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+Cultura
Me enrola que eu gosto
SUCESSO JAPONÊS DOS ANOS 1930, "MUSASHI", AGORA LANÇADO
NO BRASIL, TEM A ESTRUTURA FOLHETINESCA DE "HARRY POTTER"
E A ETNICIDADE DE "O CAÇADOR DE PIPAS", MAS SEM TOMAR
O OCIDENTE COMO REFERÊNCIA
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com espadachins,
monges guerreiros,
peregrinação, busca
espiritual, amores
frustrados, os três
polpudos tomos de "Musashi"
[trad. Leiko Gotoda, ed. Estação Liberdade, 1.800 págs., R$
218], de Eiji Yoshikawa [1892-1962], constituem um folhetim
de não botar defeito. Inclusive
na forma clássica da apresentação original, em prestações diárias no jornal.
Escrito e publicado na década de 1930 em Tóquio, ficcionaliza a formação deste célebre
samurai da crônica japonesa,
mestre de esgrima a quem se
atribui a autoria do duelo a
duas espadas simultaneamente
brandidas.
Retrocedendo aos anos de
1600, quando se instaurava a
vigência do xogunato, leva a fama de ser o livro mais lido em
toda a história do país.
Os folhetins ou romances seriados nasceram no início do
século 19 como truque para
vender jornal, como se sabe.
Entre seus autores mais renomados, figuram Alexandre Dumas ("Os Três Mosqueteiros",
"O Conde de Monte Cristo"),
Charles Dickens ("As Aventuras do Sr. Pickwick", "Oliver
Twist"), Eugène Sue ("Os Mistérios de Paris"), Ponson du
Terrail ("Rocambole").
Todo mundo os lia no jornal,
e novamente quando se tornavam livros em numerosos volumes. Invenção estrutural do folhetim é a ciência da interrupção a cada capítulo, criando o
suspense para titilar a avidez
do leitor pela continuação.
Telenovela
A despreocupação com o verossímil e o desenvolvimento
frouxo em episódios que podiam ser costurados infinitamente, precedendo a coerência
integrada do romance, já vinham da novela de cavalaria,
primeira ofensiva da ficção em
prosa. Hoje, o folhetim de cada
dia foi parar na telenovela, com
suas peripécias mirabolantes e
reviravoltas surpreendentes.
Pairam os clichês do gótico:
órfãos, gêmeos rivais, vinganças imemoriais, segredos guardados a sete chaves, nascimentos obscuros subitamente revelados como principescos, tesouros enterrados e heranças
que caem do céu, parentescos
ignorados gerando incestos.
Impera o maniqueísmo, com
heróis bondosos e valentes de
um lado, do outro lado vilões
como madrastas, padres maquiavélicos e milionários corruptos. Há uma dúzia de enredos entrecruzados.
Tudo isso marca a popularização do romance burguês à
época e sua aliança com a disseminação do jornal. No folhetim, o valor de entretenimento
da literatura sobrepuja qualquer outro.
Interessantíssima é essa ressurreição em nosso tempo, embora não mais em episódios
diários no jornal, de que, afora
o ciclo de "Harry Potter" [de
J.K. Rowling], são exemplos "O
Senhor dos Anéis" [de J.R.R.
Tolkien], "As Brumas de Avalon" [de Marion Zimmer Bradley] e vários outros, justamente quando a morte da leitura e
do livro vinha sendo decretada.
É fenômeno intrigante, sobretudo quando se pensa nas
questões suscitadas pelo uso do
computador desde a infância,
tais como o déficit de atenção, a
instantaneidade da percepção
da imagem contra o texto, a
atrofia da faculdade de acompanhar raciocínios complexos.
Enquanto isso, e deixando
para outro argumento a estratégia de marketing, as crianças
do mundo inteiro, sem consultar ninguém, ressuscitam livro
e leitura com "Harry Potter".
Épica étnica
A presente publicação de
"Musashi" visa certeiramente a
moda do romance étnico, que
muitos chamam de pós-colonial. A globalização trouxe seu
correlato literário, a idealização do multiculturalismo e da
diversidade cultural, outros nomes para o exótico.
O romance étnico é, desde alguns anos, o best-seller absoluto, e em matéria de ficção quase
não se vê outra coisa nem nas
livrarias nem no Prêmio Nobel.
Se o assunto for a adaptação
dos desterrados, o entrecho se
situará nos encraves de estrangeiros de pele escura nos países
ricos. Para os demais, o cenário
comum é o torrão natal, usualmente forasteiro -Iraque, Irã,
Afeganistão, nações africanas,
Índia, Brasil.
Quase sempre o romance étnico é escrito em inglês para o
público ocidental, de preferência mostrando como são bárbaros os povos de cor, ou os que
não têm cabelos louros e olhos
azuis.
