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A lei do inconsciente
da Redação
Dois meses após o lançamento
de "A Interpretação dos Sonhos",
o poeta e romancista Jakob J. David publicou no semanário "Die
Nation", de Berlim, um simpático
artigo sobre o livro. O próprio
Freud, numa carta a Fliess datada
de 1º de fevereiro de 1900, o considerou "gentil e perspicaz". David
foi um dos primeiros a admitir a
importância da sexualidade infantil, uma das bases do pensamento freudiano.
JAKOB JULIUS DAVID
Gostaria de solicitar o tempo e a
atenção do leitor para o livro de
um neurologista vienense, prof.
Sigmund Freud, que foi recentemente publicado com o título "A
Interpretação dos Sonhos". De
minha parte, achei o livro dos
mais incitantes; ele certamente será da maior relevância para qualquer psicólogo. As teses de Freud
merecem receber a maior publicidade possível para a reflexão -e
talvez para o debate.
Não gostamos de pensar sobre
sonhos. Rapidamente os esquecemos. É amplamente reconhecido
ser quase impossível lembrar, em
algum detalhe, o conteúdo do sonho até mesmo da noite anterior.
As imagens do sonho seguem-se
umas às outras com incrível rapidez e confusa variedade; uma se
insinua ao sonhador antes que
outra se tenha dissipado, como se
figuras de nuvens ao vento. Fugimos delas porque nos parece que
boa parcela de nossa vida está nas
mãos de algum poder obscuro,
que brinca conosco a seu bel-prazer, que converte a mais pura das
almas em pecadora e a aflige com
idéias cuja mera lembrança lhe
faz o sangue acorrer às faces.
A rapidez das imagens que se
sucedem no sonho, tal como a variedade com que pode ser provocada por um único estímulo, é
bem exemplificada pelo sonho de
A. Maury, que granjeou certa fama na literatura profissional.
O cientista estava de cama. Em
sonho, ele vivia sob o reinado do
Terror, presenciava cenas medonhas de tortura e assassinato. Por
fim ele próprio foi arrastado perante o tribunal. Robespierre, Marat e Fouquier-Tinville interrogam-no e sentenciam-no à morte.
Um mar de rostos seguiu seus últimos passos. Ele sobe ao patíbulo. Monsieur Samson amarra-o às
pranchas; a lâmina cai; ele sente
como sua cabeça é seccionada do
corpo e acorda com uma dor lancinante. O espaldar da cama lhe
caíra sobre o pescoço. O instante
entre o estímulo e o despertar foi
o que bastou para desencadear esse vórtice de imagens.
Um sonho pode dever sua forma a milhares de estímulos diversos, mas, segundo Freud, sua essência é sempre a mesma. Talvez
não fosse melhor dizer "quase
sempre"? Nos sonhos das crianças, esse caráter essencial destaca-se sem nenhum disfarce. As crianças têm desejos simples que podem ser satisfeitos simplesmente,
quer na realidade, quer nos sonhos. Mas, mesmo para os adultos, o conteúdo básico de seus sonhos é a realização de seus desejos. Num sonho adulto, porém, o
núcleo se esconde sob várias camadas de material; temos de removê-las uma a uma, seguir as
múltiplas ramificações do pensamento e sermos rígidos e honestos com nós mesmos ao fazer isso.
Mas o deus do sonho é bastante
benévolo e indulgente em todos
os sentidos possíveis. Envolto em
mistério e simbolismo, ele nos liberta a alma de auto-recriminações que a infestam, latentes, mas
opressivas. Um médico cometeu
um erro clínico. Um paciente largou o tratamento antes que surtisse efeito. O sonho mostra ambos numa só pessoa. Mas não foi o
próprio médico que cometera o
erro, mas um amigo. Além disso,
o erro era um tanto absurdo. O
sonhador pode dizer consigo que
algo assim jamais ocorreria a ele.
Mesmo em sonhos se percebe o
desejo humano de pôr a culpa de
nossos defeitos nos outros.
Outro exemplo: Freud é recomendado para a cátedra universitária, mas existe algum obstáculo.
