São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Escorando sua queixa na carta-confissão assinada por François, o pai solicita que ele seja internado numa instituição para menores delinquentes; os policiais registram sua queixa e tomam nota do documento confessando as diversas mentiras, os furtos e as dívidas do adolescente

Saindo do escritório de Trabalho e Cultura, Truffaut não pode deixar de pôr novamente os pés na terra, pois suas dívidas não evaporaram. Dois dias depois, o sr. Guillard, responsável pelo departamento de cinema nos Éclaireurs de France, queixa-se com seu colega Roland Truffaut. Este cai das nuvens ao ser informado de que seu filho deve a Guillard 7.850 francos. Na noite de 2 de dezembro, aguarda François em casa para uma conversa muito séria. A coisa toma um rumo violento. Roland força o filho a confessar tudo. Concordando em passar uma borracha em tudo se François abandonar completamente suas atividades ruinosas no Círculo Cinêmano e voltar ao bom caminho, encontrando um trabalho fixo, uma situação estável, ele o obriga a pôr no papel, preto no branco, cada detalhe de seus pecados e dívidas: "Juro pelo que é mais sagrado que tudo isto é verdadeiro. Deixei meu emprego na firma Simpère há cinco meses falsificando boletins de salário e pagamentos. Vendi livros na livraria-papelaria La Paix Chez Soi. Roubei uma máquina de escrever no prédio dos Éclaireurs de France e a revendi a Jacques Enfer em setembro de 1948 por 4.000 francos. Devo dinheiro ao sr. Prévost, 855 francos; à sra. Bigey, 10.500 francos; ao sr. Marcellin, 2.500 francos; ao sr. Guillard, 7.850 francos; a La Paix Chez Soi, 2.500 francos; a Chenille, 250 francos; a Geneviève, 150 francos". Humilhado e vencido, o adolescente assina este patético reconhecimento de dívidas e Roland Truffaut reembolsa um a um os credores, no valor total de 24.605 francos, equivalente então a pouco mais de um mês de salário.
Fosse por obrigação (as cópias já haviam sido alugadas e a propaganda estava nas ruas), inconsciência, revolta ou bravata, o adolescente não deixou por isto de programar três novas sessões de seu Círculo Cinêmano no Cluny-Palace: "A Cidadela", de King Vidor, a 5 de setembro, "A Longa Viagem de Volta", de John Ford, no dia 8, e, no dia 11, um de seus filmes favoritos, "Soberba", de Orson Welles. (...)
Acompanhado de Lachenay, ele foi pessoalmente à MGM apanhar as cópias dos filmes de Vidor e Ford, prometendo voltar no dia seguinte com os 5.000 francos da locação do primeiro filme. Algo como 60 espectadores bastariam para cobrir o custo, mas naquele domingo 5 de dezembro eles são apenas uns 20. Na terça-feira, não vendo a cor do dinheiro, a MGM dá o alarme ao sr. Guillard, que faz chegar a queixa a Roland Truffaut. Com a paciência esgotada, o pai decide acabar com o problema pela raiz.
Na noite de 7 de dezembro, o adolescente não é encontrado em parte alguma. Mas Roland sabe muito bem onde achá-lo, no dia seguinte, às 17h30, no Cluny-Palace, antes do início da sessão dedicada a John Ford. No saguão, na presença de alguns amigos, entre os quais Lachenay, Roland Truffaut "foi entrando e agarrando François pelo colarinho da camisa para levá-lo, sem esquecer de nos avisar que não voltaríamos a nos ver para fazer nossas asneiras", rememora Robert, que assiste à cena com lágrimas nos olhos. O pai leva o filho, aparvalhado, para casa.
Janine entrega tudo ao marido. Há muito tempo já ela se desinteressou do futuro do filho, vendo-o apenas em refeições, não raro entrecortadas de violentas discussões. O confronto desta vez é tempestuoso, e às nove da noite Roland Truffaut conduz François à delegacia mais próxima, na rue Ballu. Lá, escorando sua queixa na carta-confissão assinada dias antes por François, o pai solicita que ele seja internado numa instituição para menores delinquentes. Os policiais registram sua queixa e tomam nota do documento confessando as diversas mentiras, os furtos e as dívidas do adolescente. Formalizada sua queixa, Roland Truffaut retira-se sozinho da delegacia, deixando o filho em boas mãos. François passa ali a noite, sendo transferido da cela principal para uma menor, individual, para dar lugar a três prostitutas em situação irregular.
Consegue a certa altura entrever seu amigo Robert, que veio tentar defendê-lo, em vão. Mas terá agora de aguardar a confirmação da detenção pelo presidente do tribunal do distrito. Truffaut tem assim de esperar um dia inteiro em sua cela e mais uma noite inteira num catre; 32 horas na pequena delegacia, a 200 metros de casa, até o amanhecer de 10 de dezembro, quando, acompanhado de quatro outros presos, é transferido num camburão para a cadeia da Cité, na chefatura de polícia de Paris.
Depois de submeter-se aos rituais humilhantes do encarceramento -matrícula, fotografias, impressões digitais e revista-, o adolescente passa mais dois dias esperando uma decisão sobre sua situação. Só no fim da tarde de sábado vem ele a ser transferido para o Centro de Observação de Menores de Paris, na Avenida da República, em Villejuif, a dois passos da Porta da Itália. Ali, sofre novas humilhações: encaminhamento de suas roupas civis ao depósito, recebimento de um uniforme, designação de um dormitório, primeiros corretivos de um inspetor... François Truffaut aprende na prática a lei "paternocrática" do Código Civil francês, cujos artigos 375 e 377 estipulam: "O pai que tiver motivos muito graves de queixa quanto à conduta de um filho disporá do seguinte meio de correção: (...) Da idade de 16 anos começados até a maioridade ou a emancipação, o pai poderá requerer a detenção de seu filho durante seis meses no máximo".



continua




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