São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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Ponto de Fuga

O discurso do papa


"As mulheres não são escravas de seu corpo", continuou Sisto 6º; "é melhor que não se crie vida, se ela não é desejada, se não pode ter alimento e abrigo decentes"


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O papa Sisto 6º deu uma topada feia no dedão do pé, na manhã de sua partida para a América Latina. Estava de sandália, a caminho da prece matinal na capela subterrânea do Vaticano quando, galgando os quatro degraus de pedra (como fizera mil vezes antes), bateu o dedão direito no último. (...) Sisto tentou sorrir, mas a dor era forte."
Assim começa "Sisto 6º, o Papa da Chinelinha Vermelha", conto de Patricia Highsmith que a Companhia das Letras publicou há 20 anos, em tradução de Beth Vieira. Integra o livro "Catástrofes (Nem Tanto) Naturais". O papa fictício, Sisto 6º, sente a dor aumentar durante o trajeto. Seu médico nada pode contra ela. Diante da multidão, na capital mexicana, o sofrimento leva-o a abandonar o discurso oficial.
Então, improvisa. Dirigindo-se à multidão, proclama que os ricos são impiedosos, que os salários não bastam para a dignidade humana ou para a comida da família. Prossegue: "E vocês, mulheres, vocês, mães, não é seu dever nem é o destino que Deus lhes prescreveu ficar presas eternamente a dar à luz, como um asno de olhos vendados preso à roda do moinho".
O papa, num gesto violento, bate com seu cajado no artelho dolorido. O sangue embebe seu chinelo branco. Sisto 6º o exibe para multidão, dizendo: "Meu sangue. Eu sou humano como vocês, e mortal".
As televisões do mundo inteiro retransmitem sem parar a espantosa fala. Um político italiano, conservador, atribui tudo ao delírio provocado por uma insolação. Nos países mais diversos, pobres gritam: viva o papa!

Luz
Depois desse discurso, aumentam revoltas e repressões no mundo. Aconselham ao papa interromper a viagem, porque se tornara perigosa. Mas ele insiste e prossegue. Enquanto isso, o chinelo vermelho virara um símbolo. Os fiéis usam miniaturas dele em correntinhas e braceletes. Indo para a Colômbia, Sisto 6º sabe que muitos camponeses plantam coca para a indústria da cocaína; sem isso não teriam dinheiro para viver. Sabe da miserável situação feminina.
"As mulheres não são escravas, e sim parceiras dos homens! -gritou ele. De novo a multidão berrou sua concordância, e o papa sabia que não precisava proferir as palavras "aborto" e "controle da natalidade" para que entendessem. As mulheres não são escravas de seu corpo, tampouco, continuou. É melhor que não se crie vida, se ela não é desejada, se não pode ter alimento e abrigo decentes."

Fim
Sisto 6º termina assassinado numa fazenda de coca, em que o patrão mandava atirar nos trabalhadores. Suas palavras, que a topada provocara fazendo-o sentir-se humano e frágil, repercutem em todos os lugares. "Uma lenta revolução estava varrendo o mundo", escreve Patricia Highsmith.
Em seguida, a Igreja Católica põe panos quentes, tenta recuar, minimiza o alcance do episódio. O "Osservatore Romano" escreve que "a onda da chinela vermelha" morrerá em breve. Mas não morre; vira um símbolo de esperança. Aos poucos, muita coisa foi mudando para melhor.

Tempo
Patricia Highsmith, quando escreveu seu conto, não podia prever, e ninguém o podia então, a impressionante vaga dos mais diversos fundamentalismos religiosos que assola hoje o planeta.
Sua história permanece, portanto, como pura ficção e como grande literatura. O resumo apresentado aqui é insignificante diante do original, mas talvez sirva como convite para a leitura dessa lúcida e formidável escritora.

jorgecoli@uol.com.br


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