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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Ponto de fuga

O céu dos vendedores

O cotidiano, realista, reduz-se a um substrato de pequenas proporções. Ele está imerso num mundo de memórias, de ilusões, de esperanças patéticas, de sentimentos difusos e insatisfeitos. Mundo de atmosfera espessa, que tem uma translucidez de aquário. "A Morte do Caixeiro-Viajante", de Arthur Miller, é uma denúncia do sonho americano, tal como ele se configurava naqueles anos do pós-guerra. Contudo angústias mais amplas e eternas tomam a peça. Encontram-se no cerne do texto.
Sua atual montagem, por Felipe Hirsch, veio do Rio para São Paulo. É uma versão, por assim dizer, menos "corpórea". A tradução de Flávio Rangel deixa leve e modesto um estilo cujo original às vezes é perturbado por um esforço poético laborioso. Os cenários, que permitem assinalar, sem confusão, o lugar do "real", da memória e do imaginário, exalam uma espiritualidade misteriosa, desgarrada do concreto.
Os personagens são de carne e osso, vulneráveis e dolorosos, mas neles também há uma redução física, uma perda de carnalidade. Nesse sentido, Marco Nanini, no papel de Willy Loman, é o oposto de Brian Dennehy, tão visceral na reprise da peça que a Broadway propôs quatro anos atrás. Os outros atores, a começar por Juliana Carneiro da Cunha, são também admiráveis. Situados para além de qualquer psicologismo mecânico, os personagens em crise vivem uma grandeza trágica, acima da vida que os acorrenta.

Edicole - Como no Brasil, as bancas de jornal italianas são cheias de DVDs, com preço menor que os das lojas. Há algumas jóias. "Fermo Posta", de Tinto Brass (1995), é uma delas. O filme apresenta oito episódios supostamente originados em cartas escritas por fãs, que enviam ao diretor seus devaneios eróticos. O final é grotesco: Brass, de bigode postiço e ridículo, aparece como um mestre-de-cerimônias de circo em meio a mulheres sem roupas. Ouvem-se barridos, e a montagem sugere que seu pênis é uma tromba de elefante.
Esse achincalhamento de um surrealismo a la Fellini não impõe seu tom ao resto, feito de voyeurismo sincero e elegante. No primeiro episódio, à distância um do outro, dois casais transam. Há uma troca de olhares entre a mulher de um e o homem do outro: uma terceira cena amorosa surge, assim, invisível, mas presente. Ou ainda: diante da escrivaninha do diretor, uma jovem, nua, passa por um teste. Brass apenas joga uma moeda no chão, e a moça demonstra que há várias maneiras ótimas de se abaixar para catá-la.
Ainda nas bancas italianas encontra-se uma pequena maravilha: "Quando Alice Ruppe lo Specchio", de Lucio Fulci. Com baixíssimo orçamento, ironizando os acessórios mal-feitos, as maquiagens aproximativas, mostra-se um híbrido estranho de film noir, de horror e de comédia.

Esqueleto - "Piratas do Caribe" traz a lição de que mais é menos, ou, como declarou Rohmer, de que o cinema é uma arte da recusa, da eliminação. Gore Verbinski dirige os piratas. Ele sabe criar climas estranhos e inquietantes. Sua obra precedente, "O Chamado" ("The Ring", 2002), desdobrava episódios de tom fantasmagórico. Ocorre, porém, que "O Chamado" é um remake de "Ringu" 1 (1998) e 2 (1999), de Hideo Nakata, filme de poucos recursos, mas feito de estupenda invenção, rigorosa e tensa. Em "Piratas do Caribe" os custosos efeitos especiais servem para prolongar combates que se repetem, intermináveis, mal alinhavados numa história esfarrapada. A tecnologia quer substituir roteiro decente, coerência narrativa, convicção das cenas, e destrói o que poderia haver ali de cinema. Resta Johnny Depp, numa performance irresistível que mistura donaire amaneirado e imundície fedorenta.

Mentiras - A verdade da arte não é a verdade da vida, é bom lembrar sempre. Inverossímil, a prisão russa de "Hell" (2003), filme dirigido por Ringo Lam, com Van Damme. Com tintas homoeróticas e sadomasoquistas, ela se resume a uma arena de combates, onde todo mundo fala inglês. Sua verdadeira verdade, porém, é a do cinema, e nisso é muito mais autêntica do que o pretenso realismo de um "Carandiru".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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