São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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Romances apimentados

Duas obras buscam interpretar o gênero à luz de textos ingleses do século 18 e à luz da psicanálise, como o clássico de Marthe Robert

GUSTAVO BERNARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabam de ser publicados dois livros sobre a história do romance: de Marthe Robert, "Romance das Origens, Origens do Romance", e, de Sandra Guardini Vasconcelos, "A Formação do Romance Inglês". Os livros são tão densos e interessantes que, juntos, compõem um "romance do romance" e obrigam a uma resenha dupla.
Comecemos pelo trabalho de Robert. Publicado originalmente em 1972, relaciona a origem do gênero romance à noção psicanalítica de "romance familiar". A ensaísta francesa compara o romance com aquela forma de ficção elementar que a criança cria para explicar por que não é quem deveria ser: primeiro ela diviniza os pais (e se torna o próprio "filho-Deus"); depois, decepcionada, considera que eles não são os seus pais verdadeiros, mas estranhos encarregados de tomar conta dela enquanto o "rei" e a "rainha", seus pais desconhecidos, salvam o reino distante de um perigo terrível.
Com essa ficção, a criança acusa os pais, mas ao mesmo tempo os protege: "Os pais são culpados de parecer o que não são, embora não estejam de fato em questão, já que o que decepciona neles é transferido para pessoas estranhas". A "criança perdida" se torna então o "bastardo" ocupado em recuperar o que perdeu, numa luta que Kafka sintetizou no lema: "Em teu combate contra o mundo, apóia o mundo".
Ora, esse romance familiar nutre o romance de papel, obrigando-o a ser ao mesmo tempo "sonho e substituto da realidade, fuga do mundo e retorno ao mundo, mito e ciência, tempo perdido e tempo redescoberto". Robert encontra as intenções profundas do romance familiar no conto de fadas, que vê a criança sempre como a vítima -da miséria, da bruxa ou da fera. Do conto de fadas, a autora chega aos dois grandes arquétipos do romance: "Dom Quixote" e "Robinson Crusoé".
Robinson sai da casa do pai, contra a vontade dele, para correr mundo. Como punição, naufraga e passa a viver sozinho numa ilha. Mas o castigo o liberta, obrigando-o a construir o mundo e a si mesmo desde o começo. Quando finalmente deixa a ilha, casa com uma mulher sem nome e passa a viajar traficando todo tipo de mercadoria, inclusive escravos e ópio. Essa história simples gerou tantas versões e pastiches que se chegou a compilar uma "biblioteca robinsoniana".

Criança perdida
Já Dom Quixote duplica a condição de autor porque resolve reescrever na estrada os livros que leu, de fato o fazendo no papel em que o lemos. O "cavaleiro da triste figura" é na verdade o "narrador da mais triste lembrança" -aquela em que o fidalgo percebe-se órfão aos 50 anos de idade.
Dom Quixote "realiza ponto a ponto o programa megalomaníaco da criança perdida, mas o faz como nenhum outro herói da literatura universal o ousou, sem conceder o menor direito ao senso comum".
Como o "náufrago", o "cavaleiro" reconstrói a si e ao mundo na Espanha da Inquisição.
O romance contemporâneo, fundado por Quixote e por Crusoé, é "arrebatado por essa dialética do sim ao mundo e do não à realidade". Dizer "sim" ao mundo implica aceitar o que acontece, enquanto dizer "não" à realidade implica não aceitar que se possa dizer a verdade toda, como pretendem os realismos vigentes.
Exatamente de realismo trata o livro de Vasconcelos. Ao apresentar um conjunto de prefácios e resenhas em que os escritores ingleses do século 18 discutiam o gênero, Vasconcelos contempla o leitor com uma obra fundamental de referência e, ao mesmo tempo, com um estudo pessoal competente e instigante.
Os textos da época mostram como o romance burguês nascia com medo de ser acusado de "romanesco", de fictício no "mau sentido", a saber, de irreal e de imoral. Por isso, os próprios romancistas falavam mal dos romances e se esmeravam em "achar" suas histórias nos célebres baús de cartas antigas.

Necessidade de ficção
Essa ficção que finge que não o é vai definir os realismos que lhe seguem (inclusive o romantismo, na verdade um sub-realismo), estabelecendo um contrato de ilusão com o leitor: todos precisamos desesperadamente de ficção, mas vamos fingir que falamos apenas sobre coisas e pessoas verdadeiras.
"Diante da implicância mais recente com o realismo", Vasconcelos alerta que toma o conceito de realismo como o definem Hegel e Lukács, por exemplo.
Confesso fazer parte desses que implicam com o realismo, por entender que o termo sempre supõe que se possa dizer a verdade toda sobre a realidade.
Ora, essa premissa não pode estar na base de nenhuma ficção, sob pena de incorrer em petição de princípio. Os escritores que a defendem ou se protegem da censura burguesa ou fazem ironia com as contradições do leitor ou simplesmente estão errados.
O livro, no entanto, explora muito bem seu argumento, acrescendo-lhe uma frase fluente e envolvente. Se não gosto do termo que usa, gostei muito da forma como o usou, o desenvolveu e o sustentou.


GUSTAVO BERNARDO é professor de teoria da literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "Reviravolta" (Rocco)

ROMANCE DAS ORIGENS, ORIGENS DO ROMANCE
Autor: Marthe Robert
Tradução: André Telles
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/3823-6580)
Quanto: R$ 55 (280 págs.)

A FORMAÇÃO DO ROMANCE INGLÊS
Autor: Sandra Guardini Vasconcelos
Editora: Fapesp/Hucitec (tel. 0/xx/11/ 3083-7419)
Quanto: R$ 59 (656 págs.)


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