrir-se ao jovem um mundo de possibilidades ilimitadas, sob a proteção do rico tio, proprietário de "um negócio de intermediação [...] que providenciava o fornecimento de todos os produtos e matérias-primas para os grandes cartéis industriais e para os cartéis entre si". Banido da casa do tio por causa de uma desobediência inconsciente, a próxima etapa de Karl em Nova York faz a narrativa avançar na figuração clarividente do moderno mundo capitalista, com o ritmo vertiginoso que ao indivíduo só concede o breve instante da troca de turno. Trata-se do seu emprego como ascensorista no labiríntico "Hotel occidental", cujas estruturas já prenunciam as hierarquias indevassáveis de magistrados e funcionários dos romances posteriores, os também inacabados "O Processo" e "O Castelo". Uma duvidosa negligência profissional acarreta porém a sua demissão e a partir daí Karl vivenciará suas aventuras americanas ao lado dos imigrantes Robinson e Delamarche, nomes que adensam simbolicamente o tema do indivíduo solitário em sua marcha pelo sentido da existência.

Proporções grotescas
Contudo, do mesmo modo como as relações humanas anteriores (e também a "vassalagem" posterior sob as ordens de Brunelda, ex-cantora de proporções grotescas), o contato com os dois imigrantes é marcado por equívocos e ciladas -tudo em meio a uma paisagem urbana dominada pelo funcionamento automatizado da sociedade industrial, em meio a ruas coalhadas de veículos que ora passam em alta velocidade ("como se de um ponto distante fosse despachado um número exato de automóveis que eram esperados em igual quantidade num outro ponto distante da direção oposta"), ora se congestionam de tal maneira que aos pedestres não resta senão atravessar a rua "por dentro dos carros, como se aquilo fosse uma passagem pública".
Quando o "american way of life" parece envolver definitivamente o jovem imigrante como uma imensa "colônia penal", o último fragmento do romance descortina-lhe a possibilidade de engajar-se no ilimitado teatro de Oklahoma, em que todos estão convidados a interpretar o papel da própria existência. Mescla de Juízo Final e utopia socialista, esse "theatrum mundi" fecha a narrativa sugerindo o desaparecimento do herói num horizonte otimista, que nunca mais assomaria nas criações literárias do mestre de Praga.
Entre os "erros" cometidos por Kafka em suas incursões noturnas (após o trabalho no escritório) pelo continente norte-americano está o topônimo Oklahama, que a tradutora preserva de modo consequente, mas recuperando o "h" (Theatro de Oklahama) que a grafia praguense retirava de "Theater". Visa assim a um efeito de estranhamento que o leitor talvez venha a sentir apenas no sentido em que poderá estranhar a opção da tradutora por uma coloquialidade carregada, que nem sempre encontra correspondência no tom do original: "Deixar a mala dando sopa" ("frei liegen lassen"), "alguém lá do hotel o enrolou" ("gelockt hat") são exemplos dessa tendência que não hesita em falar de "quebra-pau" ("Krawall", palavra originária dos tumultos de 1830 e 1848), do qual aliás Karl sai com um galo "tremendo".
Opções discutíveis da tradução, assim como talvez se devam acolher cum grano salis considerações do posfácio que privilegiam em demasia (à custa da dimensão histórica tão cara a leituras dialéticas) um Kafka "mais metalinguístico e metaliterário", comprometido com o "movimento auto-referencial do texto", "eventos semióticos", com forçadas "ambiguidades da letra".
Estamos portanto muito distantes das concepções que norteiam as traduções de Carone (ou de um Herbert Caro em relação a Thomas Mann), mas essa constatação não significa de modo algum questionar a legitimidade da perspectiva de Susana Lages, sobretudo porque esta traz também observações elucidativas e inovadoras, convidando-nos a reconhecer nessa recente edição do "Desaparecido" uma importante contribuição para a recepção da obra kafkiana entre nós.


Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê Editorial).

O Desaparecido ou Amerika
304 págs., R$ 43,00
de Franz Kafka. Tradução de Susana Kampff Lages. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/ xx/11/3816-6777).



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