São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997.



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VIAJANTES HISTÓRICOS
O Brasil dos cientistas



No século 19, país atraiu
interesse de naturalistas como Darwin e Langsdorff RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

O Brasil se tornou independente, de fato, em 1808, e esse foi o começo de uma enxurrada de relatos de viajantes estrangeiros sobre o país até então hermético. Ingleses, franceses e outros descreveram o país em grande detalhe e continuaram a tradição que até hoje incomoda os habitantes da terra: dar uma opinião honesta sobre ela. Foi a origem do "eu posso falar mal do Brasil porque sou brasileiro"; já os "gringos" não teriam esse direito. Essa atitude recentemente foi demonstrada, por exemplo, com a reação adversa de presidentes àquilo que foi publicado na imprensa estrangeira, diminuindo a própria dignidade do cargo.
Eram, e continuam sendo, dois, os tipos básicos de visitantes. De um lado, os naturalistas, empenhados em descrever a natureza quase virgem de observação científica, mas também externando opiniões sobre a sociedade local. E os outros estrangeiros, como comerciantes ou navegadores (hoje são os "turistas"), que tinham menos interesse em botânica ou anatomia, mas também sabiam descrever em detalhe o que viam em torno.
Em 1808 o Brasil passou a ser o centro do império português, já que a corte de Lisboa tinha sido escorraçada pelo avanço do exército napoleônico. Com a transformação do Rio de Janeiro em uma nova Lisboa tropical, tudo o que era proibido passou a ser lei: imprensa, ciência, comércio com as "nações amigas", notadamente a mais amiga, o Reino Unido, aliado de Portugal desde o século 14 e a principal potência marítima, comercial e industrial do planeta. Foram os britânicos que comboiaram o príncipe regente, futuro Dom João 6º, ao Rio de Janeiro, e oficiais da Royal Navy estão entre os primeiros a escreverem sobre o paraíso tropical agora aberto a eles.
Havia decerto interesses mais pragmáticos para vasculhar o Brasil, mas se aventurar por rios, montanhas ou desertos desconhecidos por mera curiosidade era o grande atrativo da ciência do século 19. Coincidiu com a criação de um mercado literário de livros de viagens e aventuras.
Irônica e tragicamente, uma brilhante exceção à tardia chegada da ciência moderna no Brasil luso foi a última grande expedição colonial, obra do baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) no final do século 18. Durante nove anos ele explorou a região amazônica, mas o resultado de suas pesquisas demorou a ser divulgado. Os espécimes e desenhos estavam em Lisboa quando os franceses tomaram o país e acabaram saqueados pelo naturalista Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), que tinha no currículo ter acompanhado Napoleão na expedição que deu origem à moderna egiptologia.
Outro francês, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), compensou com folga os danos de seu conterrâneo com o mesmo sobrenome. Pesquisando no Brasil de 1816 a 1822, ele colecionou um herbário de 30 mil exemplares composto de 7 mil espécies diferentes de plantas.
O fascínio pela natureza tropical foi em grande parte criado pelo trabalho do barão alemão Alexander von Humboldt, que se tornou um símbolo dos naturalistas que visitaram a América Latina hispânica. Foi ele quem mostrou qual era a conexão entre os rios Orinoco e Amazonas. Mas teria sido preso se tivesse visitado o Brasil português fechado a pesquisadores estrangeiros.
Havia na época uma ordem de prisão portuguesa expedida contra Humboldt, lembra outro viajante-escritor, o inglês Richard Burton (1821-1890), uma lenda entre os exploradores do século 19 (procurou as nascentes do Nilo, visitou a proibida Meca, traduziu "Os Lusíadas" para o inglês etc.).
Burton escreveu sobre suas viagens no interior do Brasil. Esses relatos foram publicados aqui como "Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho" e "Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico", em co-edição da Livraria Itatiaia Editora e Editora da Universidade de São Paulo (cuja coleção "Reconquista do Brasil" publicou dezenas de raros e fundamentais livros destes viajantes estrangeiros). Esse corpo de literatura brasiliana era usado por novos viajantes, realimentando o gênero. Burton, por exemplo, gostou muito do que Saint-Hilaire (Auguste) escreveu.
