São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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+ inédito

A psicanalista Melanie Klein desvenda a relação tensa entre a incapacidade de amar e o medo da morte no filme mais influente da história do cinema

O maníaco Kane

MELANIE KLEIN

O filme começa com a morte do Cidadão Kane. Sua história de vida vista sob dois aspectos -o oficial, que aparece no jornal, descreve os acontecimentos importantes em sua vida. Desse ponto de vista, ele foi um homem muito bem-sucedido, apesar de suas ambições políticas nunca terem sido completamente satisfeitas. Extremamente rico, um dos homens mais ricos do mundo, especialmente poderoso por suas ligações com a imprensa, grande envolvimento com jornais etc.
A história de dois casamentos revela fracassos. Entretanto traça o retrato de uma vida importante, rica e bem-sucedida. A segunda versão da história de vida é elaborada de forma muito inteligente por meio do desejo do editor de descobrir o significado da palavra "rosebud" (botão de rosa) que Kane pronunciou ao morrer. O editor quer descobrir que tipo de pessoa ele era.
Várias informações coletadas a partir de um diário guardado pelo curador de Kane, de sua segunda mulher e de seus amigos. Aprendemos algo a respeito da vida real de Kane. Ninguém sabe nada sobre "rosebud", somente o mordomo, que estava com ele quando morreu. Ele dá informações.

Incapacidade para amar
Interessante e curioso esse repórter achar que toda a pesquisa não valia a pena, pois não significa nada. Entretanto essa não parece ser a opinião do autor (cineasta), pois de vários modos parece conhecer bastante os processos inconscientes subjacentes que influenciaram o desenvolvimento e a vida de Kane. É obvio para nós que a última palavra de Kane, ao morrer, refere-se ao seio. É a última coisa que ele leva consigo como preciosidade e que, como o filme mostra, deixa cair ao morrer enquanto pronuncia a palavra "rosebud".
Kane não é um homem doente no sentido clínico; não há colapso mental. Até o fim da vida ele mantém sua capacidade de trabalho, e, apesar de acabar como um homem solitário, não se poderia chamá-lo, realmente, de doente. É verdade que ambos os casamentos são fracassos e que nunca atinge os altos objetivos políticos que estabelece para si. Esse, entretanto, é o ponto que eu quero discutir: sentimentos depressivos encobertos e mantidos à margem por mecanismos maníacos, no que se poderia chamar de uma pessoa normal.
Como eles influenciam o curso de sua vida? Em sua juventude Kane tem fortes sentimentos e propósitos sociais; os não-privilegiados e os pobres devem ser ajudados; ele irá devotar seus poderes, seu dinheiro, suas capacidades para esse propósito. Ao casar-se, parece preparar-se para uma vida de casado feliz -sua mulher é atraente, ama-o, eles têm uma criança encantadora. Por razões desconhecidas para Kane e incompreensíveis para sua mulher, ele vai afastar-se mais e mais. Acontece então seu caso extraconjugal.
Nesse momento, parece mais uma vez que sentimentos de amor irão predominar, mas, como se queixa mais tarde sua segunda mulher, na realidade Kane estava somente interessado na voz dela (o que não é inteiramente verdadeiro), mas que parece tornar-se o fator predominante. Kane controla Susan e, por meio dela, vai controlar multidões. De acordo com ele, vai fazê-las pensar do jeito que ele quer. Isso sugere que o fato de Susan ser pobre e precisar de proteção mobiliza nele sentimentos de tipo amoroso, possivelmente, e também o fato de a mãe de Susan não permitir que ela se torne cantora tem uma profunda ressonância nele, pois sua própria mãe, de modo tão voluntarioso, definiu a vida dele longe dela e do pai, com o propósito de que ele se tornasse rico e poderoso.
Mas, por mais que lute por amar Susan -e está ligado a ela por laços muito fortes-, ele não tem a capacidade de amar. Força Susan a continuar a carreira que, devido a sua falta de talento, se torna um pesadelo para ela. Tentativa de suicídio de Susan. Kane cede e passa a devotar-se aos planos grandiosos de construir o maior e mais luxuoso castelo que qualquer cidadão jamais teve; o maior zoológico particular desde os tempos de Noé -100 mil árvores, 20 mil toneladas de mármore foram usadas. Sua coleção de estátuas, que se torna mais e mais maníaca à medida que o tempo passa.
Nesse castelo mantém a pobre Susan, que, apesar de ter desejado um castelo, está infeliz e solitária, embora seja uma excelente anfitriã. Ela não se dá conta de que, embora pareça pensar que sim, na verdade não está buscando entretenimento, prazeres de Nova York e assim por diante, mas está faminta de amor. Ela subitamente reconhece isso por meio de uma expressão usada por ele que mostra a ela que não há nada nele a não ser egoísmo; que ele não tem nenhum amor para dar e que ele faz com que as pessoas se liguem a ele só para que elas o amem.

