São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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NOVOS AUTORES
Lúcidas clarividências



Personagens em situações-limite dão o tom em "Dalma na Rede" e "Sutilezas do Grito"

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Ampliou-se desde o início do século o empréstimo de conceitos de uma determinada expressão artística para definir aspectos de outra. Nessa linha, a novela "Dalma na Rede", estréia de Luigi Augusto de Oliveira, mineiro radicalizado em São Paulo, é uma clara composição cubista.
O livro todo é a tentativa de um homem (o narrador) de descrever um episódio marcante assistido na adolescência, no qual uma prima (Dalma) se "diverte" com a irmã dele numa rede, ambas igualmente em púbere agitação.
Tal narrador está internado para tratamento psiquiátrico, redigindo na clínica a sua história, e sua escrita não é outra coisa senão a expressão de uma mente incapaz de desfazer os novelos que cria internamente.
Seu objetivo é escrever, como afirma, de modo "claroevidente", "o mais claroevidente possível", e desse duelo com a linguagem nasce uma tensão rara em livro de estréia. O tal episódio (Dalma na rede) ressurge de diversos modos e ângulos (daí o cubismo), mas não como mero exercício estilístico e sim como resultado de um funcionamento mental particular.
Um dos trechos, por exemplo, afirma:
"... Pois ao em minha perturbada memória recompor o quadro recomponho a cada vez um pouco mais precária sua nitidez, de modo que já não sei se é a forma das lisas costas de Dalma ou a forma de uma de suas coxas que interiormente vejo a espelhar seu rosado trêmulo sobre quase toda a extensão alaranjado-borrada, que é da rede, mas que agora compõe o fundo da cena como se um chão fosse ou uma parede".
Na fronteira entre a lucidez e a inconsciência, o autor forja um linguajar dotado de pulso, em ritmo envolvente, mantendo o leitor curioso a respeito do desenlace do tal episódio marcante e ao mesmo tempo enredado, como se ele mesmo se sentisse convidado a definir melhor aquela cena - a qual, afinal, jamais se desvendará integralmente.
O livro foi premiado na categoria "novela" do Primeiro Festival Universitário, organizado no ano passado pela Xerox e pela revista "Livro Aberto". Tem a ousadia de arriscar-se no trato de linguagem, com personagens expostos em situações-limite.
Em outro compasso, mas igualmente ancorada em tipos encaixados em situações-limite, está a coletânea de contos "Sutilezas do Grito", segundo livro em prosa da carioca Carmen Moreno.
Aqui está mais claro, porém, o viés poético do estilo, a variedade de focos narrativos, a composição eclética de tipos -do adolescente levado pela primeira vez a um prostíbulo a uma mulher que troca o marido por outra mulher, passando pela experiência de alguém que recebeu um resultado positivo de exame de Aids e depois soube que o laboratório trocara o seu lado pelo de outra pessoa.
Carmen Moreno é, visivelmente, apaixonado pelo trato da linguagem. Um pequeno trecho do conto "Ladrão de Palavras" é explícito a esse respeito: "O medo: só a caneta me salva do seu pulsar insano. Só a escrita esquiva-se, sábia, de sua supremacia bélica".
Comete, porém, um sutil deslize, que vale registrar. É o de transportar essa paixão para a sua relação, enquanto autora, com seus próprios personagens. Parece que se deslumbra com eles, o que a leva a construí-los, por vezes, sem a crueldade que no entanto lhes é subjacente.
Não parece bom deixar transparecer para o leitor, ainda mais quando o foco é em terceira pessoa, o quanto gosta deste ou daquele personagem. Melhor, muitas vezes, é distanciar-se. Caso contrário, o risco é ensombrecer o personagem e iluminar, mesmo sem intenção, as emoções do autor.



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