São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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Marcha turca

Resistência à entrada do regime de Ancara na União Européia aponta a crise de identidade que vive o continente

SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Em 16 de setembro, o ministro francês das Relações Exteriores, Bernard Kouchner, avisou o mundo que ele deveria preparar-se para uma guerra em torno do programa nuclear iraniano: "Precisamos nos preparar para o pior, e o pior é a guerra".
Como se poderia prever, essa declaração provocou grande comoção, sendo as críticas voltadas sobretudo ao que sir John Holmes, diretor da agência de refugiados da ONU, descreveu como a "contaminação do Iraque": após o escândalo do uso das supostas armas iraquianas de destruição em massa como justificativa para a invasão, evocar uma ameaça dessa natureza é algo que perdeu credibilidade para sempre.
Por que acreditar nos EUA e seus aliados agora, quando já fomos enganados tão brutalmente em outra ocasião?
Contudo existe outro aspecto do aviso lançado por Kouchner que é muito mais preocupante.
Quando o recém-eleito presidente Sarkozy nomeou Kouchner, o grande humanitário, figura politicamente próxima dos socialistas, até mesmo alguns dos críticos do presidente saudaram a nomeação como surpresa agradável.

Guerrear pela paz
Agora o significado da escolha ficou claro: o retorno com força total da ideologia do "humanismo militarista" ou, até mesmo, do "pacifismo militarista". O problema desse rótulo não é o fato de que se trata de uma contradição, algo que lembra o slogan "paz é guerra", de "1984", de George Orwell: a posição pacifista simplista de que "mais bombas e mortes jamais resultam em paz" é falsa; freqüentemente é necessário combater pela paz.
O problema do "humanismo militarista" não está no "militarista", mas no "humanismo": está na maneira como uma intervenção militar é apresentada como sendo assistência humanitária, justificada diretamente em termos de direitos humanos universais despolitizados.
É por isso que, na nova ordem global, já não há guerras no sentido antigo do conflito regulamentado entre nações soberanas, conflitos esses submetidos a determinadas regras (o tratamento dado a prisioneiros, a proibição de determinadas armas etc.). O que resta são "conflitos étnico-religiosos" que violam as regras dos direitos humanos universais.

Maquiagem
Assim, a pergunta-chave é: quem é esse "nós" em cujo nome Kouchner fala, quem está incluído nele e quem está excluído? Esse "nós" é o "mundo", a comunidade apolítica de pessoas civilizadas agindo em prol dos direitos humanos?
Recebemos uma resposta inesperada (ou, melhor dizendo, uma complicação) um mês mais tarde, em 17/10, quando, desafiando as pressões dos EUA, o Parlamento turco, por ampla maioria, autorizou o governo a lançar operações militares para caçar rebeldes curdos no Iraque, a seu critério.
O presidente sírio, Bashar Assad, em visita à Turquia, deu o retoque final de maquiagem a essa decisão ao afirmar que apóia o direito da Turquia de agir "contra o terrorismo e as atividades terroristas".
É como se, nesse caso, um intruso (e, ainda por cima, um intruso não dotado das credenciais apropriadas em matéria de direitos humanos -basta ver sua negação do genocídio armênio [leia texto abaixo]) tivesse entrado à força no círculo fechado do "nós", daqueles que detêm o monopólio "de facto" do humanitarismo militarista.
O que torna a situação desagradável não é o caráter de "outro" da Turquia, mas sua reivindicação de não sê-lo. O que essa situação traz à tona é o conjunto de regras não escritas, proibições silenciosas e exclusões que qualifica o "nós" da humanidade esclarecida.
A assombrosa ironia da situação está no fato de que uma marcha turca para dentro do Iraque já possui um precedente no hino extra-oficial da União Européia, a "Ode à Alegria" do último movimento da "Nona Sinfonia" de Beethoven.
Essa composição é realmente um "significador vazio" que pode representar qualquer coisa. Na França, foi alçada por Romain Rolland à condição de ode humanista à irmandade de todas as pessoas (a "Marselhesa" da humanidade").
Em 1938, foi tocada como destaque no aniversário de Hitler. Na China da Revolução Cultural, dentro do ambiente de rejeição dos clássicos europeus, foi redimida, vista como música da luta de classes progressista. E, no Japão de hoje, alcançou status cult, sendo entremeada à própria tessitura social, com sua alegada mensagem de "alegria por meio do sofrimento".
Até mesmo Abimael Guzmán o (hoje preso) líder do Sendero Luminoso, quando indagado sobre a música que amava, mencionou o quarto movimento da "Nona Sinfonia".
Assim, podemos facilmente imaginar uma apresentação fictícia na qual todos os inimigos jurados, desde Hitler a Stálin, de George W. Bush a Saddam Hussein, esquecessem suas adversidades por um instante e participassem do mesmo momento mágico de irmandade extática. Existe, porém, um desequilíbrio peculiar nessa música. Na metade do movimento, depois de ouvirmos a melodia principal (o tema da "alegria") em três variações orquestrais e três vocais, nesse primeiro clímax, acontece algo inesperado que incomoda os críticos há 180 anos: no compasso 331, o tom muda completamente, e, em lugar da solene progressão do hino, o mesmo tema da "Alegria" é repetido em estilo de "marcia turca" (marcha turca), copiado da música militar para instrumentos de sopro e percussão que os exércitos europeus do século 18 adotaram dos janissários turcos.

