São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cinema

Crimes tatuados

Em "Senhores do Crime", que passa hoje em SP, o diretor David Cronenberg faz filme de gângster sobre as máfias russas que atuam em Londres

JAMES MOTTRAM

David Cronenberg estava me dando uma aula sobre "body art" ao estilo dos criminosos russos. Ele apontou para um cartaz de "Senhores do Crime", seu mais recente filme, que havia sido afixado apressadamente à parede do quarto de hotel em que nos encontramos.
A imagem dominante é a de um par de mãos tatuadas, a direita ostentando um nascer do sol sobre o mar. Sob a imagem, a palavra "Cebep" -"norte", em russo. "Isso parece bastante inocente", diz Cronenberg, com um ar professoral acentuado por seu paletó marrom um tanto amarfanhado.
"Mas, na verdade, é uma tatuagem do movimento de supremacia branca. "Norte" quer dizer "brancos". Significa "não sul". Significa a supremacia dos brancos. A tatuagem seria compreendida nesse sentido em uma prisão ou por qualquer criminoso que a visse."
A análise articulada é típica de Cronenberg, mas ouvi-la ainda assim surpreende. No passado, ele teria se concentrado no doloroso ritual de marcar a carne com tinta. O diretor canadense sempre se deixou fascinar pela mutilação do corpo, auto-infligida ou não, desde os primeiros filmes de terror que lhe valeram a fama.

Horror venéreo
Um exemplo que revela o fascínio seria a cirurgia plástica radical ou a doença semelhante à hidrofobia que transforma as vítimas em vampiros, em seu filme "Enraivecida na Fúria do Sexo". Ou a forma de psicoterapia oferecida em "Os Filhos do Medo", que faz com que as emoções negativas se manifestem fisicamente em forma de chagas que recobrem a pele. Até mesmo "Gêmeos - Mórbida Semelhança", mais cerebral, trazia uma mulher mutante com três colos de útero.
Mas "Senhores do Crime", uma história sobre bandidos russos que se passa na Londres contemporânea, está muito distante dos filmes que valeram a Cronenberg o título de "rei do horror venéreo".
Na verdade, ele não produz um filme de horror puro desde a refilmagem de "A Mosca", em 1986, inspirada pelo original, uma ficção científica dos anos 50 sobre um cientista que termina combinado geneticamente a um inseto depois do fracasso de uma experiência.
"A Mosca", estrelado por Jeff Goldblum, faturou US$ 40 milhões e continua a ser o maior sucesso de Cronenberg até hoje. Hollywood, naturalmente, começou a prestar atenção ao seu trabalho. "Passei por aquela fase na qual as pessoas diziam que "ele é bom diretor; só precisamos convencê-lo a não dirigir aquele material e dirigir o nosso material"."
Foi um momento decisivo na carreira de Cronenberg. Em lugar de acatar o conselho dos grandes estúdios, optou por manter sua trajetória pessoal com "Gêmeos - Mórbida Semelhança", de 1988, a história real de dois gêmeos idênticos, Beverly e Elliot Mantle, ambos ginecologistas em Toronto, interpretados brilhantemente por Jeremy Irons.
Na primeira cena do filme, quando a infância dos protagonistas é exibida em um vislumbre, o que estamos vendo é a vida de Cronenberg. "Eu usava óculos quando criança, me interessava por ciência e era precoce", ele disse uma vez.
O filme direcionou a carreira de Cronenberg e o orientou para uma jornada cinematográfica pessoal que culminou em "Spider - Desafie sua Mente", de 2002, uma adaptação do romance de Patrick McGrath sobre o paciente de um asilo para doentes mentais que termina libertado.
"Quando li o livro pela primeira vez, não foi preciso muito para que me imaginasse como alguém vagueando pelas ruas falando consigo mesmo em um idioma que ninguém entende", diz.
Ainda que seus cabelos grisalhos e tez pálida o façam parecer atormentado, Cronenberg, 64, não pode de modo algum ser descrito como louco. "Creio que eu seja incrivelmente são", sorri. "Uma das pessoas mais sãs que conheço, para ser franco, e me senti assim desde o começo". De fato, ele considera seu trabalho "uma empreitada filosófica".