"Como todos os países que lutam para serem incluídos entre os países do mundo que têm confiança em si mesmos, o Brasil tem de se haver com informações tendenciosas de uma população estrangeira flutuante, indiferente ao bem-estar da terra que habita temporariamente, e cujas apreciações são influenciadas, principalmente, por interesses privados", escreveu outro viajante importante, Louis Agassiz, citado por Burton em "Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho".
O americano de origem suíça Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873) chefiou uma expedição científica em 1865 -mesmo ano em que começou a Guerra do Paraguai, que Burton depois visitaria- patrocinada pelo imperador Dom Pedro 2º. Seu livro apareceu em 1868 em Boston, mas só foi traduzido em 1938 no Brasil. Agassiz foi um dos grandes nomes da ciência do século 19. Mas um dos problemas em sua biografia, segundo olhos modernos, foi não ter levado a sério a teoria da evolução dos seres vivos de acordo com o que foi proposto por outro visitante do império, o britânico Charles Robert Darwin (1809-1882) -sem dúvida o mais importante cientista do século passado.
Darwin não gostou de ser alvo de baciadas d'água do populacho durante o Carnaval na Bahia. "Nós achamos que era muito difícil manter a dignidade andando pelas ruas", disse ele do carnaval baiano. Ele adorou a Mata Atlântica, e passear por ela era um "deleite" para quem só conhecia as florestas insossas do mundo temperado.
Darwin, assim como quase todos os "gringos", ficou escandalizado com a corrupção e a escravidão. "Todo mundo aqui pode ser subornado", disse ele do Rio de Janeiro. Ele previu que a escravidão atrasaria o desenvolvimento do país. As críticas dos estrangeiros à "indolência" brasileira têm de ser entendidas nesse contexto. Indolentes eram os brancos, pois eram os negros que faziam todo o trabalho. O Império do Brasil era sustentado pela energia muscular dos negros.
A lista de naturalistas europeus e americanos começou a ficar longa: Henry Walter Bates, Alfred Russel Wallace, a dupla Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich von Martius, o barão Langsdorff etc.
A grande obra de Martius (1794-1868), "Flora Brasiliensis", começou a ser publicada em 1840 e só foi terminada em 1906, consistindo em 40 volumes descrevendo 20 mil espécies vegetais.
Ao mesmo tempo que Darwin, seu compatriota Alfred Russel Wallace (1823-1913) teve a mesma idéia: o motor da evolução é uma espécie de "seleção natural". E Wallace tinha um bom currículo de naturalista, por exemplo exposto no livro "Viagens pelos Rios Amazonas e Negro".
Darwin chegou primeiro à teoria. Já tinha parte dela por escrito. Levou um susto quando Wallace lhe comunicou a mesma idéia básica. Foi salvo por amigos que insistiram para que ele e Wallace comunicassem ao mundo suas idéias conjuntamente. Com o sucesso de "A Origem das Espécies", a teoria entrou na história como darwinismo, e não "wallacesismo".
Assim como hoje, alguns "gringos" se apaixonaram pelo país. O naturalista Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852) viveu a serviço do império russo e morreu vítima de doença tropical por causa da paixão que tinha pelo Império do Brasil.
Langsdorff, em uma longa expedição entre 1822 e 1836, ajudou a retratar o país graças aos artistas de sua comitiva, Johann Moritz Rugendas (1802-1858), Aimé-Adrien Taunay (1803-1828) e Hércules-Romuald Florence (1804-1879). Seus diários finalmente estão sendo publicados, em uma cuidada edição, neste ano (sim, 1997!), pela Associação Internacional de Estudos Langsdorff e Fiocruz (Instituto Oswaldo Cruz). Dois volumes já estão disponíveis, relatando suas passagens pelo Rio, Minas Gerais e São Paulo.
Até presidentes americanos quiseram devassar a hinterlândia brasileira. Theodore Roosevelt e o então coronel brasileiro Cândido Mariano Rondon fizeram milhares de quilômetros de mapas na expedição em 1914. Graças a isso, hoje a Amazônia tem um rio Roosevelt e um Estado de Rondônia.



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