São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade

Isso é realmente guerra?


Ataque a organizações como a Al Qaeda mostra que lei criminal internacional tenderá a reduzir importância do conceito de Estado para valorizar o de cumplicidade


por George Fletcher

Os constantes ataques aéreos contra bases terroristas e sistemas de apoio no Afeganistão fizeram parecer acurado o uso da palavra "guerra" pelo presidente Bush para descrever a reação dos Estados Unidos aos atentados terroristas de 11 de setembro. Mas "guerra" seria realmente a palavra certa nesse caso? Os que fazem objeção a seu uso dizem que não se pode travar uma guerra contra um inimigo disperso, sem bandeira, sem território e sem estatuto jurídico internacional. Eles preferem descrever toda ação militar nessas circunstâncias como "ação policial" destinada a deter suspeitos e levá-los à Justiça. Se a campanha antiterrorista é de fato uma guerra, dizem eles, só pode ser uma campanha simbólica, como a guerra contra as drogas. Esses céticos podem ter uma certa lógica formal a seu favor mas também está claro que a lei internacional está mudando no sentido de reconhecer todas as entidades coletivas que cometem agressão transpondo fronteiras definidas como agentes sob a lei internacional. Por exemplo, os tribunais concluíram que Radovan Karadzic, ex-líder político dos sérvios da Bósnia, agiu como chefe de uma entidade equivalente a um Estado, com o objetivo de aplicar as normas da lei internacional. Sua tentativa de eliminar a população muçulmana local podia ser descrita adequadamente como genocídio. Osama bin Laden e outros líderes de redes terroristas não são muito diferentes. Eles controlam uma população definida, fazem acordos com os Estados que os abrigam e formulam políticas externas agressivas, exatamente como fazem os Estados. Diferentemente das guerrilhas em países como a Colômbia, eles operam através de fronteiras nacionais. Funcionam como Estados e devem ser tratados como Estados na qualidade de sujeitos da lei internacional. Se os Estados Unidos estão em guerra contra a rede Al Qaeda e as células terroristas ligadas a ela, isso depende significativamente da natureza dos atos cometidos em 11 de setembro. O governo Bush não pode decidir se foram um ato de guerra ou um crime contra a lei americana. O secretário de Justiça dos Estados Unidos, John Ashcroft, acha importante o fato de Bin Laden ter sido indiciado sob a legislação dos EUA por atos terroristas anteriores. Mas, se isso é uma guerra, o corpo jurídico relevante não é o americano, mas o internacional, e as acusações relevantes não são sequestro e assassinato, mas genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.


Os Estados não mais poderão negar sua responsabilidade afirmando que não sabiam o que estava ocorrendo em seu território; os cidadãos não poderão negar sua responsabilidade afirmando que são simples "observadores"


Objetivos de guerra
O tribunal para julgar o caso não deveria ser americano nem islâmico, mas o Tribunal Criminal Internacional. Infelizmente essa corte ainda não está formada, e quando começar a funcionar (ironicamente, sob objeções dos Estados Unidos) sua jurisdição não terá aplicação retroativa. Mas há países no mundo -como Bélgica, Alemanha e Canadá- que poderiam intervir e aplicar os princípios da lei internacional aos crimes de 11 de setembro. Como evidenciam essas alegações de jurisdição universal, toda a estrutura da lei criminal internacional havia começado a mudar antes dos eventos de 11 de setembro. Com a evolução do sistema da ordem internacional, os Estados em particular se tornarão menos importantes. As organizações, com exércitos e funções estatais, se tornarão agentes e objetivos de guerra. Isso quer dizer que, se as redes organizadas como Hizbollah ou Al Qaeda atacarem outros países, poderão esperar uma reação militar que assumirá a forma de legítima autodefesa sob a Carta das Nações Unidas. O fato de os Estados Unidos estarem em guerra só tem importância para a lei doméstica da traição: os que aderirem ao inimigo e lhes derem ajuda e assistência serão culpados de um dos mais graves crimes internos nos Estados Unidos. A futura evolução da lei internacional enfrenta desafios difíceis no campo da proteção aos cidadãos. Ouvimos dizer que não se pode esperar que os terroristas de hoje façam caso da Convenção de Genebra. Eles vão torturar e matar prisioneiros. Eles não terão no futuro mais consideração pela vida dos civis do que tiveram em 11 de setembro. Isso coloca um problema ético para os EUA. A questão é saber se os Estados Unidos e seus aliados podem permanecer fiéis aos princípios tradicionais da Convenção de Genebra, poupando os civis do flagelo da guerra. Dois fatores nos levam a uma pausa. Se o inimigo não seguir as regras, os Estados Unidos serão tentados a adotar o mesmo nível de brutalidade. Mas não deveriam. Seria melhor permanecer fiel aos princípios de decência na guerra, mesmo quando os Estados Unidos se dedicarem a combater um inimigo bárbaro e sem lei. Um segundo fator é mais sutil. Os terroristas se recusam a usar roupas e insígnias que os identifiquem. Quando as tropas americanas e da Otan se defrontarem com eles, terão dificuldade para distingui-los da população civil a seu redor. Isso quer dizer que um soldado ocidental -facilmente identificável como combatente- não pode identificar prontamente as pessoas nas quais deve atirar. Invariavelmente ele matará alguns civis, acreditando de boa-fé que são forças armadas e hostis. Os civis estão apanhados numa terra de ninguém, entre o poder oficial, mas inócuo, e uma ameaça oficiosa, mas mortífera. Com o rompimento das distinções claras, o centro -o porto seguro dos civis- não se sustentará.

Participação mensurada
Conforme a lei internacional se adaptar, passaremos a dar menos importância a conceitos categóricos como Estado ou não-Estado, combatente ou civil, e passaremos a depender de relações de grau e intensidade. O conceito básico será o de cumplicidade -compartilhar a culpa dos terroristas.
O presidente Bush indicou a nova maneira de pensar quando declarou que todos os Estados que abrigarem terroristas serão tratados como cúmplices e responsáveis pelos atos terroristas. Os Estados não mais poderão negar sua responsabilidade afirmando que não sabiam o que estava ocorrendo em seu território. Os cidadãos não poderão negar sua responsabilidade afirmando que são simples "observadores". A culpa se tornará uma questão de participação mensurada, e algumas nuances sem dúvida se perderão no calor da batalha.
Tudo isso é lamentável. Todos deveriam lamentar o fim das antigas distinções legais, que cedem à pressão de novas realidades. Essa é apenas uma das muitas causas de tristeza no atual estado de tensão.


George P. Fletcher é professor de jurisprudência na Universidade Columbia (EUA). É autor de, entre outros, "Our Secret Constitution - How Lincoln Redefined American Democracy" (Oxford University Press). Copyright: Project Syndicate e Institute for Human Sciences.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.




Texto Anterior: + cronologia
Próximo Texto: O enterro da dor e o reinício da vida
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.