Vejam-se "O Caçador de Pipas" [de Khaled Hosseini] ,
"Feras de Lugar Nenhum" [de
Uzodinma Iweala], "Cidade de
Deus" [de Paulo Lins] -não é
outro o alcance do premiadíssimo filme "Quem Quer Ser um
Milionário?".
Raramente se expressa em
outra língua que não a "koiné"
de nosso tempo, e, se incorrer
nesse defeito, será rapidamente traduzido.
Raciocinando pela outra
ponta, podemos ver nessa safra
aquilo que Toynbee chamaria
de "a revanche do proletariado
externo". Segundo o grande
historiador inglês, que aliás era
conservador, todos os impérios
caem da mesma maneira, ou
seja, quando o proletariado externo, que eles consolidam nas
colônias para servir a sua cobiça, reflui para a metrópole e ali
se encontra com o proletariado
interno.
Pense-se em Roma, por
exemplo. E é o que se vê na Europa e nos Estados Unidos nesta fase da história em que os
brancos perderam a hegemonia, mas ainda não perceberam.
Tal safra celebra o refluxo do
proletariado externo. Passa pelos indianos e negros caribenhos da Inglaterra, os árabes e
africanos da França, os turcos
da Alemanha, os asiáticos um
pouco por toda parte.
Quem não se lembra do orgulhoso vice-reinado da Índia,
joia da coroa britânica, cantado
em prosa e verso pelas letras inglesas, Rudyard Kipling [1865-1936] à frente com "Kim" e "O
Livro da Jângal"?
Nos EUA, a invasão de latinos de cambulhada -chicanos,
cubanos, caribenhos, dominicanos, brasileiros- já tornou o
espanhol a segunda língua europeia do mundo, contando,
afora jornais e revistas, com estações de rádio e canais de TV.
Há que refletir sobre o seguinte: essa literatura oferece
aos brancos ricos aquilo a que
eles aspiram, reassegurando-os
em sua supremacia sobre árabes, africanos, asiáticos ou brasileiros, todos apresentados como mestiços facinorosos.
Assim, os países periféricos
fazem literatura e cinema "de
exportação", ou seja, exportam
matéria-prima colonial em nível simbólico.
Lembrando "Xógum"
Por séculos, o mais conhecido romance japonês e o mais lido no Ocidente foi "Genji Monogatari", narrativa galante-cortesã de quase mil anos atrás,
tendo em primeiro plano os feitos donjuanescos do príncipe
Genji, filho do imperador, e como pano de fundo as intrigas
palacianas.
É coisa da aristocracia, e não
plebeu como "Musashi".
Infelizmente, "Musashi" não
é um romance étnico perfeito.
Em primeiro lugar, é japonês
de três quartos de século atrás,
e não de agora. Em segundo lugar, é só japonês, não há ocidentais nele. Em terceiro lugar,
foi escrito em japonês para japoneses, e não em inglês.
Para efeitos de comparação,
basta lembrar o best-seller
"Xógum", um dos vários livros
da vasta "asian saga" de James
Clavell, aliás excelente, de assunto japonês, mas escrito em
inglês para leitores ocidentais.
Ali se percebe como o afã do
autor é destrinçar as peculiaridades da sociedade e da cultura
japonesas, revestindo-as de explicações palatáveis, propriamente decifrando-as para outro código.
Simpático aos japoneses, é
tanto mais admirável por tratar-se do esforço de quem foi
prisioneiro de guerra e passou
muitas agruras tentando entender as indignidades a que o
submetiam.
Repassa a história do Japão
desde o primeiro contato com
os ocidentais -o desembarque
do piloto inglês é o estopim do
entrecho-, apenas mudando
os nomes dos principais atores
desse painel do xogunato.
E traz a graça do refinamento
estético nipônico e do intrincado protocolo das cortes do país,
com sua rígida hierarquia e a ritualização dos cerimoniais. O
que se encontra também no kabuki, no teatro nô e no cinema.
Mas não é o caso de "Musa-
shi", predominantemente plebeu. Que propósito poderia ter
esta narrativa e sua extraordinária popularidade entre 1935
e 1939, às vésperas da Segunda
Guerra Mundial?
Tudo indica tratar-se aqui de
um romance bélico, que, embora não retrate uma guerra, vai
de duelo em duelo até cobrir todo o território japonês de esgrimistas.
A mensagem que sobrenada,
apesar de toda a discussão do
enriquecimento espiritual e
dos benefícios do controle individual sobre a violência, soa como uma declaração de princípios e como uma conclamação
para a Segunda Guerra, que se
avizinhava: somos um povo
guerreiro, em suma.
Ao longo da narrativa, o "bu-
shido", o código de ética do samurai, vai sendo enfaticamente
reatualizado. Por tudo isso, é
uma experiência curiosa ler
"Musashi" com essas duas ópticas, a coeva e a de hoje, a um só
tempo na mira.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora de
teoria literária na USP. Recebeu o Prêmio Mário
de Andrade da Biblioteca Nacional por "Mínima
Mímica" (Companhia das Letras).
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