São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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A lei do inconsciente

da Redação

Dois meses após o lançamento de "A Interpretação dos Sonhos", o poeta e romancista Jakob J. David publicou no semanário "Die Nation", de Berlim, um simpático artigo sobre o livro. O próprio Freud, numa carta a Fliess datada de 1º de fevereiro de 1900, o considerou "gentil e perspicaz". David foi um dos primeiros a admitir a importância da sexualidade infantil, uma das bases do pensamento freudiano.

JAKOB JULIUS DAVID

Gostaria de solicitar o tempo e a atenção do leitor para o livro de um neurologista vienense, prof. Sigmund Freud, que foi recentemente publicado com o título "A Interpretação dos Sonhos". De minha parte, achei o livro dos mais incitantes; ele certamente será da maior relevância para qualquer psicólogo. As teses de Freud merecem receber a maior publicidade possível para a reflexão -e talvez para o debate.
Não gostamos de pensar sobre sonhos. Rapidamente os esquecemos. É amplamente reconhecido ser quase impossível lembrar, em algum detalhe, o conteúdo do sonho até mesmo da noite anterior. As imagens do sonho seguem-se umas às outras com incrível rapidez e confusa variedade; uma se insinua ao sonhador antes que outra se tenha dissipado, como se figuras de nuvens ao vento. Fugimos delas porque nos parece que boa parcela de nossa vida está nas mãos de algum poder obscuro, que brinca conosco a seu bel-prazer, que converte a mais pura das almas em pecadora e a aflige com idéias cuja mera lembrança lhe faz o sangue acorrer às faces.
A rapidez das imagens que se sucedem no sonho, tal como a variedade com que pode ser provocada por um único estímulo, é bem exemplificada pelo sonho de A. Maury, que granjeou certa fama na literatura profissional.
O cientista estava de cama. Em sonho, ele vivia sob o reinado do Terror, presenciava cenas medonhas de tortura e assassinato. Por fim ele próprio foi arrastado perante o tribunal. Robespierre, Marat e Fouquier-Tinville interrogam-no e sentenciam-no à morte. Um mar de rostos seguiu seus últimos passos. Ele sobe ao patíbulo. Monsieur Samson amarra-o às pranchas; a lâmina cai; ele sente como sua cabeça é seccionada do corpo e acorda com uma dor lancinante. O espaldar da cama lhe caíra sobre o pescoço. O instante entre o estímulo e o despertar foi o que bastou para desencadear esse vórtice de imagens.
Um sonho pode dever sua forma a milhares de estímulos diversos, mas, segundo Freud, sua essência é sempre a mesma. Talvez não fosse melhor dizer "quase sempre"? Nos sonhos das crianças, esse caráter essencial destaca-se sem nenhum disfarce. As crianças têm desejos simples que podem ser satisfeitos simplesmente, quer na realidade, quer nos sonhos. Mas, mesmo para os adultos, o conteúdo básico de seus sonhos é a realização de seus desejos. Num sonho adulto, porém, o núcleo se esconde sob várias camadas de material; temos de removê-las uma a uma, seguir as múltiplas ramificações do pensamento e sermos rígidos e honestos com nós mesmos ao fazer isso.
Mas o deus do sonho é bastante benévolo e indulgente em todos os sentidos possíveis. Envolto em mistério e simbolismo, ele nos liberta a alma de auto-recriminações que a infestam, latentes, mas opressivas. Um médico cometeu um erro clínico. Um paciente largou o tratamento antes que surtisse efeito. O sonho mostra ambos numa só pessoa. Mas não foi o próprio médico que cometera o erro, mas um amigo. Além disso, o erro era um tanto absurdo. O sonhador pode dizer consigo que algo assim jamais ocorreria a ele. Mesmo em sonhos se percebe o desejo humano de pôr a culpa de nossos defeitos nos outros.
