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+ cinema
Crimes tatuados
Em "Senhores do Crime", que passa hoje em SP, o diretor David Cronenberg
faz filme de gângster sobre as máfias russas que atuam em Londres
JAMES MOTTRAM
David Cronenberg
estava me dando
uma aula sobre
"body art" ao estilo
dos criminosos
russos. Ele apontou para um
cartaz de "Senhores do Crime",
seu mais recente filme, que havia sido afixado apressadamente à parede do quarto de hotel
em que nos encontramos.
A imagem dominante é a de
um par de mãos tatuadas, a direita ostentando um nascer do
sol sobre o mar. Sob a imagem,
a palavra "Cebep" -"norte",
em russo. "Isso parece bastante inocente", diz Cronenberg,
com um ar professoral acentuado por seu paletó marrom
um tanto amarfanhado.
"Mas, na verdade, é uma tatuagem do movimento de supremacia branca. "Norte" quer
dizer "brancos". Significa "não
sul". Significa a supremacia dos
brancos. A tatuagem seria compreendida nesse sentido em
uma prisão ou por qualquer
criminoso que a visse."
A análise articulada é típica
de Cronenberg, mas ouvi-la
ainda assim surpreende. No
passado, ele teria se concentrado no doloroso ritual de marcar
a carne com tinta. O diretor canadense sempre se deixou fascinar pela mutilação do corpo,
auto-infligida ou não, desde os
primeiros filmes de terror que
lhe valeram a fama.
Horror venéreo
Um exemplo que revela o fascínio seria a cirurgia plástica
radical ou a doença semelhante
à hidrofobia que transforma as
vítimas em vampiros, em seu
filme "Enraivecida na Fúria do
Sexo". Ou a forma de psicoterapia oferecida em "Os Filhos do
Medo", que faz com que as
emoções negativas se manifestem fisicamente em forma de
chagas que recobrem a pele.
Até mesmo "Gêmeos - Mórbida Semelhança", mais cerebral, trazia uma mulher mutante com três colos de útero.
Mas "Senhores do Crime",
uma história sobre bandidos
russos que se passa na Londres
contemporânea, está muito
distante dos filmes que valeram
a Cronenberg o título de "rei do
horror venéreo".
Na verdade, ele não produz
um filme de horror puro desde
a refilmagem de "A Mosca", em
1986, inspirada pelo original,
uma ficção científica dos anos
50 sobre um cientista que termina combinado geneticamente a um inseto depois do fracasso de uma experiência.
"A Mosca", estrelado por Jeff
Goldblum, faturou US$ 40 milhões e continua a ser o maior
sucesso de Cronenberg até hoje. Hollywood, naturalmente,
começou a prestar atenção ao
seu trabalho. "Passei por aquela fase na qual as pessoas diziam que "ele é bom diretor; só
precisamos convencê-lo a não
dirigir aquele material e dirigir
o nosso material"."
Foi um momento decisivo na
carreira de Cronenberg. Em lugar de acatar o conselho dos
grandes estúdios, optou por
manter sua trajetória pessoal
com "Gêmeos - Mórbida Semelhança", de 1988, a história real
de dois gêmeos idênticos, Beverly e Elliot Mantle, ambos ginecologistas em Toronto, interpretados brilhantemente
por Jeremy Irons.
Na primeira cena do filme,
quando a infância dos protagonistas é exibida em um vislumbre, o que estamos vendo é a vida de Cronenberg. "Eu usava
óculos quando criança, me interessava por ciência e era precoce", ele disse uma vez.
O filme direcionou a carreira
de Cronenberg e o orientou para uma jornada cinematográfica pessoal que culminou em
"Spider - Desafie sua Mente",
de 2002, uma adaptação do romance de Patrick McGrath sobre o paciente de um asilo para
doentes mentais que termina
libertado.
"Quando li o livro pela primeira vez, não foi preciso muito para que me imaginasse como alguém vagueando pelas
ruas falando consigo mesmo
em um idioma que ninguém
entende", diz.
Ainda que seus cabelos grisalhos e tez pálida o façam parecer atormentado, Cronenberg,
64, não pode de modo algum
ser descrito como louco.
"Creio que eu seja incrivelmente são", sorri. "Uma das
pessoas mais sãs que conheço,
para ser franco, e me senti assim desde o começo". De fato,
ele considera seu trabalho
"uma empreitada filosófica".
Vida e obra
Ateu e "existencialista de
carteirinha", como ele mesmo
se define, Cronenberg usa o cinema como "uma forma de exploração de mim mesmo e de
meus sentimentos sobre as coisas. Tento entender o que é a
condição humana. Tento compreender o que sou, e espero
que o público se deixe envolver
por isso, esteja interessado nisso e queira me acompanhar
nesse percurso".
Cronenberg continuou com
filmes que funcionam, em determinado nível, como metáforas para a vida de um cineasta
que luta por trabalhar fora do
cinema mais convencional. "A
Mosca" trata da queda de um
cientista renegado, e "Mistérios e Paixões", sua versão do
clássico junkie "Naked Lunch"
[Almoço Nu], que combina o
romance a elementos da vida
do autor, William Burroughs,
era tão auto-retrato quanto
qualquer outra coisa.
