São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Estilos culturais



Como um jovem a serviço do Exército inglês descobriu o multiculturalismo
PETER BURKE
especial para a Folha

Como historiador, sempre me interessei pelos estilos culturais de diferentes épocas, regiões e grupos sociais. Entretanto, só há pouco compreendi que esse interesse, aparentemente tão natural, pode ter se originado a partir de determinadas experiências vivenciadas por mim no passado, em especial nas Forças Armadas.
Ingressei no Exército britânico em setembro de 1955, sendo dispensado dois anos mais tarde. Não me alistei voluntariamente: o "serviço nacional" no Exército, na Marinha ou na Aeronáutica era obrigatório a todo jovem que atingisse os 18 anos de idade na Grã-Bretanha daquele tempo -dez anos após o fim da guerra contra a Alemanha. Candidatei-me para integrar a área de inteligência do Exército, mas fui alocado na de informações. O que era chamado de treinamento militar "básico" acontecia num acampamento em Yorkshire. Foi o meu primeiro contato com garotos da minha idade de origem operária: eles pareciam pertencer a uma outra cultura. Um dia um oficial entrou na sala e disse: "Quem não sabe ler e escrever, levante a mão!". Uma pausa. "Conheço caras ótimos que não sabem ler e escrever." Para minha surpresa, vários garotos levantaram as mãos. Já que eu sabia escrever e era totalmente incapaz de subir em postes telegráficos ou de consertar telefones, treinaram-me para ser auxiliar de escritório. Depois disso, candidatei-me para ser mandado à Alemanha, o que não deu certo: alocaram-me em Cingapura, aonde cheguei no início de 1956 e permaneci por mais de oito meses.
Meu trabalho consistia em secretariar o oficial da intendência, um soldado profissional que, no seu posto de capitão, era o responsável pela administração dos recursos do regimento. O trabalho era fácil, mas monótono, sobretudo aritmética mental. Tratava-se de calcular, com base nos prontuários de cada membro do regimento, quanto cada um deveria receber por semana; na sequência, eu acompanhava o intendente a uma filial do Hong Kong and Shangai Bank (portando um revólver carregado, o que significava que não havia nunca necessidade de esperar na fila). Esse foi o meu primeiro contato com o mundo fora da Europa.
De fato, até os 18 anos só tinha deixado a Grã-Bretanha para visitar a França, a Bélgica e a Irlanda. Cheguei em Cingapura num navio-transporte, depois de uma viagem que demorou três semanas. Fomos via Aden, onde tivemos direito a um dia em terra firme e fomos abordados por garotinhos gritando "baksheesh" (ou seja, "dinheiro"). Passamos pelo Canal de Suez (somente alguns meses antes do golpe de Nassar) e pelo Oceano Índico, fazendo uma pausa em Colombo, onde passamos outro dia em terra, desta vez perseguidos por tâmiles, que reclamavam do modo como eram tratados pelos cingaleses -e isso bem antes da guerra civil que enfrentam atualmente. Minha maior sorte foi que o regimento no qual eu teria de viver por 18 meses, o Regimento de Informações do Distrito de Cingapura, compunha-se quase que inteiramente de gente que o Exército chamava de "pessoal alistado localmente": sobretudo malaios, poucos indianos (sikhs, tâmiles etc.) e chineses. Até os poucos britânicos que encontrei ali me pareciam exóticos, em especial o hábito dos soldados profissionais de rechear toda frase com um número inimaginável de palavrões.
O linguista Eric Partridge, que também conheceu o Exército britânico por dentro, sugeriu certa vez que a única maneira de dar ênfase a uma frase era excluir desta os palavrões. Então, se o sargento gritasse "peguem seus rifles!", em vez do usual "peguem os malditos rifles!", você saberia que era caso de emergência. Entretanto, apenas cerca de 5% do regimento era britânico, oficiais e "homens" (ou seja, todos aqueles que não chegaram a segundo-tenente). Eu pessoalmente estava lá porque sabia contar, e as autoridades britânicas não confiavam nos "nativos" em questões de dinheiro. A parte mais difícil do meu trabalho era pronunciar todos os nomes desconhecidos, que eu tinha de ler em voz alta enquanto cada homem recebia o seu soldo: "Sargento-major Yahiya Bin Haji Omar, US$ 50; cabo Chee-Liang Cheng, US$ 30; informante Subramaniam, US$ 20", e assim por diante. Olhando para trás hoje, reconheço que cheguei bem perto de fazer antropologia sem sabê-lo.
O regimento era em certo sentido um mundo social mais isolado que qualquer vilarejo na Malásia, já que os portões de entrada eram vigiados e nós só tínhamos permissão de sair em determinados momentos, assinando o ponto e observando atenciosamente um grande espelho e dois pequenos avisos: "Você é motivo de orgulho para o seu regimento?" e "Por favor, pegue um "sheat' (em outras palavras, um contraceptivo) antes de sair".