Em seu sonho ele vê um amigo
que certa vez foi interrogado a
respeito de um caso de chantagem. Ele se livrou da suspeita, mas
o fato lhe manchou a reputação. O
conteúdo do sonho é claro. Sim,
meu amigo tem realmente problemas, mas quanto a mim não
existe nada. O sonho representa o
desejo de obter a posição, um desejo disfarçado, a par da certeza
de que o caminho está livre.
Toda a personalidade do sonhador entra em jogo. Sei, por experiência própria, como as humilhações de anos passados retornam de súbito, como podem afligir e atormentar a pessoa muito
depois.
Qualquer um que tenha concluído o colégio conhece o pesadelo que é relembrar os exames finais. Vemos a nós mesmos nesses
sonhos e contudo somos diferentes, tanto no aspecto físico quanto
mental.
A sexualidade, claro, cumpre
um papel importante. Por vezes
seus símbolos são óbvios, por vezes ela se oculta atrás das mais estranhas máscaras. É esclarecedor
ler as explicações de Freud sobre
tais imagens oníricas como um
açougue fechado ou um atalho escorregadio num jardim escuro.
Os primeiros estímulos da sexualidade ocorrem cedo; desejos
sensíveis, vagos e quase imperceptíveis se erguem entre pai e filha, entre mãe e filho. Logo eles se
dão a conhecer em arroubos de
ciúme. Todos os que têm filhos,
ou apenas a simples ocasião de
lhes observar a conduta, sabem
como carícias trocadas entre
adultos podem levar as crianças
ao desespero. A menina gosta de
colocar-se no lugar da mãe.
Quando a mãe está ausente, ela
assume o seu papel. Tudo isso pode ser inofensivo, talvez até seja,
mas também sugere fortemente a
natureza dos desejos de uma
criança. Aqueles que se põem em
seu caminho, as crianças sempre
estão dispostas a desejá-los longe,
longe para sempre. Mas só os
mortos estão longe para sempre.
A criança sabe disso, mas sua
imaginação ainda não faz idéia do
horror da morte e, em especial, da
morte na sua família. Ela deseja a
morte de qualquer um que a incomode; os sonhos prontamente lhe
acodem para suprir esse desejo.
Freud relata um outro sonho intimamente ligado a isso. Uma jovem vivia com sua irmã e conheceu um homem a quem deu sua
afeição. Ela não pôde esquecê-lo,
mesmo depois que seus caminhos
se apartaram. A vários lugares diferentes ela costumava ir só para
vê-lo de longe. Então o filho de
sua irmã morreu e, ao pé do caixão, ela encontrou de novo seu
inolvidável amor. Ela deixou a casa e, depois de algum tempo, sonhou com a morte de seu outro
sobrinho. Desse modo, o desejo
de se reunir com seu amor foi
transformado e projetado.
Uma das grandes criações poéticas de todos os tempos nasce das
escuras sombras da primeira sexualidade entre pais e filhos, na
opinião de Freud. Édipo é a tragédia do incesto entre mãe e filho.
"Como Édipo, vivemos na ignorância dos desejos que repugnam
à moralidade, dos desejos a que a
natureza nos forçou e cuja revelação nos faria fechar os olhos para
as cenas da infância." Freud encontra uma confirmação de suas
idéias nas palavras de Jocasta:
"Pois muitos homens se deitaram
com suas mães em sonho; quem
em seu pensamento não se estende sobre tais presságios, carrega o
mais leve dos fardos". (...)
Freud tentou iluminar um campo que, apesar de seu inerente fascínio, até hoje permaneceu obscuro, obscuro na verdadeira acepção da palavra. Ele buscou descobrir lei e unidade em imagens inconsequentes, pueris, com que os
sonhos tentam nos ludibriar. Não
sou capaz de discutir com ele.
Considero ser útil levar sua obra à
atenção de psicólogos e profissionais de todos os campos correlatos. Quer se concorde ou discorde
de Freud, ele não deixa de nos fazer refletir.
Os textos desta página foram extraídos de
"Freud Without Hindsight - Reviews of His
Work (1893-1939)", de Norman Kiell (International Universities Press, Madison, Connecticut, EUA).
Tradução de José Marcos Macedo.
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