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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Grupo faz seminário com especialistas na obra do autor, entre eles Raymond Gay-Crosier, para preparar a montagem de "Os Justos", peça do francês sobre terrorismo

A 'LIÇÃO' DE CAMUS

Manuel da Costa Pinto
Colunista da Folha

Em 1949, Oswald de Andrade levou Albert Camus a Iguape, no litoral de São Paulo, para assistir a uma procissão religiosa. Mais tarde, o escritor francês fundiria esse episódio ao de uma macumba que testemunhou no Rio de Janeiro em companhia do ator Abdias do Nascimento, resultando daí o conto "A Pedra Que Cresce". Desde então é difícil dissociar o Brasil da obra de Camus, que encontrou aqui várias semelhanças com sua Argélia natal, também um país coabitado por europeus e africanos. A história desse vínculo ganha agora mais um capítulo, com a realização de um seminário promovido entre os dias 6 e 9 de outubro, em SP, pelo grupo teatral Ágora, que prepara a montagem de "Os Justos", peça de Camus sobre o terrorismo (informações pelo tel. 0/xx/11/3284-0290). Além da presença do próprio Abdias do Nascimento (que aos 89 anos falará de seu encontro com Camus) e de críticos como o francês Jean Yves Guérin e o argentino Horacio González, o seminário terá a participação de Raymond Gay-Crosier, professor da Universidade da Flórida e organizador da obra completa de Camus para a coleção Pléiade, da editora Gallimard. Ele fala, a seguir, de alguns temas que percorrem o pensamento do escritor.
Qual a importância do Brasil na obra de Camus?
A viagem de Camus à América do Sul aconteceu sob circunstâncias físicas e morais difíceis, mas deixou marcas importantes. Depois de uma travessia que o levou de navio ao Rio de Janeiro, ele visitou Recife, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Buenos Aires, Santiago e Montevidéu. No seu "Diário de Viagem", Camus compara a desenvoltura dos corpos nas praias brasileiras à da Argélia de sua juventude. Outra lembrança preciosa que ele levou do Brasil foi a de uma viagem a Iguape, experiência da qual extraiu um texto intitulado "A Pedra Que Cresce", que faria parte do volume de contos "O Exílio e o Reino".
Existe uma "estética da revolta" em Camus?
Essa expressão aparece várias vezes nos "Carnets" de Camus. É importante entender que absurdo e revolta são termos complementares desde o lançamento de "O Mito de Sísifo" (seu "ensaio sobre o absurdo", de 1942). A ausência de sentido que conduz àquilo que chamamos de "ficção do absurdo" (como, por exemplo, "O Estrangeiro") é apenas um ponto de partida, pois essa ficção deve ser vista como uma tentativa de dar sentido àquilo que não o tem, de dar uma forma ao disforme. Essa tentativa, consciente de sua insuficiência, é um gesto de recusa, uma revolta contra o absurdo que ela tenta negar. Podemos dizer que a criação artística, tal como Camus a concebe, por exemplo, em "O Homem Revoltado", é uma negação paradoxalmente afirmativa, um dos axiomas da estética camusiana.
É esse o tema de seu livro "Albert Camus - Paradigmas da Ironia. Revolta e Afirmação Negativa"?
O livro reúne uma dúzia de artigos ligados pelo tema da "negação afirmativa". Esse aparente oxímoro é um conceito de base e também uma estratégia criativa. O aspecto paradoxal do pensamento camusiano, reforçado pela clareza exemplar de sua expressão, me fascinaram e me levaram a relacioná-lo com a ironia. Lembremos o que Camus diz em seus "Carnets": "Toda a minha obra é irônica".
Não se pode portanto dissociar a ética de Camus de sua escrita?
Os valores humanos -os únicos que ele aceita- são fundados na experiência pessoal. É por isso que Camus deriva seus valores do comportamento que pôde observar nos códigos das ruas e do esporte (sobretudo no futebol, que ele adorava) ou, num plano cultural, no trabalho em equipe, principalmente no teatro. Fundador do Théâtre du Travail (depois Théâtre de l'Équipe), na Argel dos anos 30, Camus sempre foi da opinião de que o teatro é a família do espírito, pois ele admirava a função igualitária dessa arte carnal. Nos seus notáveis editoriais para o jornal "Combat", ele tentou apaixonadamente dar à política um fundamento moral, não no sentido de uma moral normativa que repousa sobre princípios abstratos, mas de uma moral vivida, concreta. Dentro de um mesmo espírito, as "lições" que podemos extrair de obras tão díspares como "O Estrangeiro", "A Peste" e "A Queda" são contraditórias apenas na aparência. Pois, justamente, o objetivo não é fornecer ao leitor receitas morais, mas incitá-lo à reação, ao engajamento em sua leitura revoltada, à formulação de seu próprio julgamento.
Mais de 50 anos depois da ruptura entre Sartre e Camus, qual a atualidade dessa polêmica? Houve um vencedor?
Essa polêmica fez correr muita tinta até nossos dias. Ela tem importância apenas para a história das idéias, ou melhor, das ideologias da metade do século passado. Parafraseando o famoso título de um dos textos de Camus, "Nem Vítimas nem Verdugos", eu seria tentado a dizer que essa polêmica não teve nem vencedor nem vencido. À pergunta "quem teve razão?" é preciso acrescentar: "razão de quê?". No plano formal e profissional, Sartre, professor e ex-aluno da École Normale Supérieure, tinha a tarefa fácil de provar que era melhor filósofo do que Camus. Mas, colocando a questão em termos da prioridade conferida pelos círculos intelectuais dos anos 50 e 60 à luta pelo domínio ideológico, os "nouveaux philosophes" dos anos 70 acabaram retornando a Camus, que nunca deixou de repetir que não era um filósofo, mas um pensador, e que era necessário pensar por imagens.

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