São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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Um assunto de mulheres

Pioneira dos estudos feministas, Elaine Showalter publica a 1ª história literária das escritoras dos EUA

CHRISTINE SMALWOOD

Professora emérita de inglês na Universidade de Princeton (EUA), Elaine Showalter é pioneira nos estudos da mulher e da crítica literária feminista. Em seu novo livro, "A Jury of Her Peers - American Women Writers from Anne Bradstreet to Annie Proulx" [Um Júri de Seus Pares - Escritoras Norte-Americanas de Anne Bradstreet a Annie Proulx, 608 págs., US$ 30, R$ 68], ela toma por base trabalhos publicados, e não diários ou cartas, para escrever a primeira história literária das escritoras dos Estados Unidos.

 

PERGUNTA - Quais foram as maiores surpresas que a sra. encontrou enquanto pesquisava?
ELAINE SHOWALTER
- A coisa mais importante para mim -e isso é um motivo para o livro- é a alta qualidade da escrita. Descobri muito material excelente. Não estamos falando em defender uma causa ou a importância cultural das escritoras, e sim de escrita de primeira. A segunda coisa foi o fato de que diversos momentos históricos emergiram como muito significativos para a escrita feminina. A Independência dos EUA (1776) gerou um ímpeto tremendo. É espantoso descobrir quantos livros de escritoras norte-americanas têm cenas passadas em 4 de julho [Dia da Independência do país] e quanto o momento foi importante para elas em termos de autodefinição.

PERGUNTA - Há períodos especialmente notáveis?
SHOWALTER
- A década de 1850 sempre foi vista como o momento em que a literatura norte-americana atingiu a maturidade, sobretudo em termos masculinos -a década de Nathaniel Hawthorne, Walt Whitman, Ralph Waldo Emerson e Herman Melville. Mas também foi uma década em que surgiram mulheres escritoras de todos os gêneros; houve até o surgimento de escritoras negras. Algumas datas específicas são importantes na década de 1850 -o julgamento e a execução de John Brown [1859]; a fundação da revista "Atlantic Monthly", em 1857, que estabeleceu uma divisão entre literatura popular e de elite. Não é que a "Atlantic Monthly" não publicasse o trabalho de escritoras -isso acontecia. Mas foi o começo de um período bastante prolongado em que as publicações de elite estavam sob o controle de editores homens. As mulheres tinham de batalhar para serem aceitas por eles, e vieram não só a acatar os padrões que eles impunham, mas também a fantasiá-los. Quando se chega ao século 20, há um longo período em que a publicação intelectual era a "Partisan Review", seguida, é claro, pela "New Yorker", que ainda ocupa o mesmo posto. E é engraçado porque, nos diários das escritoras, pode-se ler que tinham sonhos sobre essas revistas. Sylvia Plath sonhou certa noite que estava na cama com a "Partisan Review". Mas essa divisão entre literatura popular e de elite foi muito prejudicial para as mulheres em termos de reputação e de seu lugar na história literária norte-americana.

PERGUNTA - Seu livro é longo. A sra. espera que as pessoas o leiam do começo ao fim ou saltem de parte a parte quando puderem?
SHOWALTER
- Os leitores podem decidir por conta própria. Imagino que algumas pessoas venham a usá-lo como livro de referência, como plataforma de decolagem, mas existe uma história ali, um começo, um meio e um fim. As vidas das escritoras são bastante fascinantes por si sós. Um exemplo é Julia Ward Howe, que escreveu "Battle Hymn of the Republic" [Hino de Batalha da República, canção abolicionista]. Mas também foi uma grande poeta. Publicou seu primeiro livro de poesia em 1853, anonimamente -"Passion-Flowers". Boa parte dos poemas tratava de seu casamento infeliz. Quando o livro saiu, foi um imenso sucesso. Hawthorne disse que considerava Howe a melhor das poetas mulheres. Todo mundo sabia que o livro era dela, porque o cenário literário era muito pequeno. Foi um grande escândalo, e quando o marido de Howe descobriu -ela não lhe havia mostrado-, a ameaçou de divórcio e de tirar dela a guarda dos filhos caso viesse a escrever qualquer coisa parecida no futuro. Ainda que escrevesse muito, jamais voltou a escrever poemas como aqueles. Também estava escrevendo um romance, que nem sequer tentou publicar, sobre um hermafrodita chamado Larry.

PERGUNTA - Qual é a situação da crítica literária feminina na academia, atualmente?
SHOWALTER
- As realizações vêm sendo formidáveis, internacionalmente, e um dos efeitos foi que, em comparação com as pesquisas que fiz sobre escritoras britânicas, nos anos 1970, minhas pesquisas sobre as escritoras norte-americanas se tornaram muito mais fáceis. Há muito mais material em catálogo, muito mais livros foram editados, muito mais conteúdo está catalogado. E temos o milagre da internet. Um volume assombroso de literatura foi digitalizado, e consegui realizar boa parte de minha pesquisa sem sair de minha mesa. Por outro lado, ideologicamente, creio que chegamos a uma espécie de impasse. As coisas se tornaram tão fragmentadas e tão politizadas, em termos da necessidade de representar cada elemento, que a diversidade se tornou de fato o valor dominante, em lugar da qualidade. Acredito que diversidade e qualidade possam coexistir. Expus minha opinião, meus julgamentos, e agora cabe às pessoas discuti-los. Mas creio que seja importante começar de um ponto em que a discussão seja possível. Literatura não gira em torno de complacência e de concordância. O que mantém legível o trabalho de um escritor é que ele esteja aberto a todas essas formas de debate sobre o seu valor, bem como seu conteúdo.

PERGUNTA - A sra. é muito popular como crítica literária. O que tem a dizer sobre a resenha de livros?
SHOWALTER
- Fiquei muito, muito triste com o fechamento do "Washington Post Book World" [caderno de resenhas literárias do jornal "Washington Post"] e sua transferência, digamos, para a internet. Passo cerca de metade do ano em Londres, onde esse tipo de situação é menos comum. Todos os jornais diários publicam resenhas de livros diversas vezes por semana. No sábado temos o "Guardian Review", em minha opinião a melhor publicação independente de resenha de livros do planeta. Temos o "Times Literary Supplement", o "London Review of Books", revistas, programas de rádio e até mesmo programas de TV nos quais os livros ainda ocupam posição central na cultura e na conversa das pessoas. Não compreendo por que o mesmo não pode ser feito nos EUA. Em parte, claro, é uma questão econômica. Também creio que as críticas de livros em Londres são mais empreendedoras e criativas que as norte-americanas. A inventividade, o humor e a mordacidade de uma publicação como o "Guardian Review" poderiam realmente fazer diferença para as resenhas de livros nos EUA, que continuam a ser muito sérias -abandonai todo o humor, vós que entrais-, muito sisudas, uma espécie de ocupação reservada à elite. No Reino Unido, existem tantas resenhas de qualquer livro que ninguém se importa se o resenhista conhecer o autor, for seu antigo amante, antigo inimigo. A cultura literária alimenta a literatura. O desaparecimento das resenhas no mercado norte-americano é uma nota bastante ominosa quanto ao que vai acontecer na cultura.

Esta entrevista foi publicada na "Nation".
Tradução de Paulo Migliacci.



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