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+ livros
Romances apimentados
Duas obras
buscam
interpretar o
gênero à luz de
textos ingleses do
século 18 e à luz
da psicanálise,
como o clássico
de Marthe Robert
GUSTAVO BERNARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Acabam de ser publicados dois livros sobre a história do romance: de Marthe
Robert, "Romance
das Origens, Origens do Romance", e, de Sandra Guardini
Vasconcelos, "A Formação do
Romance Inglês". Os livros são
tão densos e interessantes que,
juntos, compõem um "romance do romance" e obrigam a
uma resenha dupla.
Comecemos pelo trabalho de
Robert. Publicado originalmente em 1972, relaciona a origem do gênero romance à noção psicanalítica de "romance familiar". A ensaísta francesa
compara o romance com aquela forma de ficção elementar
que a criança cria para explicar
por que não é quem deveria ser:
primeiro ela diviniza os pais (e
se torna o próprio "filho-Deus"); depois, decepcionada,
considera que eles não são os
seus pais verdadeiros, mas estranhos encarregados de tomar
conta dela enquanto o "rei" e a
"rainha", seus pais desconhecidos, salvam o reino distante de
um perigo terrível.
Com essa ficção, a criança
acusa os pais, mas ao mesmo
tempo os protege: "Os pais são
culpados de parecer o que não
são, embora não estejam de fato em questão, já que o que decepciona neles é transferido
para pessoas estranhas". A
"criança perdida" se torna então o "bastardo" ocupado em
recuperar o que perdeu, numa
luta que Kafka sintetizou no lema: "Em teu combate contra o
mundo, apóia o mundo".
Ora, esse romance familiar
nutre o romance de papel, obrigando-o a ser ao mesmo tempo
"sonho e substituto da realidade, fuga do mundo e retorno ao
mundo, mito e ciência, tempo
perdido e tempo redescoberto". Robert encontra as intenções profundas do romance familiar no conto de fadas, que vê
a criança sempre como a vítima
-da miséria, da bruxa ou da fera. Do conto de fadas, a autora
chega aos dois grandes arquétipos do romance: "Dom Quixote" e "Robinson Crusoé".
Robinson sai da casa do pai,
contra a vontade dele, para correr mundo. Como punição,
naufraga e passa a viver sozinho numa ilha. Mas o castigo o
liberta, obrigando-o a construir
o mundo e a si mesmo desde o
começo. Quando finalmente
deixa a ilha, casa com uma mulher sem nome e passa a viajar
traficando todo tipo de mercadoria, inclusive escravos e ópio.
Essa história simples gerou
tantas versões e pastiches que
se chegou a compilar uma "biblioteca robinsoniana".
Criança perdida
Já Dom Quixote duplica a
condição de autor porque resolve reescrever na estrada os
livros que leu, de fato o fazendo
no papel em que o lemos. O "cavaleiro da triste figura" é na
verdade o "narrador da mais
triste lembrança" -aquela em
que o fidalgo percebe-se órfão
aos 50 anos de idade.
Dom Quixote "realiza ponto
a ponto o programa megalomaníaco da criança perdida, mas o
faz como nenhum outro herói
da literatura universal o ousou,
sem conceder o menor direito
ao senso comum".
Como o "náufrago", o "cavaleiro" reconstrói a si e ao mundo na Espanha da Inquisição.
O romance contemporâneo,
fundado por Quixote e por Crusoé, é "arrebatado por essa dialética do sim ao mundo e do não
à realidade". Dizer "sim" ao
mundo implica aceitar o que
acontece, enquanto dizer "não"
à realidade implica não aceitar
que se possa dizer a verdade toda, como pretendem os realismos vigentes.
Exatamente de realismo trata o livro de Vasconcelos. Ao
apresentar um conjunto de
prefácios e resenhas em que os
escritores ingleses do século 18
discutiam o gênero, Vasconcelos contempla o leitor com uma
obra fundamental de referência e, ao mesmo tempo, com um
estudo pessoal competente e
instigante.
Os textos da época mostram
como o romance burguês nascia com medo de ser acusado de
"romanesco", de fictício no
"mau sentido", a saber, de irreal
e de imoral. Por isso, os próprios romancistas falavam mal
dos romances e se esmeravam
em "achar" suas histórias nos
célebres baús de cartas antigas.
Necessidade de ficção
Essa ficção que finge que não
o é vai definir os realismos que
lhe seguem (inclusive o romantismo, na verdade um sub-realismo), estabelecendo um contrato de ilusão com o leitor: todos precisamos desesperadamente de ficção, mas vamos
fingir que falamos apenas sobre
coisas e pessoas verdadeiras.
"Diante da implicância mais recente com o realismo", Vasconcelos alerta que toma o conceito de realismo como o definem
Hegel e Lukács, por exemplo.
Confesso fazer parte desses
que implicam com o realismo,
por entender que o termo sempre supõe que se possa dizer a
verdade toda sobre a realidade.
Ora, essa premissa não pode
estar na base de nenhuma ficção, sob pena de incorrer em
petição de princípio. Os escritores que a defendem ou se protegem da censura burguesa ou
fazem ironia com as contradições do leitor ou simplesmente
estão errados.
O livro, no entanto, explora
muito bem seu argumento,
acrescendo-lhe uma frase
fluente e envolvente. Se não
gosto do termo que usa, gostei
muito da forma como o usou, o
desenvolveu e o sustentou.
GUSTAVO BERNARDO é professor de teoria da
literatura na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro e autor de "Reviravolta" (Rocco)
ROMANCE DAS ORIGENS, ORIGENS DO ROMANCE
Autor: Marthe Robert
Tradução: André Telles
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/3823-6580)
Quanto: R$ 55 (280 págs.)
A FORMAÇÃO DO ROMANCE INGLÊS
Autor: Sandra Guardini Vasconcelos
Editora: Fapesp/Hucitec (tel. 0/xx/11/ 3083-7419)
Quanto: R$ 59 (656 págs.)
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