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+ ecologia
O Katrina dos subúrbios
O urbanista Mike Davis, morador de San Diego e crítico das implicações ambientais do capitalismo, fala sobre os incêndios na Califórnia
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Em sua casa em San
Diego, uma das cidades mais atingidas pelo incêndio que causou mais de US$ 1 bilhão em prejuízos na Califórnia, Mike Davis diz que prefere
ver as notícias pela TV de língua espanhola. "Só eles falam
do que acontece fora dos EUA."
Para Davis, a incapacidade
norte-americana de enxergar o
mundo exterior explica inclusive o incêndio iniciado no domingo passado, que desalojou
mais de 500 mil pessoas no Estado. Segundo ele, em vez de
aprender com casos anteriores
e com os prognósticos dos
cientistas, os habitantes da região limitaram-se a eleger bodes expiatórios: os imigrantes.
Na entrevista abaixo, feita
por telefone na quarta-feira, no
auge do incêndio, Davis explica
a situação na Califórnia -e a
crise ambiental mundial- por
meio da interação entre política e pobreza.
"O clima tira pessoas do
campo, as cidades não estão
preparadas para prover residência, trabalho e água. Essas
coisas têm de ser vistas em
conjunto."
FOLHA - O sr. não teve de deixar
sua casa?
MIKE DAVIS - Vivo num bairro
antigo perto do centro, predominantemente "latino". Estamos seguros, mas cobertos de
fumaça. A área onde mais pessoas abandonaram suas residências e mais casas foram destruídas fica no norte. A metade
norte de San Diego e seus subúrbios formam um padrão
contínuo de comunidades cercadas, com a maior concentração geográfica de votos republicanos dos EUA. Por isso temos
aqui o oposto de Nova Orleans
[onde o furacão Katrina matou
cerca de 1.800 pessoas e deixou
centenas de milhares de desabrigados em 2005].
FOLHA - É o "Katrina dos Ricos"?
DAVIS - É o Katrina Republicano ou o Katrina dos Subúrbios.
É claro que muitas pessoas comuns vão sofrer mais, mas no
momentos são invisíveis. A mídia enfatiza comunidades ricas.
E, enquanto Tijuana [México], nossa cidade-irmã, enviou
caminhões de bombeiro para
ajudar, as pessoas daqui falam
que saqueadores mexicanos
vão levar nossas coisas.
Estamos no meio da pior seca
da história no sul da Califórnia;
alguns dos maiores especialistas em clima nos EUA dizem
que não é só uma seca, mas uma
prévia de nosso novo clima.
FOLHA - Os incêndios deste ano na
Europa têm a ver com o novo clima?
DAVIS - Os modelos elaborados
pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
prevêem seca e mais incêndios
em regiões como a fronteira sudoeste dos EUA e o Mediterrâneo. Seja por causa de aquecimento global ou não, é exatamente o que foi previsto e o que
será daqui para a frente.
Os maiores incêndios ainda
devem vir, e a região que sofre a
seca mais inusitada da história
é o sudeste dos EUA: Geórgia,
Alabama e Carolina do Sul enfrentam a possibilidade de ficar
sem água potável. As florestas
de lá queimariam em tal escala
que este incêndio ficaria parecendo uma fogueira.
FOLHA - Os EUA não estão preparados para isso?
DAVIS - No sul, já houve pequenas secas, alguns incêndios,
mas as condições criadas para
incêndios agora são inéditas.
Imagine o clima do Rio de Janeiro ficando como o do Nordeste brasileiro: ninguém estava preparado, eles viviam com
abundância de água.
Aqui em San Diego, 80% da
água vem de fora. Os pobres
que dependem da agricultura
vão enfrentar a seca. Somando
tudo, aumentará a desigualdade e a histeria em relação aos
imigrantes. As pessoas não percebem que estão à beira de uma
seca sem precedentes. O que
veremos serão "guerras por
água": México contra EUA, Califórnia contra Arizona.