Parada popular
O modo aqui é de uma parada popular carnavalesca, um espetáculo em tom de zombaria -alguns críticos chegaram a comparar a flatulências os "grunhidos absurdos" dos contrafagotes e do bombo que acompanham o início da marcha turca.
A partir desse ponto, tudo degringola; a dignidade simples e solene da parte um do movimento não é mais recuperada. Mas, e se as coisas não degringolassem só a partir do compasso 331, com a entrada da marcha turca? E, se começassem a dar errado desde o início, devemos aceitar que existe algo de uma falsidade insípida na própria "Ode à Alegria".
E será que, hoje, o mesmo não se aplica à Europa? Depois de convidar milhões a se abraçarem, a segunda estrofe do poema de Schiller cantado com a melodia da "Ode à Alegria" conclui em tom sombrio: "Mas aquele que não consegue se regozijar, que se afaste, chorando".
O principal sinal da crise da União Européia, hoje, é precisamente a Turquia: de acordo com a maioria das pesquisas de opinião, a principal razão daqueles que votaram "não" nos últimos referendos na França e na Holanda foi o fato de se oporem ao ingresso da Turquia.
O caso da Turquia de hoje é crucial para a compreensão correta da globalização capitalista: o proponente político da globalização é o partido islâmico "moderado", governista, do primeiro-ministro Erdogan.

Transculturação
São os ferrenhamente nacionalistas e seculares kemalistas, partidários do Estado-nação plenamente soberano, que resistem à integração plena no espaço global (e que também têm receio quanto à entrada da Turquia na União Européia), enquanto os islâmicos acham fácil combinar sua identidade religiosa-cultural com a globalização econômica.
Insistir na identidade cultural particular não constitui obstáculo à globalização: o verdadeiro obstáculo é o universalismo transcultural do Estado-nação.
Portanto, deve ser autorizado o ingresso da Turquia na UE ou deve ser permitir que dela "se afaste, chorando"? Pode a Europa sobreviver à marcha turca? E se, como no final da "Nona Sinfonia" de Beethoven, o verdadeiro problema não for a Turquia, mas a própria melodia básica, a canção da unidade européia como ela nos é tocada pela elite tecnocrática pós-política de Bruxelas?
O que precisamos é de uma melodia principal totalmente nova, uma nova definição da própria Europa.
O problema da Turquia não diz respeito à Turquia em si, mas à confusão em torno do que é a própria Europa. O impasse em torno da Constituição européia é sinal de que o projeto europeu está à procura de sua identidade própria.
A tarefa é difícil e nos obriga a assumir um grande risco ao darmos um passo para o desconhecido -mas a única alternativa a ela é a decadência lenta, a gradual transformação da Europa naquilo que a Grécia foi para o Império Romano maduro: um destino para o turismo cultural nostálgico, destituído de qualquer relevância efetiva.


SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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