Túmulo da mãe
As conexões de amor pelos objetos internos podem ser egoísmo em relação aos objetos externos, se prevalecerem os mecanismos maníacos de controle etc. Susan abandona Kane. A reação à partida dela é o "rosebud". O único objeto que ele preserva do quarto dela, que ele apanha, de modo obviamente inconsciente das razões pelas quais o está fazendo, das motivações que o fizeram escolhê-lo e guardá-lo.
As únicas referências à mãe dele ocorrem quando ele vem a conhecer e gostar de Susan: ele teria feito uma viagem para visitar o túmulo de sua mãe e o lugar onde ela morava e onde ele morou em sua infância. Alguém no filme, penso que um de seus dois amigos, afirma que ele (Kane) ama a própria mãe.
Cumpre considerar as razões do seu "egoísmo". A incapacidade dele de vincular-se à mulher amada em razão de seu medo de perder. E também a vida de família de seus pais, que ficou destruída quando mandaram-no embora. O pai dele não podia cuidar de um filho. Kane destrói o relacionamento de seu filho quando permite que sua mulher se divorcie dele. Novamente aparece o egoísmo com relação às pessoas de fora, enquanto o medo de morte interna do "rosebud" nele mesmo aumenta à medida que progride a sua vida.
Há um interjogo entre a sua incapacidade para amar as pessoas e para mantê-las e o medo da morte dentro dele e das pessoas amadas dentro dele. Sua coleção de estátuas, predominantemente de mulheres, aumentando como um expediente para revitalizar mais e cada vez mais, assumindo a natureza de objetos inanimados e artificiais.
Até mesmo "rosebud" é um objeto inanimado -um globo de vidro contendo um botão de rosa artificial. Quanto maior a incapacidade de manter as coisas vivas dentro dele e a incapacidade para um contato real com pessoas mais aumenta, tanto mais forte fica, a sua tendência para controlar e ter poder -que são os mecanismos maníacos [ao discorrer sobre o crescente medo da morte das pessoas amadas dentro dele: características -enorme hall no qual a pobre Susan se entretém com seus quebra-cabeças, e Kane sentado do outro lado, conversa com ela a uma distância de onde mal conseguem escutar-se nitidamente. A comunicação entre ele e seus objetos é interrompida -o hall dá a impressão de um mausoléu. Nesse momento, a ruptura com Susan acontece, provocada por ele, pois ele não consegue mais sustentar a luta].
Há longo tempo estão esquecidos os desejos de melhorar a vida das pessoas pobres. Essas tendências também logo se transformaram em maneiras de controlá-los e de usar esses propósitos para ganhar poder. É patético que, no momento em que conhece Susan, o quanto a simplicidade, a pobreza, a juventude dela o atraíram e o quanto ele desejou e lutou para conseguir amá-la.
Entretanto logo teve que transformá-la em um objeto artificial, uma pessoa idealizada, agarrando-se a talentos seus que de fato ela não possuía -um meio de ganhar poder. Interessante também a relação com os homens e as mudanças em sua atitude rebelde. Suas rebeldias nas faculdades associam-se com os pais terem-no forçado a cursá-las e terem desistido dele com o objetivo de torná-lo rico e poderoso. Então essa rebeldia, em grande medida dirigida contra seu tutor conservador, materialista e rico, se volta contra o capitalismo e é usada para a proteção dos pobres; entretanto isso ele não consegue sustentar.
A atração e o amor por sua juventude na condição de criança pobre iriam acarretar a manutenção de seu amor pelos pais vivos. Porém ódio e ressentimento parecem impedir isso. Ele também parece realizar os desejos de sua mãe ao seguir o tipo de vida que ela parecia ter planejado para ele. Isso, entretanto, só é possível por meio da intensificação dos mecanismos maníacos e divorciando-se cada vez mais dos sentimentos de amor e do desejo de proteger e ajudar os outros etc. Naturalmente, o fato de ele não poder tocar a mulher que ele deseja amar se torna uma prova a mais do fracasso no amor e da capacidade de manter sua mãe viva em sua mente e reconciliar-se com os seus pais.
Uma vida familiar feliz teria significado renovar o passado em um sentido positivo, revitalizar os pais etc. Quanto mais fracassa a sua capacidade de amar, tanto mais se intensificam os mecanismos maníacos; controle dos objetos internos, pois se tornaram perigosos e feridos, respectivamente, por meio de sua hostilidade e não podem ser mantidos vivos. A necessidade de ser amado "em seus próprios termos" como expediente para se reassegurar contra o seu sentimento de insignificância, porque a sua culpa diz a ele que ele é a causa da morte dentro dele.
Entretanto o anseio pelo botão de rosa ("rosebud") pelo seio bom -carregado sempre em seu bolso- mostra o que ele desejava preservar dentro de si. Se não tivesse sido tão talentoso e se não tivesse encontrado os meios de expressar em suas atividades e em sua vida real sua tendência a controlar -e, naquelas atividades, também tivesse conseguido empregar tendências à reparação, embora parecessem obscurecidas por seu desejo de poder- , se não tivesse sido possível fazer isso, será que não teria ficado doente, possivelmente uma vítima de estados maníaco-depressivos? Alguém sugere que ele conseguiu tanta coisa na vida e sempre perdia. Talvez seja o botão de rosa ("rosebud") algo que ele sempre quis e não conseguiu obter ou talvez algo que ele teve e novamente perdeu.


O texto acima está incluído no livro "Reading Melanie Klein", de Laura Mulvey.
Tradução de Ana Maria M.C. Fernandes e Elisa Maria U. Cintra.


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