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Marcha turca
Resistência à entrada do regime de Ancara na União Européia aponta a crise de identidade que vive o continente
SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA
Em 16 de setembro, o ministro francês das Relações Exteriores, Bernard Kouchner, avisou o
mundo que ele deveria
preparar-se para uma guerra em
torno do programa nuclear iraniano: "Precisamos nos preparar
para o pior, e o pior é a guerra".
Como se poderia prever, essa
declaração provocou grande comoção, sendo as críticas voltadas
sobretudo ao que sir John Holmes, diretor da agência de refugiados da ONU, descreveu como a
"contaminação do Iraque": após
o escândalo do uso das supostas
armas iraquianas de destruição
em massa como justificativa para
a invasão, evocar uma ameaça
dessa natureza é algo que perdeu
credibilidade para sempre.
Por que acreditar nos EUA e
seus aliados agora, quando já fomos enganados tão brutalmente
em outra ocasião?
Contudo existe outro aspecto
do aviso lançado por Kouchner
que é muito mais preocupante.
Quando o recém-eleito presidente Sarkozy nomeou Kouchner, o
grande humanitário, figura politicamente próxima dos socialistas, até mesmo alguns dos críticos do presidente saudaram a nomeação como surpresa agradável.
Guerrear pela paz
Agora o significado da escolha
ficou claro: o retorno com força
total da ideologia do "humanismo
militarista" ou, até mesmo, do
"pacifismo militarista". O problema desse rótulo não é o fato de
que se trata de uma contradição,
algo que lembra o slogan "paz é
guerra", de "1984", de George Orwell: a posição pacifista simplista
de que "mais bombas e mortes jamais resultam em paz" é falsa;
freqüentemente é necessário
combater pela paz.
O problema do "humanismo
militarista" não está no "militarista", mas no "humanismo": está
na maneira como uma intervenção militar é apresentada como
sendo assistência humanitária,
justificada diretamente em termos de direitos humanos universais despolitizados.
É por isso que, na nova ordem
global, já não há guerras no sentido antigo do conflito regulamentado entre nações soberanas,
conflitos esses submetidos a determinadas regras (o tratamento
dado a prisioneiros, a proibição
de determinadas armas etc.). O
que resta são "conflitos étnico-religiosos" que violam as regras dos
direitos humanos universais.
Maquiagem
Assim, a pergunta-chave é:
quem é esse "nós" em cujo nome
Kouchner fala, quem está incluído nele e quem está excluído? Esse "nós" é o "mundo", a comunidade apolítica de pessoas civilizadas agindo em prol dos direitos
humanos?
Recebemos uma resposta inesperada (ou, melhor dizendo, uma
complicação) um mês mais tarde,
em 17/10, quando, desafiando as
pressões dos EUA, o Parlamento
turco, por ampla maioria, autorizou o governo a lançar operações
militares para caçar rebeldes curdos no Iraque, a seu critério.
O presidente sírio, Bashar Assad, em visita à Turquia, deu o retoque final de maquiagem a essa
decisão ao afirmar que apóia o direito da Turquia de agir "contra o
terrorismo e as atividades terroristas".
É como se, nesse caso, um intruso (e, ainda por cima, um intruso não dotado das credenciais
apropriadas em matéria de direitos humanos -basta ver sua negação do genocídio armênio [leia
texto abaixo]) tivesse entrado à
força no círculo fechado do "nós",
daqueles que detêm o monopólio
"de facto" do humanitarismo militarista.
O que torna a situação desagradável não é o caráter de "outro" da
Turquia, mas sua reivindicação
de não sê-lo. O que essa situação
traz à tona é o conjunto de regras
não escritas, proibições silenciosas e exclusões que qualifica o
"nós" da humanidade esclarecida.
A assombrosa ironia da situação está no fato de que uma marcha turca para dentro do Iraque já
possui um precedente no hino extra-oficial da União Européia, a
"Ode à Alegria" do último movimento da "Nona Sinfonia" de
Beethoven.
Essa composição é realmente
um "significador vazio" que pode
representar qualquer coisa. Na
França, foi alçada por Romain
Rolland à condição de ode humanista à irmandade de todas as pessoas (a "Marselhesa" da humanidade").
