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Ponto de Fuga
O discurso do papa
"As mulheres
não são
escravas de
seu corpo",
continuou
Sisto 6º;
"é melhor
que não se
crie vida,
se ela não é
desejada,
se não pode
ter alimento
e abrigo
decentes"
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O papa Sisto 6º deu uma
topada feia no dedão do
pé, na manhã de sua
partida para a América Latina.
Estava de sandália, a caminho
da prece matinal na capela subterrânea do Vaticano quando,
galgando os quatro degraus de
pedra (como fizera mil vezes
antes), bateu o dedão direito no
último. (...) Sisto tentou sorrir,
mas a dor era forte."
Assim começa "Sisto 6º, o
Papa da Chinelinha Vermelha", conto de Patricia Highsmith que a Companhia das Letras publicou há 20 anos, em
tradução de Beth Vieira. Integra o livro "Catástrofes (Nem
Tanto) Naturais".
O papa fictício, Sisto 6º, sente a dor aumentar durante o
trajeto. Seu médico nada pode
contra ela. Diante da multidão,
na capital mexicana, o sofrimento leva-o a abandonar o
discurso oficial.
Então, improvisa.
Dirigindo-se à multidão, proclama que os ricos são impiedosos, que os salários não bastam para a dignidade humana
ou para a comida da família.
Prossegue: "E vocês, mulheres, vocês, mães, não é seu dever nem é o destino que Deus
lhes prescreveu ficar presas
eternamente a dar à luz, como
um asno de olhos vendados
preso à roda do moinho".
O papa, num gesto violento,
bate com seu cajado no artelho
dolorido. O sangue embebe seu
chinelo branco. Sisto 6º o exibe
para multidão, dizendo: "Meu
sangue. Eu sou humano como
vocês, e mortal".
As televisões do mundo inteiro retransmitem sem parar a
espantosa fala. Um político italiano, conservador, atribui tudo ao delírio provocado por
uma insolação. Nos países mais
diversos, pobres gritam: viva o
papa!
Luz
Depois desse discurso, aumentam revoltas e repressões
no mundo. Aconselham ao papa interromper a viagem, porque se tornara perigosa. Mas
ele insiste e prossegue.
Enquanto isso, o chinelo vermelho virara um símbolo. Os
fiéis usam miniaturas dele em
correntinhas e braceletes. Indo
para a Colômbia, Sisto 6º sabe
que muitos camponeses plantam coca para a indústria da cocaína; sem isso não teriam dinheiro para viver. Sabe da miserável situação feminina.
"As mulheres não são escravas, e sim parceiras dos homens! -gritou ele.
De novo a multidão berrou
sua concordância, e o papa sabia que não precisava proferir
as palavras "aborto" e "controle
da natalidade" para que entendessem. As mulheres não são
escravas de seu corpo, tampouco, continuou. É melhor que
não se crie vida, se ela não é desejada, se não pode ter alimento e abrigo decentes."
Fim
Sisto 6º termina assassinado
numa fazenda de coca, em que
o patrão mandava atirar nos
trabalhadores. Suas palavras,
que a topada provocara fazendo-o sentir-se humano e frágil,
repercutem em todos os lugares. "Uma lenta revolução estava varrendo o mundo", escreve
Patricia Highsmith.
Em seguida, a Igreja Católica
põe panos quentes, tenta recuar, minimiza o alcance do
episódio. O "Osservatore Romano" escreve que "a onda da
chinela vermelha" morrerá em
breve. Mas não morre; vira um
símbolo de esperança. Aos poucos, muita coisa foi mudando
para melhor.
Tempo
Patricia Highsmith, quando
escreveu seu conto, não podia
prever, e ninguém o podia então, a impressionante vaga dos
mais diversos fundamentalismos religiosos que assola hoje o
planeta.
Sua história permanece, portanto, como pura ficção e como
grande literatura. O resumo
apresentado aqui é insignificante diante do original, mas
talvez sirva como convite para a
leitura dessa lúcida e formidável escritora.
jorgecoli@uol.com.br
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