São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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+ ensaio

O autor de "Farenheit 451" imagina o que aconteceria com as grandes obras se fossem reescritas a partir das recordações de cada um

A transfiguração da biblioteca pessoal

Ray Bradbury
especial para o "Le Monde"

Há 50 anos, eu publicava na revista "The Nation" um artigo no qual explicava por que gostava tanto de escrever ficção científica. Algumas semanas mais tarde, chegou uma carta, assinada, com uma caligrafia aracniana, "B. Berenson, I Tatti, Settignano, Italia". Podia ser Bernard Berenson, pensei, o grande historiador da arte do Renascimento? Impossível. A carta dizia: "Caro sr. Bradbury, É a primeira vez em 89 anos que pego a caneta para expressar minha admiração a um autor. O artigo em que descreve as razões que o levam a escrever seu gênero de ficção é tão original e tão diferente da habitual falta de graça da maquinaria literária que não pude deixar de escrever-lhe. Quando vier à Itália, venha me visitar. Bernard Berenson." Foi a partir dessa carta que se formou uma amizade que me levou a dar a ele um exemplar de meu romance "Farenheit 451", que acabava de ser publicado. Nesse romance, os Homens-Livros que vivem nas colinas memorizam todos os grandes livros, ocultando-os, por assim dizer, entre seus ouvidos. Berenson ficou tão encantado que um dia, em I Tatti, me sugeriu: "Por que não escrever uma continuação a "Farenheit 451" na qual todos os grandes livros memorizados pelos homens das colinas seriam finalmente impressos tais como teriam sido retidos? Que aconteceria então? Não acha que todos seriam infielmente restituídos? Que nenhum reapareceria em suas vestes de origem? Não seriam mais longos, mais curtos, mais toscos, mais prolixos, desfigurados ou embelezados? Em vez de anjos em seus nichos, não veríamos gárgulas ultrapassando o telhado?". A sugestão de Berenson inflamou de tal forma minha imaginação que me pus a tomar notas, dizendo-me: "Oh meu Deus, quisera ser o gênio que conhecesse suficientemente algumas das maiores obras-primas da humanidade para poder reescrevê-las, como se eu fosse meus Homens-Livros do futuro, tentando rememorar todos os detalhes dessa extraordinária literatura!". Nunca fiz isso. Mas, relendo minhas anotações e tornando a pensar em Berenson 50 anos depois, pensei: por que não retomar sua idéia e encorajar meus leitores a colocá-la em prática? Que diria de escolher seu escritor favorito? Kipling, Dickens, Wilde, Shaw, Poe. Esses autores, registrados na memória e voltando à vida dentro de 30 anos, como suportariam, sem tê-la desejado, a mudança? Poderia a Casa de Usher, depois de sua queda, erguer-se novamente? Poderia Gatsby, morto a tiros de revólver, continuar nadando em sua piscina? Veríamos Cathy, em "O Morro dos Ventos Uivantes", surgir da neve ao ouvir o grito de Heathcliff? Tomem "Guerra e Paz". Com um bom século de ditaduras totalitárias atrás de nós, os conceitos de Tolstói, infielmente rememorados, não seriam politicamente reconfigurados, o que resolveria de modo diferente os diversos conflitos da sociedade russa?

Memórias de uma feminista
As graciosas jovens de Jane Austen, uma vez regurgitadas pela memória de uma feminista, não seriam substituídas, no tabuleiro social do século 19, por mulheres ambiciosas, conquistadoras e arrogantes? "As Vinhas da Ira" poderiam perfeitamente voltar, não sob a forma de uma calma constatação social, mas de uma revolta socialista organizada a bordo de um velho Ford T na Rota 66. Suponha que a tarefa de memorizar "A Morte em Veneza" caiba a um homossexual mais assumido; não é possível que ele imagine, 30 anos mais tarde, o belo Tadzio saindo do mar e se precipitando nos braços de Aschenbach, que lhe estenderia uma toalha para secá-lo em meio a gargalhadas e que essa alegria freudiana é que derrubaria o velho autor? Considere agora o caso de um machão disléxico que eliminasse uma em cada três palavras da paisagem parisiense de Marcel Proust, reatando com o passado de forma tão estúpida que o simplificaria como um quadro de Toulouse-Lautrec, apagando todos os devaneios do escritor. E "Moby Dick"? Quando se tratasse de rememorá-lo por inteiro, não haveria a tentação de lançar ao mar Fedallah, o pársi, esse enfadonho obstáculo? O que permitiria a Ahab, em seguida, ser jogado borda fora pela baleia branca. Ao chegar a esse ponto, poderia acontecer de evocar mais o filme que o livro, o capitão Ahab atado sobre a baleia branca e fazendo sinal, com a mão morta, à sua tripulação para segui-lo. Nesse caso, o livro seria esquecido e o filme relembrado. Que fantástico jogo literário!

Esfolados ou embelezados
Faça a lista de seus dez romances preferidos e, sem esquecer os detalhes, reconstitua o esboço de sua intriga; a seguir, torne a abri-los para descobrir o quanto esfolaram, embelezaram, mutilaram esses livros admiráveis. Que passatempo para todos nós, nos dias vindouros!
E, entre os volumes perdidos na floresta dos Homens-Livros, quais seriam os mais fáceis de recuperar? Não as grandes obras-primas, elas são complexas demais. Mas James Bond, facilmente memorizável, poderia recobrar a liberdade, um pouco modificado, é verdade, mas não realmente afetado pela passagem do tempo.
Os romances policiais em sua maior parte emergiriam intactos, assim como os grandes poemas. "Os Pomos de Ouro do Sol", de Yeats, "A Praia de Dôver", de Matthew Arnold, as quadras de Emily Dickinson ou os poemas da neve de Robert Frost. Eles atravessariam o tempo sem novidade, conservando-se, frescos e ágeis, na tradição oral dos contadores de outrora.
O mesmo em relação aos livros infantis. Dificilmente "O Mágico de Oz" ou "Alice no País das Maravilhas" são desfigurados por uma memória enfraquecida.
As grandes peças de teatro, "Hamlet", "Rei Lear", "Otelo" e "Ricardo 3º", poderiam se arriscar a algumas deformações, mas a admirável língua continuaria a soar bem alto para além dos séculos.
E o negro Jim, de Mark Twain, que desce o Mississippi na jangada em companhia de Huckleberry Finn, poderia perfeitamente conservar seu nome a despeito dos clamores dos críticos politicamente corretos que o interpelam das margens do rio. Que jogo apaixonante! Lamento não ter escrito sobre esse assunto há 50 anos, quando Berenson o sugeriu.
Descubra sua felicidade, faça a lista de seus livros favoritos e veja se sua longa memória umbilical foi secionada ou se você ainda está maravilhosamente ligado às coisas que amava nas bibliotecas de muito tempo atrás.


Ray Bradbury é escritor de ficção científica, autor de, entre outros, "Farenheit 451" (ed. Globo).
Tradução de Paulo Neves.


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