Em 1938, foi tocada como destaque no aniversário de Hitler. Na
China da Revolução Cultural,
dentro do ambiente de rejeição
dos clássicos europeus, foi redimida, vista como música da luta
de classes progressista. E, no Japão de hoje, alcançou status cult,
sendo entremeada à própria tessitura social, com sua alegada
mensagem de "alegria por meio
do sofrimento".
Até mesmo Abimael Guzmán o
(hoje preso) líder do Sendero Luminoso, quando indagado sobre a
música que amava, mencionou o
quarto movimento da "Nona Sinfonia".
Assim, podemos facilmente
imaginar uma apresentação fictícia na qual todos os inimigos jurados, desde Hitler a Stálin, de
George W. Bush a Saddam Hussein, esquecessem suas adversidades por um instante e participassem do mesmo momento mágico de irmandade extática.
Existe, porém, um desequilíbrio peculiar nessa música. Na
metade do movimento, depois de
ouvirmos a melodia principal (o
tema da "alegria") em três variações orquestrais e três vocais,
nesse primeiro clímax, acontece
algo inesperado que incomoda os
críticos há 180 anos: no compasso
331, o tom muda completamente,
e, em lugar da solene progressão
do hino, o mesmo tema da "Alegria" é repetido em estilo de
"marcia turca" (marcha turca),
copiado da música militar para
instrumentos de sopro e percussão que os exércitos europeus do
século 18 adotaram dos janissários turcos.
Parada popular
O modo aqui é de uma parada
popular carnavalesca, um espetáculo em tom de zombaria -alguns críticos chegaram a comparar a flatulências os "grunhidos
absurdos" dos contrafagotes e do
bombo que acompanham o início
da marcha turca.
A partir desse ponto, tudo degringola; a dignidade simples e
solene da parte um do movimento não é mais recuperada.
Mas, e se as coisas não degringolassem só a partir do compasso
331, com a entrada da marcha turca? E, se começassem a dar errado desde o início, devemos aceitar
que existe algo de uma falsidade
insípida na própria "Ode à Alegria".
E será que, hoje, o mesmo não
se aplica à Europa? Depois de
convidar milhões a se abraçarem,
a segunda estrofe do poema de
Schiller cantado com a melodia
da "Ode à Alegria" conclui em
tom sombrio: "Mas aquele que
não consegue se regozijar, que se
afaste, chorando".
O principal sinal da crise da
União Européia, hoje, é precisamente a Turquia: de acordo com a
maioria das pesquisas de opinião,
a principal razão daqueles que votaram "não" nos últimos referendos na França e na Holanda foi o
fato de se oporem ao ingresso da
Turquia.
O caso da Turquia de hoje é crucial para a compreensão correta
da globalização capitalista: o proponente político da globalização é
o partido islâmico "moderado",
governista, do primeiro-ministro
Erdogan.
Transculturação
São os ferrenhamente nacionalistas e seculares kemalistas, partidários do Estado-nação plenamente soberano, que resistem à
integração plena no espaço global
(e que também têm receio quanto
à entrada da Turquia na União
Européia), enquanto os islâmicos
acham fácil combinar sua identidade religiosa-cultural com a globalização econômica.
Insistir na identidade cultural
particular não constitui obstáculo à globalização: o verdadeiro
obstáculo é o universalismo
transcultural do Estado-nação.
Portanto, deve ser autorizado o
ingresso da Turquia na UE ou deve ser permitir que dela "se afaste,
chorando"? Pode a Europa sobreviver à marcha turca? E se, como
no final da "Nona Sinfonia" de
Beethoven, o verdadeiro problema não for a Turquia, mas a própria melodia básica, a canção da
unidade européia como ela nos é
tocada pela elite tecnocrática
pós-política de Bruxelas?
O que precisamos é de uma melodia principal totalmente nova,
uma nova definição da própria
Europa.
O problema da Turquia não diz
respeito à Turquia em si, mas à
confusão em torno do que é a própria Europa. O impasse em torno
da Constituição européia é sinal
de que o projeto europeu está à
procura de sua identidade própria.
A tarefa é difícil e nos obriga a
assumir um grande risco ao darmos um passo para o desconhecido -mas a única alternativa a ela
é a decadência lenta, a gradual
transformação da Europa naquilo
que a Grécia foi para o Império
Romano maduro: um destino para o turismo cultural nostálgico,
destituído de qualquer relevância
efetiva.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um
Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve na
seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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