FOLHA - E assim a crise ambiental
se tornará política?
DAVIS - É política desde o início. Afinal, dividimos mais recursos do que realmente existiam: a água do rio Colorado é
dividida por todo o sudoeste
americano, tomando-se por base o período de 20 anos de
maior precipitação dos últimos
500 anos. E tudo isso antes da
mudança climática.
FOLHA - Que acha dos incêndios
para abrir pastagens no Brasil?
DAVIS - É conveniente para os
ecologistas do hemisfério Norte culpar a queima da Amazônia por tudo e não olhar para o
que fazemos em nossos quintais. Não vou entrar nesse simplismo: os EUA têm mais responsabilidade que qualquer
outro país. Nós é que dirigimos
carros maiores que tanques.
FOLHA - É preciso parar de dirigir
carrões?
DAVIS - Claro. Usávamos, 25
anos atrás, carros japoneses pequenos e mais eficientes. Agora
são carros de inspiração militar, os jipes gigantes. Como o
governo de George W. Bush e a
CIA [agência de inteligência]
não encontram Osama bin Laden, passam a caçar os "ecoterroristas": garotos que incendeiam lojas de jipes.
FOLHA - Esses são maus exemplos
de consciência ambiental. Quais são
os bons exemplos?
DAVIS - São os grupos ambientalistas. O problema desses movimentos é a concentração em
preocupações de classe média,
sem saber como fazer do clima
e do lixo temas populares.
No mundo todo se criam soluções, enquanto nós estamos
isolados. O americano comum
não tem conhecimento sobre
as inovações em ecologia urbana: compartilhar carros, fazer
rodízio... Mesmo nos EUA há
idéias boas, mas são raramente
comentadas na mídia ou ensinadas na escola.
Dá para avaliar os EUA por
nossa reação a Nova Orleans, o
abandono que sofreu uma das
mais cidades do país mais importantes culturalmente.
FOLHA - Acha que o Katrina ensinou uma lição aos EUA?
DAVIS - Ensinou lições erradas:
que afro-americanos pobres
não têm peso político, que dá
para esconder a inação quase
criminosa. Eu havia escrito antes do Katrina sobre a ineficiência no resgate das pessoas.
É como San Diego: já sabíamos
que ia pegar fogo.
FOLHA - E o que os EUA aprenderão
com este incêndio?
DAVIS - Essa é a questão. Esta é
uma réplica ampliada do incêndio de 2003. Naquele ano não
aprendemos nada. Foram destruídas 2.000 casas, as soluções
surgiram nas cédulas de votação: criação de um novo distrito
de bombeiros no condado, restrição do crescimento urbano
em direção ao campo. Mas as
propostas foram rejeitadas.
FOLHA - O que é preciso fazer para
evitar a crise que se afigura?
DAVIS - O que precisamos entender é a relação entre mudança climática, agricultura de
subsistência e organização da
pobreza. Essas coisas interagem cada vez mais: o clima tira
pessoas do campo, as cidades
não estão preparadas para prover residência, trabalho e água.
Essas coisas têm de ser vistas
em conjunto para lidarmos
com o problema.
E fronteiras são atos de violência. A fronteira com o México é pior que o Muro de Berlim.
Mas não se resolve esse problema sem atacar as questões de
desenvolvimento no México.
Deveríamos discutir uma idéia
que assusta os conservadores
deste país: algo como a União
Européia, incluindo direitos
aos cidadãos, seria a solução.
É necessária uma verdadeira
declaração de direitos humanos, que o Acordo de Livre Comércio da América do Norte
não tem. Senão, o que fica é o
direito à exploração.
FOLHA - E isso teria conseqüências
boas para o ambiente?
DAVIS - Claro. Nossas soluções
têm sido exportar os problemas
para o México: as indústrias estão mudando para o outro lado
da fronteira. E a questão não é a
fronteira, são direitos verdadeiros para as pessoas.
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