Tudo naquele ambiente social e físico era muito novo e fascinante para mim, e eu brevemente comecei a tomar notas, descrevendo a vida cotidiana. Ficava encantado só de observar o "dhobi-wallahs" -isto é, o método indiano de lavar roupa batendo as peças molhadas contra uma pedra-, porque era tão diferente do modo como a roupa era lavada lá em casa. Sentia-me bastante isolado do mundo do regimento, não apenas por não ter ingressado nele voluntariamente, mas também porque as pessoas tinham dificuldade de me classificar: afinal, se meu status na hierarquia militar era baixo, os quesitos "cor" e "educação" garantiam-me um lugar de destaque naquele universo. Tratava-se de uma sociedade multicultural, na qual os britânicos recém-chegados eram sempre conclamados pelo oficial-comandante a respeitar os "irmãos morenos" e a não oferecer nada aos malaios com a mão esquerda, já que para eles esta era suja.
Havia três tipos de soldo para os soldados rasos: o mais alto, para os voluntários britânicos, e o mais baixo, para "outras posições malaias", enquanto eu ficava em alguma categoria intermediária. Meu soldo permitia que eu contratasse um servente para cuidar do meu uniforme e varrer a parte do alojamento que me cabia limpar. Ele era um punjabi que trabalhou durante seis meses no regimento, juntando dinheiro para voltar para casa e rever sua mulher e filhos. Havia também quatro cantinas que serviam diferentes variedades étnicas de comida. Fiquei atraído pela comida malaia, extremamente picante, mas lembrei a tempo que não haveria garfos e facas à disposição e que nenhuma comida seria servida durante o dia no período do Ramadã (consequentemente, o regimento esteve virtualmente morto durante aquele mês). Quando reclamei para os meus amigos malaios da qualidade da comida servida no regimento, eles me olharam surpresos e disseram que havia três refeições diárias ali, o que para eles (ex-seringueiros ou plantadores de padi, conforme descobri nos prontuários) era sinônimo de intemperança.
O inglês era a língua oficial, mas o malaio, o punjabi, o tâmil e outras línguas regionais também eram comuns ali. Mas esse não era o único contraste entre o oficial e o não-oficial no regimento. Da minha reles posição na hierarquia militar eu era capaz de observar várias coisas que os oficiais -presentes só durante o dia, enquanto eu dormia no alojamento- ignoravam. Para mim, um inocente pupilo de uma escola inglesa, o mundo do regimento era fascinantemente escandaloso. Lá tudo estava à venda. Os motoristas do regimento utilizavam sifões para retirar a gasolina de seus carros e vendê-la. Objetos armazenados nos depósitos militares costumavam reaparecer no assim chamado "mercado dos ladrões" no centro da cidade, a fim de serem comercializados por um preço bem abaixo do oficial. Alguns soldados que eu conhecia garantiam a segurança das lojas locais em troca de propina, e isso representava uma tal ameaça à boa reputação do regimento que, quando descobertos, eles não foram submetidos à corte-marcial, e sim convidados silenciosa e discretamente a deixar o Exército para sempre.
Até os prisioneiros da "sala de guarda" (a prisão do regimento) podiam contar com uma vida agradável no seu "hotel", desde que deixassem uma nota de US$ 5 ("dólar do Estreito", a moeda oficial daquele tempo e que valia bem menos que o dólar americano) na dobradiça da porta da prisão. Caso contrário, o primeiro-sargento tâmil, um negro retinto enorme, faria de tudo para dificultar-lhes a vida, ordenando que treinassem no pátio sob um sol escaldante de 35º. O cambalacho mais lucrativo de todos era organizado por um velho e encantador indiano de turbante branco que, se durante o dia era responsável por fornecer chá aos oficiais do regimento, à noite vendia vagas no dormitório a civis sem-teto, contanto que dessem o fora antes das seis da manhã, para evitar que as autoridades descobrissem que tinham pernoitado ali.
Naquele momento, Cingapura vivia uma grave crise de moradia, e dizia-se que era comum três famílias ocuparem um mesmo cubículo, revezando-se periodicamente em turnos de oito horas. O bar do regimento era o lugar onde os diferentes grupos se encontravam socialmente, de maneira mais ou menos amigável, bebendo cerveja Tiger e comendo Nasi Goreng. Não presenciei o mais dramático incidente que aquele lugar já viveu. Alguns dias antes de eu chegar no regimento, um soldado britânico, incomodado pelo tipo de música que um dos malaios estava tocando ao piano, pegou um pedaço de toucinho da cantina e besuntou com este as teclas do instrumento. Segundo os devotos muçulmanos ali presentes, o piano tinha sido contaminado. O soldado foi obrigado a lavá-lo em público no dia seguinte.
Eu gostava mais da música local do que ele, e os malaios, extremamente amigáveis com estrangeiros que demonstrassem interesse por sua cultura, deram o melhor de si -sem muito sucesso- para ensinar-me a dança da moda, o "joget moderno". A ocasião para isso foi uma festa. Entre os hóspedes estava o enorme primeiro-sargento com sua minúscula esposa-menina. Vê-los juntos e observar o modo gentil do sargento Suppiah foi para mim uma tal surpresa que a imagem permanece viva em minha memória até hoje. É difícil saber o quanto consegui reconstituir de todas essas experiências depois de tanto tempo. Mas estou certo de que me influenciaram muito.
Edward Gibbon uma vez afirmou que os seus anos na milícia de Hampshire "não tinham sido de pouca valia para um historiador como ele, estudioso do império romano". O Regimento de Informações do Distrito de Cingapura talvez também seja responsável pelo fato de eu ser hoje um historiador fascinado por interações culturais e pelos mal-entendidos decorrentes da distância sempre existente entre o oficial e o não-oficial em todos os níveis da sociedade.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.