Vida e obra
Ateu e "existencialista de carteirinha", como ele mesmo se define, Cronenberg usa o cinema como "uma forma de exploração de mim mesmo e de meus sentimentos sobre as coisas. Tento entender o que é a condição humana. Tento compreender o que sou, e espero que o público se deixe envolver por isso, esteja interessado nisso e queira me acompanhar nesse percurso".
Cronenberg continuou com filmes que funcionam, em determinado nível, como metáforas para a vida de um cineasta que luta por trabalhar fora do cinema mais convencional. "A Mosca" trata da queda de um cientista renegado, e "Mistérios e Paixões", sua versão do clássico junkie "Naked Lunch" [Almoço Nu], que combina o romance a elementos da vida do autor, William Burroughs, era tão auto-retrato quanto qualquer outra coisa.
Da mesma forma, "eXistenZ", de 1999, uma exploração da vida virtual e da história de uma criadora de videogames que está sob ameaça, foi inspirado pela experiência de Salman Rushdie ao publicar "Os Versos Satânicos" [Cia. das Letras], mas também pode ser interpretado como reação ao filme anterior de Cronenberg, o notório "Crash - Estranhos Prazeres".
Adaptação de um romance de J.G. Ballard sobre um grupo de pessoas que consegue satisfação sexual observando e participando de colisões de automóveis, o trabalho causou furor ao ser lançado.
"A reação que o filme provocou na Inglaterra foi um ponto alto e baixo de minha carreira cinematográfica. Não quero fingir que não me afetou, porque afetou. Agora compreendo muito melhor como a imprensa funciona neste país. E isso demonstra um dos possíveis pontos fracos da democracia." "Senhores do Crime" não deve causar indignação moral semelhante. Talvez comece com uma cena de degola, mas -como Cronenberg bem sabe-, a violência é muito mais tolerada nas telas do que atos de perversão sexual.
"Marcas da Violência", de 2005, seu filme anterior, é uma adaptação de uma história em quadrinhos sobre uma família de uma cidade pequena que tem conexões com o submundo -e foi seu maior sucesso desde "A Mosca", faturando US$ 31 milhões nos EUA.
À primeira vista, "Senhores do Crime" confirma que um novo capítulo na carreira de Cronenberg está em curso. Da mesma forma que em "Marcas da Violência", o trabalho o devolve aos filmes de gênero -ainda que, desta vez, um filme de gângsteres, e não um filme de horror-, aparentemente mais comerciais que seus trabalhos oblíquos dos anos 90.

Protagonista
O novo filme também volta a reuni-lo com Viggo Mortensen, o protagonista de "Marcas da Violência", que interpreta Nikolai, um motorista e guarda-costas de uma família real do crime organizado russo, conhecido como Vory v Zakone.
O filme coloca Nikolai em contato com uma enfermeira (Naomi Watts) que, sem querer, descobriu provas que incriminam seus empregadores. Mas, de acordo com Cronenberg, "Senhores do Crime" não difere de seus trabalhos anteriores. "Sempre lido com grupos transgressivos, de modo que nesse sentido não é um trabalho incomum para mim, já que me interesso por personagens marginalizados, excluídos da sociedade."
Embora esta seja a primeira vez que retrata grupos do crime organizado que de fato existem, Cronenberg admite: "Não tenho interesse pela mecânica da bandidagem".
Ele prefere uma abordagem mais antropológica, cujo foco é a migração de criminosos europeus orientais para o Ocidente. "Cada cultura -a albanesa, a tchetchena, a russa etc.- chegou [aqui e] criou uma versão hermeticamente selada de seu país de origem".
Um dado interessante é que foi Mortensen, ao pesquisar sobre o personagem, que sugeriu o uso mais visível de tatuagens, ainda que o roteiro apenas as mencionasse de passagem.
Deu um livro a Cronenberg, "Russian Criminal Tattoos" [Tatuagens de Criminosos Russos] e encontrou um documentário, "The Mark of Cain" [A Marca de Caim], que mostrava como os criminosos russos explicam suas nefandas realizações por meio de "body art". Cronenberg se interessou muito pelo documentário, que traz entrevistas com diversos bandidos russos aprisionados em uma penitenciária de segurança máxima. "Um velho diz que os criminosos mais jovens que chegam copiam as tatuagens, mas não sabem o que elas querem dizer.
Só seguem uma moda. Tudo que interessa a eles é dinheiro.
Não têm nenhum senso de honra ou lealdade."
De acordo com Cronenberg, isso é resultado da queda do comunismo, que levou os criminosos russos a sair em busca de cidades com alvos mais atraentes, como Londres. "De certa forma estamos vendo a emergência desse capitalismo primário e brutal que sai da Rússia e cria uma nova categoria de criminoso, mais semelhante aos capitalistas do que aos ladrões do passado."
"Senhores do Crime" evita as locações turísticas que a maior parte dos filmes passados em Londres ostenta e demonstra como Cronenberg conhece a cidade. Ele viveu lá brevemente nos anos 60, após interromper seus estudos na Universidade de Toronto, e a experiência obviamente pesou na vida do jovem canadense, que voltou para casa cabeludo e usando uma camisa estampada, para choque dos professores.
No passado, Cronenberg experimentou formatos vanguardistas (nos média-metragens "Stereo" e "Crimes of the Future", de 65 minutos) e filmes sensacionalistas ("Calafrios" e "Enraivecida na Fúria do Sexo"), mas nunca se afastou completamente do cinema convencional. "Sempre flerto com Hollywood", diz. "Há muito dinheiro e poder por lá."
Depois de mais de três décadas como cineasta, Cronenberg enfim conseguiu escapar do rótulo de cineasta de horror. "Eu me tornei interessante por dez minutos", ele comenta, com sagacidade. "É basicamente isso." Talvez devesse celebrar a ocasião com uma tatuagem.


A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: + lançamentos
Próximo Texto: Filme é exibido hoje às 17h20 e quarta às 19h20
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.