Da mesma forma, "eXistenZ", de 1999, uma exploração
da vida virtual e da história de
uma criadora de videogames
que está sob ameaça, foi inspirado pela experiência de Salman Rushdie ao publicar "Os
Versos Satânicos" [Cia. das Letras], mas também pode ser interpretado como reação ao filme anterior de Cronenberg, o
notório "Crash - Estranhos
Prazeres".
Adaptação de um romance
de J.G. Ballard sobre um grupo
de pessoas que consegue satisfação sexual observando e participando de colisões de automóveis, o trabalho causou furor
ao ser lançado.
"A reação que o filme provocou na Inglaterra foi um ponto
alto e baixo de minha carreira
cinematográfica. Não quero
fingir que não me afetou, porque afetou. Agora compreendo
muito melhor como a imprensa
funciona neste país. E isso demonstra um dos possíveis pontos fracos da democracia."
"Senhores do Crime" não deve causar indignação moral semelhante. Talvez comece com
uma cena de degola, mas -como Cronenberg bem sabe-, a
violência é muito mais tolerada
nas telas do que atos de perversão sexual.
"Marcas da Violência", de
2005, seu filme anterior, é uma
adaptação de uma história em
quadrinhos sobre uma família
de uma cidade pequena que
tem conexões com o submundo
-e foi seu maior sucesso desde
"A Mosca", faturando US$ 31
milhões nos EUA.
À primeira vista, "Senhores
do Crime" confirma que um
novo capítulo na carreira de
Cronenberg está em curso.
Da mesma forma que em
"Marcas da Violência", o trabalho o devolve aos filmes de gênero -ainda que, desta vez, um
filme de gângsteres, e não um
filme de horror-, aparentemente mais comerciais que
seus trabalhos oblíquos dos
anos 90.
Protagonista
O novo filme também volta a
reuni-lo com Viggo Mortensen,
o protagonista de "Marcas da
Violência", que interpreta Nikolai, um motorista e guarda-costas de uma família real do
crime organizado russo, conhecido como Vory v Zakone.
O filme coloca Nikolai em
contato com uma enfermeira
(Naomi Watts) que, sem querer, descobriu provas que incriminam seus empregadores.
Mas, de acordo com Cronenberg, "Senhores do Crime" não
difere de seus trabalhos anteriores. "Sempre lido com grupos transgressivos, de modo
que nesse sentido não é um trabalho incomum para mim, já
que me interesso por personagens marginalizados, excluídos
da sociedade."
Embora esta seja a primeira
vez que retrata grupos do crime
organizado que de fato existem,
Cronenberg admite: "Não tenho interesse pela mecânica da
bandidagem".
Ele prefere uma abordagem
mais antropológica, cujo foco é
a migração de criminosos europeus orientais para o Ocidente.
"Cada cultura -a albanesa, a
tchetchena, a russa etc.- chegou [aqui e] criou uma versão
hermeticamente selada de seu
país de origem".
Um dado interessante é que
foi Mortensen, ao pesquisar sobre o personagem, que sugeriu
o uso mais visível de tatuagens,
ainda que o roteiro apenas as
mencionasse de passagem.
Deu um livro a Cronenberg,
"Russian Criminal Tattoos"
[Tatuagens de Criminosos Russos] e encontrou um documentário, "The Mark of Cain" [A
Marca de Caim], que mostrava
como os criminosos russos explicam suas nefandas realizações por meio de "body art".
Cronenberg se interessou
muito pelo documentário, que
traz entrevistas com diversos
bandidos russos aprisionados
em uma penitenciária de segurança máxima.
"Um velho diz que os criminosos mais jovens que chegam
copiam as tatuagens, mas não
sabem o que elas querem dizer.
Só seguem uma moda. Tudo
que interessa a eles é dinheiro.
Não têm nenhum senso de
honra ou lealdade."
De acordo com Cronenberg,
isso é resultado da queda do comunismo, que levou os criminosos russos a sair em busca de
cidades com alvos mais atraentes, como Londres. "De certa
forma estamos vendo a emergência desse capitalismo primário e brutal que sai da Rússia
e cria uma nova categoria de
criminoso, mais semelhante
aos capitalistas do que aos ladrões do passado."
"Senhores do Crime" evita as
locações turísticas que a maior
parte dos filmes passados em
Londres ostenta e demonstra
como Cronenberg conhece a cidade. Ele viveu lá brevemente
nos anos 60, após interromper
seus estudos na Universidade
de Toronto, e a experiência obviamente pesou na vida do jovem canadense, que voltou para casa cabeludo e usando uma
camisa estampada, para choque dos professores.
No passado, Cronenberg experimentou formatos vanguardistas (nos média-metragens
"Stereo" e "Crimes of the Future", de 65 minutos) e filmes
sensacionalistas ("Calafrios" e
"Enraivecida na Fúria do Sexo"), mas nunca se afastou
completamente do cinema
convencional. "Sempre flerto
com Hollywood", diz. "Há muito dinheiro e poder por lá."
Depois de mais de três décadas como cineasta, Cronenberg
enfim conseguiu escapar do rótulo de cineasta de horror. "Eu
me tornei interessante por dez
minutos", ele comenta, com sagacidade. "É basicamente isso."
Talvez devesse celebrar a ocasião com uma tatuagem.
A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.
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