Outro exemplo: Freud é recomendado para a cátedra universitária, mas existe algum obstáculo. Em seu sonho ele vê um amigo que certa vez foi interrogado a respeito de um caso de chantagem. Ele se livrou da suspeita, mas o fato lhe manchou a reputação. O conteúdo do sonho é claro. Sim, meu amigo tem realmente problemas, mas quanto a mim não existe nada. O sonho representa o desejo de obter a posição, um desejo disfarçado, a par da certeza de que o caminho está livre.
Toda a personalidade do sonhador entra em jogo. Sei, por experiência própria, como as humilhações de anos passados retornam de súbito, como podem afligir e atormentar a pessoa muito depois.
Qualquer um que tenha concluído o colégio conhece o pesadelo que é relembrar os exames finais. Vemos a nós mesmos nesses sonhos e contudo somos diferentes, tanto no aspecto físico quanto mental.
A sexualidade, claro, cumpre um papel importante. Por vezes seus símbolos são óbvios, por vezes ela se oculta atrás das mais estranhas máscaras. É esclarecedor ler as explicações de Freud sobre tais imagens oníricas como um açougue fechado ou um atalho escorregadio num jardim escuro.
Os primeiros estímulos da sexualidade ocorrem cedo; desejos sensíveis, vagos e quase imperceptíveis se erguem entre pai e filha, entre mãe e filho. Logo eles se dão a conhecer em arroubos de ciúme. Todos os que têm filhos, ou apenas a simples ocasião de lhes observar a conduta, sabem como carícias trocadas entre adultos podem levar as crianças ao desespero. A menina gosta de colocar-se no lugar da mãe. Quando a mãe está ausente, ela assume o seu papel. Tudo isso pode ser inofensivo, talvez até seja, mas também sugere fortemente a natureza dos desejos de uma criança. Aqueles que se põem em seu caminho, as crianças sempre estão dispostas a desejá-los longe, longe para sempre. Mas só os mortos estão longe para sempre. A criança sabe disso, mas sua imaginação ainda não faz idéia do horror da morte e, em especial, da morte na sua família. Ela deseja a morte de qualquer um que a incomode; os sonhos prontamente lhe acodem para suprir esse desejo.
Freud relata um outro sonho intimamente ligado a isso. Uma jovem vivia com sua irmã e conheceu um homem a quem deu sua afeição. Ela não pôde esquecê-lo, mesmo depois que seus caminhos se apartaram. A vários lugares diferentes ela costumava ir só para vê-lo de longe. Então o filho de sua irmã morreu e, ao pé do caixão, ela encontrou de novo seu inolvidável amor. Ela deixou a casa e, depois de algum tempo, sonhou com a morte de seu outro sobrinho. Desse modo, o desejo de se reunir com seu amor foi transformado e projetado.
Uma das grandes criações poéticas de todos os tempos nasce das escuras sombras da primeira sexualidade entre pais e filhos, na opinião de Freud. Édipo é a tragédia do incesto entre mãe e filho. "Como Édipo, vivemos na ignorância dos desejos que repugnam à moralidade, dos desejos a que a natureza nos forçou e cuja revelação nos faria fechar os olhos para as cenas da infância." Freud encontra uma confirmação de suas idéias nas palavras de Jocasta: "Pois muitos homens se deitaram com suas mães em sonho; quem em seu pensamento não se estende sobre tais presságios, carrega o mais leve dos fardos". (...)
Freud tentou iluminar um campo que, apesar de seu inerente fascínio, até hoje permaneceu obscuro, obscuro na verdadeira acepção da palavra. Ele buscou descobrir lei e unidade em imagens inconsequentes, pueris, com que os sonhos tentam nos ludibriar. Não sou capaz de discutir com ele. Considero ser útil levar sua obra à atenção de psicólogos e profissionais de todos os campos correlatos. Quer se concorde ou discorde de Freud, ele não deixa de nos fazer refletir.


Os textos desta página foram extraídos de "Freud Without Hindsight - Reviews of His Work (1893-1939)", de Norman Kiell (International Universities Press, Madison, Connecticut, EUA).
Tradução de José Marcos Macedo.


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